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A música conecta

Alataj entrevista Bernardo Campos

Por Laura Marcon em Entrevistas 21.05.2020

Se você conhece hoje o carioca Bernardo Campos através de sua atuação em diversas frentes do cenário eletrônico do Rio de Janeiro, seja pela música como DJ e produtor ou trabalho de curadoria e produção de eventos, certamente entenderá toda a sua relevância para a cultura da música e capacidade de trabalho após conhecê-lo mais profundamente. Bernardo é participante ativo da história e crescimento do movimento eletrônico da sua cidade e região e possui um rico background musical e enquanto cidadão do mundo, que lhe serviram de alicerce para conquistar um patamar importante entre artistas e profissionais do ramo.

Suas experiências musicais ao longo dos anos abarcam os mais diversos estilos, do Rock’n Roll ao Trance, do House à brasilidades, do Disco ao Jazz, transformando-o em um DJ fora da curva, capaz de transitar entre gêneros com sutileza e agradar os mais distintos ouvidos, fato que o levou aos palcos de grandes festas, clubs e festivais conceituados. Como produtor, Bernardo também coleciona faixas originais e edits bem recebidos pelo público e colegas de profissão. 

E não para por aí. Ele também é um dos responsáveis por trabalhar ativamente em importantes projetos no cenário do Rio de Janeiro como a festa Base, que já recebeu mais de cinco mil pessoas em suas edições, a label party Underdogs e Pato com Laranja e a grandiosa RARA, que tem impressionado a cada edição com lineups coerentes, artistas consagrados mundialmente e proporcionando boas experiências ao público. Mas nós falamos sobre conhecê-lo mais profundamente, certo? Pois bem. Batemos um papo com ele sobre sua longa história com a música em todas as suas frentes que você confere a seguir:

Alataj: Olá Bernardo, tudo bem? Obrigada por falar com a gente! Quem te conhece hoje pelo seu trabalho pode imaginar que você possui uma história interessante com a música então nada melhor do que começar perguntando sobre seus primeiros passos nesse universo. Como se deu seu primeiro contato com a música? Quando você percebeu que queria fazer dela sua profissão?

Bernardo Campos: Fala pessoal! Agradeço muito a oportunidade de poder falar um pouco de música com vocês 🙂 Bom, a música na minha vida sempre teve um papel terapêutico. A minha primeira lembrança marcante foi quando eu ainda era criança e fui estudar num colégio católico, não me adaptei bem e acabei me tornando bastante introspectivo. Nessa mesma época eu conheci algumas bandas que estavam surgindo como Nirvana e Alice in Chains e convenci meus pais a comprarem os Vinis das respectivas (sou da geração MTV anos 90). Eu chegava em casa da escola e botava os discos nas alturas, na vitrola que tínhamos na sala. Esse era o grande momento do meu dia e ali nascia uma conexão poderosa com a música, ali eu aprendi que a música podia me transportar para um lugar diferente.

Quando adolescente descobri que existia um Bernardo mais social e conheci as boates, eu ia em matinês como a Maxim’s e Fun Club, ambas no shopping Rio Sul no Rio de Janeiro. Ali aprendi que gostava de música de pista e gostava de bagunça. Comecei a curtir sons com mais grooves como Hip Hop, Miami Bass e também a entender os tipos de som que eu não gostava. Aos 15 anos fui morar fora e comecei a pegar um gosto para sons mais alternativos, na época o Punk Rock. Vim passar férias no Brasil e um amigo me falou que iria numa Rave. “Que negócio é esse de Rave ?” Foi um caminho sem volta. O Trance tinha acabado de chegar no RJ, era tudo novo, colorido, as pessoas se vestiam como hippies do futuro e aquelas músicas também futurísticas e hipnóticas me impressionaram muito. Eu não voltei mais para os Estados Unidos e agora eu queria fazer parte daquele universo, pesquisando e participando o máximo que pudesse.  Viajei o Brasil inteiro indo a festivais e fui muito feliz por um bom tempo, aquilo era a minha casa. Depois de um tempo a cena ficou muito grande, comercial e com uma vibe menos psicodélica e mais agressiva, então eu parei de ir e fiquei um tempo meio perdido. 

