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A música conecta

Alataj entrevista Renato Ratier

É, os 20 anos chegaram. Mais de 7.300 dias se passaram desde que o club surgia na capital do Mato Grosso do Sul. É isso mesmo. Antes de fincar raízes na selva de pedra, o D-EDGE iniciou sua história em Campo Grande, funcionando de 2000 até 2005. Na linha de frente estava um cara obstinado, persistente e, acima de tudo, apaixonado por música: Renato Ratier.

Hoje, com seus 48 anos — mas com espírito muito jovem — podemos chamá-lo sem medo de visionário, não apenas por ter a arriscada ideia de construir um club de música eletrônica em território sertanejo, mas também por ter acreditado e seguido em frente em diversos outros negócios, sempre incansável e com fôlego para mais. 

Além da música, Ratier é amante do turismo, da moda, da arquitetura, do design, da natureza, da tecnologia, da cultura, da culinária, do agro e de tantas outras áreas que você nem pode imaginar. Através dessa variedade e dos contrastes que sempre fizeram parte de sua vida, adquiriu uma visão avançada do mundo, uma busca que não cessa facilmente.

Apesar de conduzir todos os seus projetos de forma intensa, seu nome pousou nos quatro cantos do globo conectado ao seu filho prodígio, o D-EDGE, casa de tantas noites (e dias) históricos, que já recebeu incontáveis DJs e que também o fez ganhar um condicionamento especial digno de um clubber faixa preta após tantos anos virando noites discotecando.

Tive a imensa honra de me encontrar pessoalmente com Renato Ratier há alguns dias para resgatarmos alguns momentos que fizeram parte da história do D-EDGE. Foi uma conversa longa, divertida, prazerosa e enriquecedora, afinal, não é todo dia que você tem a oportunidade de estar frente a frente com um dos nomes mais importantes da cena eletrônica underground do Brasil. 

Renato Ratier tocando no D-EDGE

Alataj: Renato, é um prazer enorme poder conversar com você. Vamos do início… Qual foi o gatilho que te levou a fundar o D-EDGE lá em Campo Grande/MT? Sei que você já organizava festas antes disso, tinha amigos de diferentes tribos, mas o motivo principal para dar início a essa empreitada, qual foi?

Renato Ratier: Muito obrigado pelo convite! Na verdade eu sempre frequentei muita matinê. A cultura dance me acompanha desde criança; lá pelos oito, 10 anos de idade, ficava dançando, enfim… gostava e tinha esse sonho de ter um club. E aí minha vida foi para outros lados, fui fazer Zootecnia e Administração, morei alguns anos fora e quando voltei comecei a produzir festas. Aí foi uma coisa natural. 

Campo Grande não tinha isso, comecei a fazer eventos em 1996 e teve uma explosão, uma festa chegou a ter 10 mil pessoas – isso em 97. A gente levava Kenny Larkin, Christian Smith, vários nomes que hoje são gigantes… Comecei a planejar o D-EDGE em 98 e a inauguração rolou em 2000. Eu sempre ia em clubs e pensava ‘nossa, quero ter um lugar assim’.

Em São Paulo, o D-EDGE fincou raízes em abril de 2003… o que te fez mudar pra lá? Barra Funda até então era um bairro meio que esquecido, né? Como foi a escolha do local?

Foi uma coisa natural… Além do club em Campo Grande, eu já tinha outras atividades, uma marca que trabalhava com moda, uma loja… aí fui tocar em São Paulo para uma festa de House, isso em 2001. Lá onde é o D-EDGE era um club chamado Stereo. Toquei lá numa festa pós São Paulo Fashion Week e aí o Oscar Bueno, que era promoter da casa na época, me contou que o proprietário (Tony) estava vendendo o espaço. Eu o comprei e transformei no D-EDGE. 

No começo eu fazia uma dobradinha com os artistas: eles tocavam quinta ou sexta em São  Paulo e sábado em Campo Grande. Os dois clubs funcionaram juntos por dois anos, até eu abrir outra casa em Campo Grande, chamada Tozen, que tinha um estilo étnico com influência oriental, “parecido” com o Warung. Tinha teto de capim, construção balinesa, dentro de um parque com pista aberta… esse club funcionou por mais cinco anos.

