Possivelmente você já deve ter ouvido e/ou usado a frase: o não a gente já tem. É aquela típica expressão que justifica ideias malucas e que quase sempre trazem um resultado inesperado igualmente maravilhoso. Não sei vocês, mas faço uso dessa filosofia e já colhi algumas coisas bem bacanas assim (vide essa coluna e o que virá a seguir). E sabe por que eu a trago? Porque é dela que veio o resultado desse texto, mas como o case escolhido por mim é sagacidade pura, vou fazer uso desse atributo e eu não vou contar agora, você vai ter que ler. Então, segue o fio…
Voltemos aos anos 90, uma ótima safra para o mundo em diversos aspectos. Criatividade, ousadia e pioneirismo foram algumas das palavras de ordem. O Fat Freddy’s Drop nascia no final da década, em Wellington, capital da Nova Zelândia. O país vivia um dos seus melhores momentos no Reggae e Dub. Artistas já incorporavam diferentes referências estilísticas para compor seus sons e os mesclavam ao Jazz e baterias eletrônicas. Chris “Mu” Faiumu, aka DJ Fitchie, movimentava a cena e nas horas vagas chamava os amigos para fazer um som. Foi nas jam sessions ao lado de Toby Laing (trompete) e Dallas Tamaira (vocal), Warren Maxwell (tenor e saxofone alto), Tehimana Kerr (guitarra), Iain Gordon (teclados) e Joe Lindsay (trombone) que a mágica começou a rolar.
Eles começaram a lançar faixas pelo selo de Mu, o The Drop e se apresentar ao vivo. Aliás, a pira sempre foi o live act, músicas longas e improvisação, mas após alguns releases, eles decidiram bater agendas – já que todos pertenciam a outras bandas – e ir para o estúdio. Em 2005, nascia o Based On A True Story, o álbum mais vendido por artistas locais na NZ. Em 2007, Maxwell saiu e foi substituído por Scott Towers e ainda mais tarde, Mark Williams aka MC Slave (guarde esse nome) completou o time. Em 2009, Dr. Boondigga and the Big BW, encabeçou o topo das charts na NZ e fez a história se propagar pelo mundo, abrindo caminho para o fenômeno Blackbird, em 2013. Dali em diante, eles começaram a colecionar os sold outs nas turnês mundiais.
Dois anos depois lançaram Bays, o álbum com “mais cara de estúdio” e também com recursos eletrônicos mais presentes. Ano passado, o Special Edition Part. 1 veio mais modernista e mostrando uma outra faceta deles.
Agora pense comigo na complexidade dessa equação: Reggae, Dub, Jazz, R&B, Soul, Funk, Hip Hop, muita instrumentalização, baterias eletrônicas, Techno (aham) e usar das artimanhas jazzísticas de improvisação com todas essas engrenagens girando cadenciadas. Uau! Esses caras definitivamente levam a teoria da musicalidade muito a sério. Como é mesmo a história do super-poder do primeiro texto? Pois é! Mas muito melhor do que a pessoa que vos escreve contar a história, é abrir espaço para uma inesperada, porém sagaz, entrevista cheia de boas energias com MC Slave. E aqui deixo registrado o meu muito obrigada ao Lucas Rodrigues, por acreditar, assim como eu, que “o não a gente já tem” e ter feito essa ponte surreal com eles. Recupere o fôlego porque valerá a pena:
Alataj: Olá gente, tudo bem? Primeiramente obrigada por essa oportunidade! Vamos do começo: vocês começaram a se encontrar nos anos 90, outros tempos completamente diferentes do que temos hoje. Todos faziam parte de outros projetos focados em Reggae e Dub essencialmente. Como era a cena musical de Wellington e do país naqueles tempos? E como é hoje?
