Uma das coisas mais abstratas sobre o que a música nos traz é a possibilidade de nos fazer sentir em outro tempo que não o agora. Mahmundi, quando cruzou meu caminho nesse algoritmo de casualidade da vida, me trouxe justamente esse delírio. Ação e reação quando ouvi Calor do Amor em uma festa de noite quente do Rio de Janeiro – sua terra – e que me transportou diretamente para outro tempo que eu não vivi (olha o fator abstrato aí), quase como um filme que passa na cabeça sobre algo que você gostaria muito de sentir. “E aí, esse é o calor do amor, como num sonho bom e o som da sua voz…” essa frase pronunciada por uma voz macia, inebriante, flutuava sobre uma batida crua, sintetizadores oitentistas e claps sequenciais vivos. Não sobrou muito o que fazer a não ser correr para o Shazam e eu devo ter escutado essa música mais de mil vezes já. Foi nosso encontro e hoje eu trago essa história para vocês na Sneak Peek.
Marcela Vale, conhecida como Mahmundi, é uma versátil cantora, multiinstrumentista, compositora e produtora musical, que tem se mostrado um dos nomes mais proeminentes da música popular brasileira contemporânea. Uma mulher preta que tem, sim, movimentado as estruturas sociais, mesmo diante de todos os percalços que tais características trazem. O timbre suave de sua voz e suas canções de paisagens sonoras leves são desprendidas de fórmulas, isso porque seus álbuns e EPs interagem entre si de forma dissemelhante, conectados hermeticamente por uma voz solar que começou seus primeiros passos na igreja evangélica que sua família frequenta.
Motivada a cantar, a jovem artista começou a divulgar seu trabalho no MySpace, quando tinha apenas 19 anos. Era ali também que ela pesquisava e aumentava sua bagagem. Seu sonho era tocar guitarra e produzir pessoas e foi através dessa força propulsora que começou a trabalhar como técnica de áudio no Circo Voador. Ela também foi vocalista, guitarrista e compositora na banda Velho Irlandês, até 2010. Após isso, a artista decidiu seguir carreira solo e produzir por conta própria. Em 2012, lançou, de maneira independente, o EP Efeito das Cores, que revela um estilo quase-particular, que entrelaça influências oriundas do Synthpop e sua levada oitentista, MPB, Soul, R&B, Rock, Lo-Fi e do Melody Funk. Setembro veio no ano seguinte e a guiou até seu álbum homônimo (2016), que carrega as gravuras estilísticas acima e que marcou sua mudança para São Paulo, na busca por lapidar-se artisticamente.
Anos depois, Para Dias Ruins, com a gigante Universal Music, rendeu à artista uma indicação ao Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa e o prêmio de produtora musical no WME. A artista já produziu e fez colaborações com Liniker, Linn da Quebrada e Diogo Nogueira e segue se metamorfoseando como uma agente de transformação.
Em seu mais recente álbum, Mundo Novo, também assinado pela Universal, a estética sonora desbrava outros caminhos, mostrando sua versatilidade, soando como essa mistura modernista entre Sandra de Sá com Rita Lee – ainda que seria limitante demais da minha parte resumi-la à uma comparação de antecessoras. Seus synths aqui dão espaço para um entrelaçar de Samba, MPB, Soul e sons orgânicos. Suas composições e letras, quase todas autorais, sempre trazem panoramas otimistas sobre a vida que oscilam em breves momentos melancólicos, mas adornados por uma fagulha de esperança.
Além do movimento que tem trazido à música, a artista manifesta-se constantemente sobre a temática de representatividade e se diz estar em constante desconstrução. Em 2019, ela twittou: Mulher negra lésbica é a revolução sim. Nunca deixe uma voz privilegiada e rasa querer desmentir e te explicar sobre questões que só você sente e entende. Ouça sua própria voz. Conte sua história. Precisa dizer alguma coisa? Mahmundi tem seguido seu conselho e contado sua história. O que antecede toda a jornada musical, segue um percurso árduo – como em toda vida negra. Tem dor, tem esforço potencializado e tem superação, sem romantismos.
Em sua entrevista para a Rolling Stones ela conta que foi adotada, trabalhou na praia, teve arma apontada na cabeça, já perdeu seu sobrinho de 17 anos, morto pela polícia e que por muito tempo teve a sensação de que não existia para a sociedade, quando estava na zona Sul do Rio.
Ainda assim, ela é uma entidade doce, capaz de pintar um cenário de leveza em suas obras: “e absorver a lei que diz que tudo pode ser, tudo é pra aprender, tudo é pra evoluir, tudo é pra viver“, como a poesia sorridente em Sem Medo. O seu mais recente projeto aconteceu no final do ano passado, no mês da Consciência Negra, onde homenageou e revisitou grandes artistas pretos na música brasileira. Intitulado Sorriso Rei, o projeto traz Tempo Rei, de Gilberto Gil, e Sorriso Aberto, de Jovelina Pérola Negra, através de novas interpretações feitas também por artistas pretos. Mahmundi assinou a direção criativa e produção musical. Confiram o documentário sobre esse projeto:
O que dizer? Dá pra dizer muito! Uma fonte de inspiração que traz em suas palavras a poesia de dias melhores e que tem revolucionado o cenário, honrando sua ancestralidade, honrando a si mesma e seu meio e mostrado a cada dia, uma capacidade criativa singular entre misturar a música popular brasileira com música eletrônica, rica em referências. Não percam ela de vista! Simples assim.
A música conecta.