Vocês chegaram chegando, né? Muti Randolph assinou o design futurista e sofisticado do D-EDGE, que se mantém atual até hoje, após 17 anos… Como aconteceu essa conexão entre vocês? O santo criativo de vocês casou muito bem pelo visto…

É verdade… eu conheci o Muti no club L.ove, que abriu em 98, e eu estava abrindo o D-Edge em Campo Grande logo depois. Eu tava fazendo com um arquiteto local, e aí eu encontrei o Muti, ele começou a mostrar o trabalho dele, trocamos algumas ideias e mudei de arquiteto, porque gostei do trabalho dele. Por fim ele acabou fazendo o design já do D-EDGE de Campo Grande…

Li que há alguns anos rolou até yoga dentro do D-EDGE… vocês ainda buscam utilizar o espaço de maneira criativa além da noite? 

Fizemos as aulas de yoga e cada vez mais estamos trabalhando para ter como missão três conceitos: arte, cultura e educação. Inclusive temos um projeto de dar início a uma escola de dança!

Então em tudo que podemos envolver arte e coisas culturais para usar o espaço também de dia, vamos fazer. Já fizemos cinema; exibimos o filme do Woodstock, projeções, exposições… fora o DJ College, que também funciona lá. Nós colocamos vários puffs espalhados pela pista para galera poder usar enquanto rolam as atividades — e aí muitos já ficam para a festa [risos].

Mothership, Freak Chic, Moving… essas três noites se estabeleceram e parecem não ter data de validade. Sei que não há uma fórmula de longevidade, mas por que você acha que esses projetos duram tanto?

O que acontece: há um conceito pré-existente de cada festa. A Moving tem 15 anos, a Freak Chic tem 17 e a Mothership também. O after era um projeto chamado Paradise e mudou para Superafter. Há uma característica em cada noite, mas ao mesmo tempo ela vai se reinventando, acompanhando as mudanças que envolvem os gêneros. 

A Freak Chic, por exemplo. Ela era uma noite de Chicago House quando começou o D-EDGE, mas dentro disso vivemos transformações como Electro House, Disco, aí voltamos mais para o House. Tem momentos… mas ao mesmo tempo não ficamos engessados e procuramos flexibilizar. A Mothership é a mesma coisa: Techno mais clássico, Minimal Techno, Detroit Techno… a gente vai sentindo e trazendo essa evolução dentro da característica de cada uma.

Não dá pra esquecer também a Keep Rock também, né? O público entendeu essa mistura de estilos dentro do club? Você tinha esse background de Rock também? 

Na verdade eu sempre gostei de Rock, mas sempre fui muito “eclético” no que eu escutava, desde música clássica até Punk Rock; tenho uma coleção de CDs e vinis bem grande, acho que mais de oito mil discos… tem de tudo. Hoje reflete muito no que eu toco, faço sets de House, trago clássicos dos anos 90, Tech House, Techno, Melódico e isso se dá a essa bagagem e essa influência por ouvir vários estilos e gêneros. E depois isso com o D-Edge ficou mais forte. No começo o club abria de segunda a segunda: tinha noite de rock anos 80, Electro… Isso acabou me moldando, mas isso tudo já tava intrínseco. 

Teve também o D-EDGE Rio, que contou com algumas festas com o espaço ainda em construção e nunca chegou a ser inaugurado… há planos de continuidade para ele?

Fizemos cinco eventos no espaço e um fora dele. São cinco andares, fizemos no primeiro andar que era uma galeria de arte… Tiveram vários fatores que foram contra a inauguração dele. Primeiro a área onde o club está inserido, que é na zona portuária do Rio de Janeiro, e essa área passou por muitas transformações e construções do próprio governo, o que nos impossibilitou de progredir. 

Em seguida veio a crise. O mercado como um todo perdeu investimento de patrocínio, sofremos com isso e com o estado em crise, eu mesmo acabei ficando com o pé atrás… Aí estávamos com obra a todo vapor para inaugurar na metade de 2020 e agora parou devido a pandemia. O prédio tá lá, a obra está lá, é gigantesco. Pretendemos fazer um centro cultural, com galeria de arte, estúdio, restaurante, loja multimarcas… Quando voltar a normalidade das obras serão poucos meses para poder abrir.

Eu imaginei que o projeto tinha sido deixado de lado, não sabia…

Não, tá lá! Foi feito um investimento muito grande, né. Teve todo esse trabalho, essa expectativa, e bom, eu para desistir de um negócio é difícil [risos].

Você como head do club aposta muito em tendências, trazem muitas vezes nomes que vêm ao Brasil apenas para tocar no D-EDGE, mas também sabem do valor em manter as raízes, tanto que o time de residentes está sempre em ação (antes da pandemia). Como funciona esse equilíbrio?

Precisa ter esse balanço entre nomes gringos e nacionais. O club precisa ter sua identidade, as noites precisam de sua identidade, mas ao mesmo tempo precisamos de novidades e atrações de fora. Então é em cima disso que trabalhamos: sempre temos os residentes do club – grande parte deles está desde a abertura – e acho que isso que dá a cara e o conceito que o club tem.