MC Slave: E aí, como estão? Vou dar meu melhor aqui para responder as perguntas. Acho que muitas das razões pelas quais a música Reggae surgiu na cidade foi por causa de um coletivo conhecido como Roots Foundation, eles e o DJ Fitchie eram responsáveis em dar ótimas festas em espaços alternativos. Muitos músicos que participavam da escola de Jazz iam à essas festas e acho que o som influenciou e inspirou muitos garotos na época. Quando DJ Fitchie começou a montar a banda, foi algo natural, o som meio que os absorveu. O Freddy’s é muita coisa, mas a influência maior veio dessa crew. Hoje, é interessante observar um novo movimento da Dance Music aqui. Há um coletivo chamado 121 Crew e eles são responsáveis pelas melhores festas de Techno e House da cidade. Mu e Fellis sempre tiveram uma profunda afeição com o Techno e batidas eletrônicas e agora o que parece é que há uma nova geração chegando interessada em fazer coisas boas nesse nicho.
Quando se escuta o FFD pela primeira vez a gente fica tentando colocar todas as peças juntas e o que se nota é a presença Reggae, Dub, Jazz, R&B, Soul e também do Techno. Como que vocês começaram a misturar todos esses tipos de música juntos? Como é o processo para chegar nisso?
Todos nós influenciamos a banda, independente de como tudo isso se fundiu, são apenas as nossas influências aparecendo. Todos nós amamos os mesmos estilos, mas acho que os indivíduos trazem suas coisas favoritas para a mistura. Dallas, por exemplo, ama música Soul, contemporânea e clássica e R&B. O Dub traz aspectos do Techno, isso é coisa do Mu e Fellis e então temos as influências do Jazz de Toby, Scott e Joe, já que eles vêm dessa escola. Eu amo Hip Hop, eu cresci nele. É uma espécie de combinação, simplesmente colocamos tudo no liquidificador e aí resulta no que o Freddy’s faz.
Li recentemente uma entrevista você mencionando a seguinte frase: quanto mais instrumentação, maior é o som. Quanto mais combinações de sons, mais dinâmico ele pode ser e mais impressionante de se olhar. De fato! E aqui temos a forte presença dos instrumentos ligados à música eletrônica. Essa fatia vem ganhando cada vez mais presença no seu som. Como é essa junção dos mundos?
Conforme a banda evoluiu e aprendeu novos truques, pegando novos instrumentos ou novos brinquedos, as coisas foram surgindo. A gente obtém um novo instrumento ou um novo sintetizador ou uma nova bateria eletrônica e os meninos mergulham nisso. A banda sempre tocou instrumentos ao vivo com batidas eletrônicas, independente do Reggae do Techno ou do House, isso sempre fez parte do trabalho. Acho que o que nos fez ser capaz de sair em turnês com tanto sucesso é o casamento dos instrumentos com os recursos eletrônicos. Sempre foi assim.
E como o Techno entrou nessa história? A gente leu que vocês escutam Techno alemão e esse é basicamente o “badass Techno”. A gente nota nos shows essa mistura de mundos: a improvisação do Jazz e uma espécie de long set como se faz na música eletrônica. Como é isso?
Ai, meu Deus [risos]! Isso nunca acontece de um único jeito, depende da música e do que está rolando. Nosso tecladista e DJ costumam trocar a linha de baixo, sintetizadores e trazer diferentes sons a cada momento. Às vezes rolam samples, às vezes é ao vivo, às vezes rolam ambos, mas não há uma regra. Sobre a música Techno, nós amamos isso e eu acho que para algumas pessoas, o Freddy’s é mais Reggae, mas é importante saber que não é só isso. A influência do Dub é muito forte e é onde esses dois mundos se encontram. É lindo ouvir Deep Techno e Dub Techno, eles se completam totalmente. Passamos muito tempo na Alemanha durante as turnês e, claro, a música Techno lá nunca foi tão clara para mim do que quando fomos a um clube eu pensei: Uau, agora eu entendi! Quando você vê e ouve em um dos seus ambientes de origem, tudo faz sentido.
