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A música conecta

“Meu evento está sold out, mas talvez eu ainda tenha prejuízo”

Por Alan Medeiros em Artigos 07.08.2025

“Vendemos todos os ingressos com antecedência. E ainda assim, a planilha segue no vermelho. Vamos ver como será com o bar.” A fala vem de um produtor com mais de uma década de atuação na cena eletrônica brasileira. Há alguns meses ele procurou o Alataj para contar sua história de forma anônima, por entender que o tema ainda é tratado como tabu. A ideia era abrir espaço para uma conversa que, embora recorrente nos bastidores, dificilmente vem à tona para um debate mais amplo. Nós compreendemos o caso e entendemos que essa é uma história que pode trazer luz a diferentes pessoas da cena. 

O caso em questão não é isolado. A percepção de sucesso que acompanha um evento esgotado nem sempre se traduz em resultado financeiro. Pelo contrário. Muitos produtores independentes, mesmo com uma base de público, enfrentam dificuldades crescentes para equilibrar as contas. “O acesso a boas locações está muito escasso. Além do custo elevado, existem restrições operacionais, exigências que aumentam a complexidade e o orçamento”, explica o produtor. A estrutura (som, luz, segurança, equipe) segue quase sempre financiada integralmente pela produção, mesmo quando os benefícios indiretos se estendem a outros agentes do ecossistema.

Os cachês artísticos também pesam, mais do que em qualquer outro momento, segundo ele. Em um intervalo de poucos anos, a inflação afetou não apenas os nomes mais disputados, mas também artistas em praticamente todos os estágios. Para o produtor, a comparação é inevitável: “Com o valor que invisto em um artista internacional pouco conhecido por aqui, eu monto um show de médio porte com um grupo popular de pagode. O impacto financeiro é semelhante e é um tipo de evento que pode atingir muito mais gente”. A dificuldade de negociação com agentes, mesmo diante de realidades de mercado distintas, é apontada como uma das barreiras mais desgastantes do processo. 

Desde a pandemia, a cadeia de produção de eventos se tornou mais onerosa. Locação, logística, staff, alimentação, taxas, tudo custa mais. Ao mesmo tempo, o aumento dos preços de ingressos é limitado pelo poder de compra do público e pela percepção subjetiva do que é “caro” para uma noite de festa. Basicamente, cobrar a inflação na cadeia de serviços é mais fácil do que cobrar do público e, em muitos casos, o produtor é contestado como se tivesse margem de sobra. “O público vê o valor final do ingresso e não compreende, sem nem ter ideia do quanto custam os bastidores. Esperam uma entrega visual e técnica comparável aos grandes eventos que aparecem no feed, mas não entendem que aqui operamos sem as mesmas condições.”

A disparidade entre grandes festivais e eventos independentes é outro ponto sensível. Com marcas, fundos e investidores por trás, os festivais conseguem absorver riscos e planejar com mais fôlego. Já os produtores independentes seguem dependentes da bilheteria. “Sem patrocínio, sobra pouco espaço para arriscar. É preciso acertar em cheio em todas as frentes, venda, comunicação, experiência, curadoria, mesmo com recursos limitados.” As redes sociais, que antes funcionavam como canal direto com o público, também perderam força. O alcance orgânico caiu, e a dependência de impulsionamento se tornou mais um custo fixo.

No plano subjetivo, a pressão se acumula. Entregar uma experiência artística autêntica, segura e bem executada, enquanto se lida com incertezas financeiras e logísticas, é emocionalmente exaustivo. “Você se compromete com a cultura, com o público, com os artistas. Mas o cansaço chega. E às vezes a frustração também.” Pouco se fala sobre isso. Mesmo entre os mais experientes, admitir perdas ou fracasso ainda é mal visto. Falta espaço para a vulnerabilidade e talvez por isso tantos produtores estejam deixando de lado seus eventos, ao menos por um tempo. 

Existe, por trás dessa discussão, um problema estrutural: a sustentabilidade financeira da cultura independente no Brasil continua sendo negligenciada. Produtores culturais seguem operando em condições precárias, sem reconhecimento proporcional à complexidade do ofício. O status de se estar no palco e a linguagem do Instagram projetam uma imagem de abundância que nem sempre condiz com a realidade — e isso alimenta um ciclo de expectativas irreais, tanto por parte do público quanto dos próprios agentes envolvidos.

O depoimento que abre este texto é, em essência, um convite ao debate. Não basta vender ingressos. Não basta ter pista cheia. Se a cena deseja continuar existindo com diversidade, profundidade e coerência cultural, será necessário rever práticas, repensar lógicas de operação e ampliar o diálogo entre todos os elos dessa cadeia. Não teremos uma oferta diversa de eventos se produzi-los é como brincar com uma roleta russa do prejuízo. E é a partir dos debates que começam as transformações.

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