Essa fusão vem de um equilíbrio: trazer convidados que fazem um trabalho novo, diferenciado e estão despontando, com artistas “clássicos”. A gente sempre está abrindo a porta para novos projetos, showcases, não temos panela. Temos nosso time, mas estamos sempre dando força para talentos e novidades.

Quando falamos em tendência também falamos em apostas e nem tudo são flores no caminho pra se tornar uma referência. Teve algum momento no meio dessa trajetória que você pensou em jogar tudo pro alto? Se sim, o que te fez continuar?

Assim, nunca foi fácil, existiram muitos desafios, sempre tem. Não foi fácil nos cinco anos de Campo Grande, não foi fácil nesses 20 anos de São Paulo… é difícil, o mercado é competitivo e teve a onda de clubs mais em baixa… mas se eu pensei em desistir? Não… Tive momentos que fiquei menos estimulado, mas só isso. 

Eu tenho 48 anos, vai chegar um momento que vou ficar cansado de tocar e administrar tudo isso junto dos meus outros negócios. Ainda tenho a carreira de DJ, negócios de segunda a sexta e finais de semana tocando… mas enquanto eu tiver motivado e feliz com o que estou fazendo, eu vou continuar, sou um cara duro de derrubar [risos].

É verdade! Li que uma vez você fez uma cirurgia nas costas e deu cinco dias e você já estava tocando, a galera te chamava de louco…

Foi mesmo [risos]. Lembro que foi até com o Solomun em Curitiba, aniversário de 12 anos Vibe, em 2013. Tinha recém-operado a hérnia de disco, o médico tinha me proibido de ir e acabei indo, com todo o cuidado, com cinta…

Li também que vários big names já se apresentaram no club sem cobrar cachê. Hawtin, Miss Kittin, Sven Vath, quem mais? Como isso aconteceu? Nos últimos anos isso ainda acontecia?

Hoje acontece ainda, mas não com a mesma intensidade do passado, porque quando abrimos o club ele era uma referência em design, iluminação, tivemos diversas publicações em livros e revistas especializadas em arquitetura, Frame, Architecture Now… Então os DJs que acabam tendo uma ligação com arte ficavam sabendo do club. Fomos um dos primeiros clubs do mundo a usar iluminação de led no mundo. 

Teve um episódio que estava Adam Beyer, Richie Hawtin e Marco Bailey que passaram em São Paulo, era uma quarta-feira e eles me ligaram para abrir o club, e isso já era tarde, cara. Eu falei: ‘opa, beleza’, isso na época do telemarketing, não tinha nada de rede social nem nada. Aí abrimos de forma relâmpago e mesmo assim tivemos umas 400 pessoas na casa, os três tocando… Foi inesquecível. 

Tiveram outros como DJ Hell, Tiefschwarz, Ellen Allien…Acontece ainda, vira e mexe alguns artistas pedem pra tocar lá sem cachê.

E comandar a carreira artística como DJ/produtor nunca foi problema tendo tantas outras iniciativas ligadas com música e demais áreas e negócios? 

É sim, um super problema [risos]. Recentemente eu fiz uma redução no quadro de funcionários, mas tínhamos mais de 200 funcionários diretos, fora os indiretos, afinal são diversos negócios para administrar: club, agência, ser DJ, sociedade na Alemanha, restaurante, marca de roupa, agronegócio… Então cada hora eu falando de alguma coisa: uma hora de cardápio, de roupa, de peixe, de DJ… correria sempre!

Final de semana eu era bem festeiro, gostava de ir para after e tal. Tocava numa festa quinta, depois sexta e quando via ficava dois dias nisso, sem dormir direito, só no avião… Hoje em dia eu procuro separar melhor minha agenda. Claro que acontece de ter noites seguidas, mas eu sempre prefiro ter brecha no meio, a não ser que seja gigs difíceis de negar, mas é super difícil, não só na questão mental e física, mas também a diferença entre as duas coisas. 

Para administrar qualquer negócio você precisa de lucidez e um senso prático, ser realista. Você trabalhando com números e coisas reais. Quando você tá no campo artístico, você tem que desligar esse campo, tem que se conectar e pensar fora da caixa, com sensibilidade, tanto pra fazer música quanto para discotecar. Então esse exercício de estar segunda-feira consciente para tocar os negócios, e aí você precisa se desligar para poder criar artisticamente… é foda! As vezes eu fico achando que eu sou meio louco, sabe? Pra enfrentar toda essa encrenca, mas enfim, faz parte [risos].