Você estão longe de nós, mas não existem barreiras na música, certo? Vocês conhece alguma coisa sobre a cultura musical brasileira? Vocês já pensaram em inserir algo assim no seu som? Seria incrível…
Eu também acho que seria incrível [risos]. Eu amo a música brasileira, temos uma grande comunidade aqui e temos noites regulares de música brasileira. Eu amo essas coisas, minha mãe costumava ouvir isso quando eu era criança. Eu sou fã do estilo e seria ótimo incorporar esses elementos ao nosso som. Afinal, você nunca passa uma faixa de Bossa Nova, você a escuta inteira. Quem sabe? Tudo é possível, no futuro pode acontecer…
Vamos falar um pouco sobre o momento presente. Pelo que está registrado na história, eventos marcantes sempre abalam a estrutura comportamental e parece que o cultural sempre tem um salto nisso. Por exemplo: a reunificação da Alemanha, a ditadura militar no Brasil, sem falar nas guerras e outras pandemias. O que você acha da tendência musical para o futuro a partir de agora?
Wow! Essa é uma grande pergunta. O que eu acho incrível é que os gostos das pessoas são tão abertos quanto a música. Antes, as pessoas costumavam ficar em um só lugar nesse quesito e não olhar muito ao redor e sinto que agora elas abraçam muitos tipos de música, com a mente mais aberta. Não tenho como prever o caminho, mas sei o que amo e sinto que nunca tivemos tanto acesso à músicas incríveis. E é impressionante, porque há muita música boa a ser descoberta e pode vir de qualquer direção. Sendo assim, isso despista um pouco essa loucura ao redor do mundo e isso é lindo. Em tempos difíceis, acredito que música e artistas em geral podem refletir isso e achar uma maneira de ajudar as pessoas, é uma coisa medicinal. Todo o resto pode ficar realmente caótico, mas se a música for boa é suficiente. Como Bob Marley já dizia: quando a música te atinge, você não sente mais dor. É sobre isso!
Você tem feito muitos shows e turnês na Europa e Oceania nos últimos anos e sabemos que agora a Nova Zelândia está indo muito bem em relação ao cenário de pandemia global, mas ainda afeta o fluxo das coisas por lá também. Como esse momento foi para você?
Nós cancelamos um bocado de shows esse ano. Nós chegamos a fazer um show incrível em Frankfurt, mas assim que ele terminou nós não sabíamos mais o que iria acontecer, os shows estavam sendo cancelados, países estavam fechando as fronteira, então voltamos pra cá. Tivemos uma breve liberdade de alguns meses, mas agora acabamos de voltar para o lockdown, por causa de uma nova onda de transmissões. Se a gente puder se trancar no estúdio será ótimo [risos], mas temos alguns planos para o verão na Nova Zelândia, talvez ir para a Austrália, mas é difícil saber. O que aprendemos esse ano é que tudo é possível e precisamos estar preparados. A parte boa é que estamos dando continuidade em nosso próximo álbum.
E os planos futuros, algo vindo por aí? Teremos um Special Edition pt. 2?
Sim, se ficarmos em casa teremos o Special Edition parte 2 ou algo próximo a isso. E desde que estamos em casa, gravamos um álbum ao vivo, em um show apenas pra gente. Usamos um teatro como um estúdio e gravamos algumas músicas que os fãs gostam e também uma música inédita. Vamos lançar isso. Essa é a parte boa de estar assim, as novas músicas poderão vir mais rapidamente que o normal.
E para fechar: uma pergunta que sempre fazemos no Alataj: o que a música representa em sua vida?
Representa tudo, representa a batida da minha existência, tudo que faço está envolvido com isso e como disse antes, quando os tempos estão difíceis, a vida está dura, eu encontro alegria na música, isso não tem fim. Eu não consigo imaginar um mundo sem isso. E esse sentimento positivo quando você escuta um bom groove, uma boa batida, essa é a mágica! Honestamente é isso que procuramos: buscar esse sentimento, encontrar essa energia. Música é excelente [risos]. Muito obrigado, Alataj!
Olha, nem sei explicar a vocês a gama de sentimentos bons dentro de mim após essa entrevista, mas tenho um show que pode explicar. E assim encerro essa história, espero que tenham curtido o passeio.
A música conecta.