Foi quando um amigo meu me convidou para ir no Fosfobox, clubinho underground em Copacabana. Me disse que tinha um DJ que tocava a noite inteira nessa festa específica, esse DJ era o Maurício Lopes. Aquele dia ele tocou do House ao Techno, Acid, Electro e Breaks, uma verdadeira jornada de música eletrônica underground. Mais uma vez eu descobria um novo universo, bem diferente do Trance mas tão interessante quanto. Comecei a frequentar a cena todo final de semana e depois de algum tempo eu senti que era a hora de começar a tocar.

Sabemos que você morou um certo período fora do Brasil, o que por si só já é uma experiência engrandecedora e que provavelmente tenha te influenciado musicalmente. Como você comentou, conheceu sua primeira rave em férias no Brasil. Após este período, você experimentou música eletrônica em terras internacionais? Tem algo que vivenciou por lá que carrega em sua vida profissional até hoje?

Fui morar fora a primeira vez no auge da minha adolescência, acompanhando minha mãe. Ela tinha acabado de passar por varias situações difíceis, perdeu um emprego estável de anos, terminou um relacionamento e estava cheia da insegurança do Brasil. Eu não queria ir, estava curtindo minha vida de adolescente no Rio mas mesmo assim a acompanhei. O início foi bem difícil, eu sai da ensolarada cidade maravilhosa com uma penca de amigos e uma vida social ativa para uma cidade de 5.000 habitantes no interior da Pensilvânia (lá faziam menos vinte graus no inverno). Demorei para me adaptar mas quando rolou foi ótimo. Conheci uma nova cultura, aprendi que nem todo americano é  bitolado, fiz grandes amizades com uma galera super mente aberta. Tive algumas experiências psicodélicas e comecei a curtir música alternativa. Nesse primeiro momento o Punk Rock, num segundo momento bandas como Radiohead, Sonic Youth, Patti Smith, Lou Reed e uma turma do Hip Hop como Mobb Deep, Nas, Guru, Tribe Called Quest entre outros. Acredito que todos devam morar fora em algum momento da vida, é uma experiência que te enriquece demais, tanto no aprendizado de outra cultura como de si mesmo, já que você sai completamente da sua zona de conforto. 

Voltando ao Brasil e especificamente ao Rio de Janeiro, você acompanhou diversas fases desse cenário, certo? Da advinda da cultura clubber, ascensão e queda de estilos musicais e tantas outras transformações que permeiam a história da cultura eletrônica carioca. Conte-nos um pouco sobre essa trajetória e o que você acha do momento em que estão vivendo hoje em sua cidade e região?

Sim, esse ano faço 16 anos de carreira! Vivi vários momentos aqui na cidade, desde as épocas de Rave em Vargem Grande (Fazenda Alegria, Sítio das Pedras, Espaço Lonier), abertura e fechamento da Bunker (DJ Marky destruindo no Drum n Bass as quartas-feiras), Tim Festival com Daft Punk. As lendárias festas Delírio que trouxeram gente do calibre de Ricardo Villalobos, Richie Hawtin, Derrick Carter. MOO nas Casas Franklin e muitas outras coisas legais que já rolaram por aqui. Hoje em dia tenho orgulho de continuar essa história com a Rara.

O Rio é uma das cidades mais turísticas do mundo mas falta investimento no setor cultural, o que é difícil de compreender. De qualquer forma as produções independentes sempre dão um jeito de fazerem as coisas acontecerem. Os produtores da cidade são verdadeiros heróis.

Você é um DJ notável pela capacidade de transitar entre gêneros com muita sutileza e capaz de se adaptar às mais diferentes pistas de dança. Quais foram suas maiores influências musicais quando do início da sua carreira como DJ? Elas permanecem até hoje ou se transformaram ao longo dos anos?

