Ontem eu me fiz o grande favor de assistir o documentário Amarelo – É Tudo Pra Ontem, do rapper, cantor e compositor Emicida. Além de todo o contexto educativo e reflexivo que ele propõe em uma entrega brilhante, cada pedaço do show apresentado no Theatro Municipal de São Paulo me admirava, não apenas pela composição sonora carregada de mensagens, mas também pela composição de artistas talentosos na banda de apoio, que receberam destaque com imagens em foco de suas atuações. Mas dentre os músicos havia três em especial que, toda vez que apareciam, me brilhavam aos olhos.
Silvanny Rodriguez “Sivuca” na bateria e percussão, Michele Cordeiro na guitarra e Larissa Oliveira no trompete e flugelhorn. É claro que o show contou com outras expressivas e talentosíssimas participantes, mas toda vez que vinha nítida a imagem de uma dessas três mulheres – que não estavam à frente no palco – dominando seus instrumentos, eu sorria. A princípio sorria e nem me ligava mas, quando comentei em voz alta “você viu que foda essa mina mandando ver na bateria?” Meu cérebro explodiu em pensamentos que culminaram em um “é isso, então”.
É isso. Quantas vezes você vê mulheres, esses seres considerados tão “delicados”, dominando em intensidade e precisão uma bateria? Ou dedilhando rapidamente uma guitarra? E uma mulher controlando a energia dos seus pulmões com destreza em um trompete? Instrumentos masculinizados pela exigência de força, energia, habilidade profunda e lá estavam elas, apresentando um deleite aos meus olhos, ouvidos e coração.
Continuando minha epifania, muito impactada pelo conjunto ideológico do documentário, pensei no caminho percorrido por elas para alcançarem aquele lugar. Mulheres, jovens, em um mercado pouco colaborativo ao universo feminino, em uma “concorrência” desleal com músicos homens, que em sua maioria são descredibilizadas pelo trabalho, resumidas a um padrão de beleza e orientação sexual. Comecei a pensar em todas as circunstâncias que acompanham a trajetória de mulheres que decidem viver da arte. No caso aqui, duas delas são negras, o que pode elevar as dificuldades à terceira potência (gênero, cor e classe social), pois ainda precisam lidar com outras barreiras tão duras por simplesmente serem mulheres.
Se transparecemos sensibilidade, somos fracas, se argumentativas e fortes, somos autoritárias, se questionamos o status quo e expomos atos de abuso e desrespeito, somos loucas, interesseiras, sei lá. E aí, pensando em tudo isso e mais um pouco, segui olhando as três mulheres e veio a carga de orgulho, admiração e a completa e nítida noção da palavra representatividade (ali contempladas em diversas formas), sabe por quê? Porque se elas chegaram lá, mesmo com a corrente rumando para o lado completamente oposto, eu também posso, não importa para onde eu quero ir.
Talvez você esteja se questionando se eu já não senti isso antes e digo que sim, é claro. Mas não faz muito que eu passei a compreender esse sentimento. Há 15 anos, quando comecei a frequentar clubs de música eletrônica e acompanhava a Aninha em seus warm-ups impecáveis, eu achava (e acho ainda) ela o máximo, mas não entendia o contexto daquilo. Assim como quando ela me apresentou Anja Schneider, Magda, Tania Vulcano e outras gigantes, eu as via como mulheres ultra poderosas mas inalcançáveis e, sendo assim, não criava um vínculo tão grande, até mesmo porque os line-ups gringos eram majoritariamente masculinos.
Com o passar do tempo, fui vivendo esse universo cada vez mais de perto e conhecendo mais mulheres incríveis do Brasil e do mundo todo que estão, há décadas, desviando das pedras pelo caminho e fortalecendo essa corrente de inspiração e propulsão de outras mulheres. Elas, incluindo mulheres trans poderosíssimas, conquistaram e seguem conquistando seu espaço, cabines, estúdios, público, criam projetos, fundam labels, produzem festas, coordenam festivais imensos, abrem e administram agências, escrevem livros, iniciam movimentos fantásticos (Alô, Women’s Music Event), gerenciam outras artistas e por aí vai. A sensação de “poder fazer” foi ficando cada vez mais sólida e cá estou hoje, vivendo também a minha história.
Não só eu. Talvez você não saiba, mas o Alataj conta com um time fera de sete mulheres que atuam em diferentes frentes do site e que se apoiam todos os dias através da troca de opiniões, experiências e suporte profissional. Todas também inspiradas por outras mulheres, é claro. Nós, e todos os integrantes dessa família, buscamos constantemente o contato com cada vez mais artistas que fortaleçam um cenário de gênero mais horizontal. Não somos perfeitas, sabemos, mas enaltecer o trabalho de mulheres lésbicas, negras, trans é uma das nossas missões e, dia após dia, somos surpreendidos com cada vez mais figuras fantásticas que brilham os olhos e nos fazem sorrir – assim como aconteceu comigo no show.
Pois bem, hoje é Dia Internacional da Mulher. Sim, todo dia é dia, mas acreditamos que essa é uma data de conscientização e reflexão. Trazer as mazelas vividas pela classe feminina é necessário para iniciar um processo disruptivo no cenário, mas resolvemos principalmente trazer aos leitores e leitoras as qualidades, conquistas, capacidades técnicas e tantos outros motivos que fazem da mulher um ser inspirador, e não apenas para outras mulheres, mas para homens também. Afinal, a gente sabe que existe uma parcela que, além de compreender o cenário desigual que vivemos, atuam para que este se dissipe – provavelmente muitos de vocês homens que abriram essa carta, permanecem lendo até agora e se incomodam com a realidade.
Todas as mulheres do Alataj participarão dessa programação. Começamos hoje com o mix da potiguar Brisa Fernandes, a.k.a B-Waves, e caminharemos ao longo da semana por labels imponentes carregadas pelo poder feminino, artistas talentosas em ascensão, um Talks recheado de profissionais espalhadas pelo Brasil com um tema de grande relevância, lançamentos incríveis de produtoras no mundo todo, homenagem a uma faixa icônica de uma mulher e um editorial reflexivo com a participação de muitas atuantes no mercado.
Acreditamos que, enquanto seres humanos que compartilham do mesmo amor à música – uma arte tão poderosa e unificadora -, podemos caminhar lado a lado para a desconstrução de crenças limitantes e condutas retrógradas que impedem o progresso da sociedade, a começar pelo cenário em que participamos. Por isso, fica aqui o convite para acompanhar esta semana e proporcionar questionamentos e conversas é para todos.
À você, mulher: inspire-se. Não desista. Resista. Se una. Busque na mulher ao lado a força que você precisa e não a concorrente que você imagina. Saiba que ainda há muito para conquistar e um passo de cada vez, ainda que pequeno, já é muito. Há homens que também acreditam na tua luta. Jamais deixe de ser quem você é para se adequar a um sistema e, acima de tudo, entenda que a mulher é um ser humano poderoso, portanto, orgulhe-se disso.
À você, homem: escute às mulheres, com os ouvidos e com o coração. Olhe para elas e as admire. Tente entendê-las e faça o que puder, como puder, para tornar a sociedade mais igualitária. Um puxão de orelha no amigo quando necessário já é um ótimo começo. Respeite, apoie, indique, confie. Nós sabemos do seu valor. Saiba do nosso. Estamos juntos.
A música conecta.