Quais são todas as frentes de atuação atualmente com a marca D.EDGE? 

Tem a D Agency, DJ College, D-Edge Records, D-Edge Records Black e o Olga.

Agora, tem uma novidade: o Bossa eu negociei um mês antes da pandemia, o ponto foi vendido. O estúdio futuramente vai para a frente do D-Edge no Oficina, espaço onde vão rolar diversas atividades: uma galeria de arte, lojas de disco, café, espaço de eventos… a previsão de inauguração era setembro. Agora a gente não sabe, estamos aguardando para retomar. É um projeto muito legal, vamos trabalhar com frequência com arte, cultura e educação.

Que outros projetos paralelos a marca já teve que merecem ser mencionados? O que era cada um deles?

Teve o On the Rocks, foi o que começou a noite de rock do D-EDGE; um outro projeto de anos 80, numa pegada mais Electro, comandado pelo Magal e Glaucia++; o Paradise, que era o projeto do after de sábado… todos eles ajudaram a construir a história de hoje do club.

E agora com a  pandemia… como você vê a recuperação do setor do entretenimento? A palavra-chave é reinvenção? Você acredita que quando a noite voltar deve haver uma ressignificação, uma paixão maior pela música?

Eu acredito que terá um valor muito maior sim, espero que as pessoas reconheçam ainda mais o trabalho dos artistas. Eu sempre lutei por isso, que as pessoas que fossem para noite tivessem essa experiência de convívio social, absorvendo a mensagem do artista. Então, o valor de sair, do convívio, do abraço, de encontrar os amigos, de celebrar a vida… acho que vai vir com muito mais força, assim como a valorização da arte.

O D-EDGE já está considerando novas práticas para a reabertura do club quando for permitido? 

Estamos sim, já cogitamos uma câmara de desinfecção, uso de máscaras, luvas, álcool em gel em vários cantos… mas a experiência do club não tem como ser diferente, ainda não tenho essa receita, não vejo como reinventar algo que só pode ser sentido no local, de forma presencial. 

Uma das alternativas seria também a reabertura com capacidade reduzida… você vê isso funcionando no D-EDGE?

Eu acho que aos poucos as coisas vão retomar, poderemos abrir com capacidade reduzida, mas acho que essas respostas ninguém tem certo ainda. Temos que ter paciência, é momento de se resguardar para voltar o quanto antes.

Para finalizar, um ping pong rápido: um erro que você cometeu e nunca mais vai cometer novamente? 

Como empresário: fazer sempre um bom contrato para evitar briga depois. Como artista: não ir para o after com uma gig no dia seguinte [risos]. 

Um aprendizado para levar pro resto da vida? 

Ser tolerante, paciente e perseverante, seja como artista ou empresário. Trabalhar com leveza e não se comparar aos outros.

Uma música que representa o D-EDGE, existe? 

Mad Situation, em homenagem ao China. Ele amava essa.

Um projeto/DJ dos sonhos para trazer ao club? 

Sonhava em fazer o Kraftwerk, infelizmente um dos integrantes acabou falecendo. Underworld ainda é um sonho também. Trouxe a grande maioria dos meus ídolos, Carl Cox é um que já foi no club, mas ainda não tocou.

Um b2b dos sonhos? 

Olha, já fiz com Loco Dice, Luciano, Villalobos, Miss Kittin, DJ Hell, Seth Troxler, The Martinez Brothers, é difícil… acho que vou de Carl Cox novamente, seria um desafio e tanto.

Um festival que você ainda quer tocar? 

Awakenings, sem dúvidas.

Uma música que você tá sempre escutando?

Difícil também, eu escuto mais Rock anos 80 e Reggae no dia a dia… Mas uma banda que tá sempre no repeat é Depeche Mode.

Em que momento o Renato Ratier se desconecta desse lifestyle para se sentir mais leve? 

Gosto de estar em meio a natureza, ficar com meus filhos, ver série, ler um livro, ir pra fazenda… tento guardar um final de semana completo a cada 45 dias para dar esse break.

Sua preferida para um ending set?

Não tenho, mesmo. Cada hora é uma coisa, cada momento é um momento.

Algo que você deixou de fazer e pretende voltar.

Eu tocava mal guitarra, agora to voltando aos poucos. Também coloquei a bateria em casa, então pretendo tocar mais instrumentos.

Uma dica que você daria para o Renato de 20 anos atrás.

Continue fazendo aquilo que você está fazendo, acredite e tenha perseverança, corra atrás dos seus sonhos, sempre.

A música conecta.

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