Sets lineares não são a minha praia. Tem uma galera que sabe fazer muito bem, eu prefiro a mistura. A música eletrônica tem tantas vertentes que se combinam, eu não vejo graça em tocar apenas um estilo por horas. Meus DJs favoritos são os mais velhos, para mim quanto mais velho o DJ, melhor. É óbvio que existem novos DJs ótimos mas quanto mais velho o DJ, mais timbres estarão no seu cérebro e consequentemente no seu repertório (assumindo que esse não é um daqueles que parou no tempo e continua se atualizando e pesquisando novos sons). Um bom exemplo é o Laurent Garnier, ele passeia por estilos e timbres com maestria, fez isso na Rara e foi uma verdadeira viagem musical. Outro ainda mais eclético foi o Moodymann, um dos melhores sets que eu ouvi na vida. Eu curto muitos tipos de música para tocar um só estilo e também sou residente de um bar, o Pato com Laranja. Lá eu consigo tocar tudo que eu amo, de música brasileira, jazz a eletrônica, dependendo do momento.

O lendário Dama de Ferro e o ainda influente Fosfobox fazem parte da sua trajetória enquanto residente dos clubs. Qual foi – e ainda é – o impacto dessas residências, também em relação ao amadurecimento da sua carreira como DJ?

Peraí que eu vou pegar um lenço hahahaha. O Dama foi pra mim o melhor Club da cidade no quesito vibe. O after hours de sábado era emblemático, união de tribos com um único objetivo que era se jogar até quase meio-dia de domingo. Pessoas vindo de diferentes festas ou estando ali à noite toda, a bagunça era boa demais! Quem viveu essa fase tem histórias quase inacreditáveis ali dentro. Era escuro, enfumaçado e quando você saia do Club de manhã você ficava quase um minuto cego até seus olhos se acostumarem de novo a claridade. Eu tive a sorte de tocar lá por quatro anos quinzenalmente aos sábados, aprendi muita coisa, vivi muitas maluquices e tenho essa época guardada no meu coração como um dos melhores anos. 

A Fosfo foi o primeiro Club que eu toquei na vida. Foi lá que eu fiz minha primeira festa em boate e tive minha primeira residência, a Nano Hours. É um lugar muito especial para mim. O staff é muito querido, os donos e o que eles representam também, pois é muito difícil um Club underground ter tantos anos de sucesso numa cidade como o Rio de Janeiro (estão abertos há 16 anos). Eu fui lá recentemente e me diverti igual há anos atrás. A Fosfo é patrimônio cultural da cidade. 

Sua atuação como produtor de eventos também é relevante não só para o cenário do Rio mas em nível nacional, com produções de alto nível e um conceito musical apurado. A começar pela festa Base, que levou milhares de pessoas a pista de dança. Como foi esse desafio?

Eu comecei a tocar e quando achei que estava bom suficiente arrumei um gravador de set. Distribui o set para alguns DJs conhecidos e produtores da cidade e quase nenhuma resposta. Única resposta que eu tive foi de um DJ em um extinto site chamado Plurall, esse DJ era o Pedro Mezzonato. Ele estava num momento parecido comigo, começando e cheio de ideias e energia. Juntos decidimos produzir uma festa, a Nano Hours. Mais focada no Minimal, depois no Funky House. Esse encontro acabou resultando em posteriormente eu conhecer o Yuso e o Fella (amigos de infância do Pedro) e eles me convidarem para entrar na sociedade da Base. Fizemos quatro anos de festas lotadas no Fosfobox até que literalmente não se conseguia andar lá dentro, aí fomos obrigados a crescer e a fazer as festas em venues que a gente produzia tudo. Primeiro para mil pessoas, depois para 3 mil nos anos dourados da Estação Leopoldina, até chegarmos a última edição em 2018 para mais de 5 mil pessoas no Píer Mauá. A Base foi o maior aprendizado de trabalho da minha vida. Me deu uma responsabilidade que eu nunca tinha tido, me deu uma família (nas últimas eram mais de 300 funcionários por festa). Deu muito trabalho e muitas alegrias. No fim eu já não queria mais fazer festas tão grandes, e a curadoria, que sempre foi o que eu mais curtia, já não nos permitia trazer os nomes que eu admirava num mercado tão competitivo. Então eu sai fora e deixei a festa pro Yuso que era o único 100% produtor (os outros três DJs) e o cara que realmente merecia e tocaria ela da melhor maneira. A Base foi um enorme aprendizado e certamente uma época que eu fui muito feliz.

Acreditamos que um dos maiores projetos na sua carreira é a festa RARA, que visivelmente trouxe novos ares ao cenário eletrônico do Rio de Janeiro, com uma proposta conceitual e artistas mundialmente respeitados. O que esse projeto impactou na sua carreira? Algum momento especial que você guarda das edições?

 A Rara é um projeto lindo que surgiu da vontade do Francisco Frondizi em produzir uma festa fora da curva, resgatando a essência do Techno, House e Disco em suas formas mais puristas. Os DJs convidados muitas vezes podem ser considerados “lendas vivas” como Derrick May, Laurent Garnier, Carl Craig, Moodymann, Mark Farina, Miss Kittin, François K, Danny Krivit entre outros. Eu tenho a maior sorte do mundo de ser residente da festa ao lado do Filipe Raposo, juntos formamos os Rara DJs e sempre temos a responsa de abrir ou fechar a pista para esses dinossauros. A festa tem cinco anos mas o frio na barriga antes de tocar nunca passa, é incrível a sensação de tocar numa pista da Rara, um verdadeiro laboratório para experimentações sonoras. A produção é muito detalhista, sempre DJs convidados que somos fãs, locações incríveis e inusitadas e o público é super eclético, uma linda mistura de tribos. A RARA é um sonho em forma de pista.

Difícil apontar os melhores momentos mas não poderia deixar de mencionar mais uma vez os sets do Moodymann e Laurent Garnier. Miss Kittin tocou demais, Boo Williams foi inusitado de tão bom. Nossa última edição no Circo Voador em pleno carnaval também foi mágica com Seth Troxler fazendo um lindo long set.

Underdogs e Pato com Laranja também são dois outros projetos que você participa e que também seguem outros caminhos musicais, como o set de Jazz que você apresentou para este segundo. Conte-nos um pouco mais sobre eles!

O Pato com Laranja é um bar em Ipanema. Comecei um trabalho bem devagar com o Pedro Tinoco (dono e gerente de lá), e hoje tenho orgulho de ver aonde chegamos. Lá, além de residente, eu faço uma coisa que eu amo demais que é curadoria. Entender quais DJs se encaixam nos dias e horários certos e montar a grade. Lá a gente toca muita música brasileira, Downtempo, World music e no cair da noite sempre achamos espaço para uns beats de House e Disco. É um projeto que tenho orgulho de estar de frente na parte musical. Já o Underdogs é um coletivo de artistas e produtora de eventos, bem focado em sons mais tribais como Afro House, Minimal e edits. Está crescendo cada vez mais e temos viajado bastante pra tocar fora do Rio. Fomos os únicos artistas brasileiros a serem convidados a tocar na edição carioca do Circoloco, em pleno carnaval. 

Impossível não conversarmos sobre esse período sem precedentes que estamos vivendo e o impacto na vida dos profissionais do entretenimento. Você como atuante em diversas frentes desse mercado deve estar sentindo o peso dessa pausa nos trabalhos. Como tem passado esse período? Como você enxerga os próximos passos pós COVID-19?

Vejo esse período que estamos passando como uma ótima oportunidade de darmos um passo para trás para depois irmos mais à frente. Vamos ter que repensar tudo e nesse ponto vejo uma vantagem. O mundo precisava desacelerar e olharmos com mais cautela sobre nossos consumos. Espero voltarmos com uma consciência coletiva elevada quando a roda voltar a girar. No meu caso pessoal, nesses primeiros meses, eu fiz uma coisa que desejava há tempos: descansar. Me desliguei de tudo, voltei a conseguir dormir bem e me alimentar saudavelmente e tem sido maravilhoso! O próximo passo é voltar para o estúdio e produzir mas sem pressa e sem cobrança. Estou com um projeto no gatilho com o Fabio Santanna e temos um álbum assinado por uma gravadora muito bacana, uma mistura de Disco, Soul e música brasileira. Deve sair ainda esse ano.

Para finalizar, uma pergunta bem pessoal. O que a música representa em sua vida?

A música é TUDO pra mim. Durmo e acordo respirando música, nunca tive outro emprego na vida é assim será até o fim, espero. Como já dizia aquela canção: música é a resposta! 

A música conecta.

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