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A música conecta

Denis Sulta: dez anos de It’s Only Real

Por Elena Beatriz em Storytelling 18.12.2025

Quando a faixa It’s Only Real, de Denis Sulta, começou a circular em 2015, ela entrava em pistas cheias, atravessava noites longas, funcionava em horários distintos e para públicos diversos. Havia nela uma emoção clara e aberta que se envolvia no contato direto com o corpo das pessoas. Dez anos depois, ao aparecer em uma nova leitura intitulada It’s Only Real 2025, a faixa permanece reconhecível, mas o entorno mudou. O tempo entre uma versão e outra do seu criador passou a importar tanto quanto a música em si.

Antes de Denis Sulta existir como personagem público, havia Hector Barbour, nascido e criado em Glasgow, formado em um ambiente onde a música eletrônica sempre esteve mais ligada à presença contínua do que à grandes projeções. A cidade oferece um tipo particular de educação musical. No caso de Barbour, a loja de discos Rubadub funcionou como espaço de escuta, troca e aprofundamento com outros agentes da cena e o Sub Club como escola prática de pista e comunidade. Foi ali que Hector desenvolveu uma relação com a música baseada em linearidade, observação e tempo — valores que, mais tarde, entrariam em choque com a velocidade com que sua carreira escalaria.

Ainda no início da década de 2010, Barbour deixou de apenas acompanhar o que ouvia e tocava nas pistas de dança e sua faceta enquanto produtor musical foi ganhando forma de maneira mais consistente, em diálogo direto com o que consumia nas noites de Glasgow. Para dar vazão à esse alter ego criativo, Hector passou a usar o nome Denis Sulta como extensão do espaço noturno. Denis Sulta passou a produzir para testar ideias, entender como certos climas se sustentam ao longo das horas e como pequenas variações de groove ou melodia alteravam a resposta do público, revelando alguém interessado em criar músicas que entendiam o funcionamento emocional da pista e que se desenvolvem por tempo suficiente para serem sentidas

Os primeiros lançamentos apareceram por selos profundamente conectados à cidade. A Dixon Avenue Basement Jams funcionou como porta de entrada. Pouco depois, a Numbers ampliou esse alcance, e It’s Only Real se tornou ponto em que Glasgow deixou de ser apenas a base e passou a ser também exportação daquela figura criativa. A faixa foi lançada em dezembro de 2015 pela Numbers, em um momento em que muitas pistas demandavam faixas de desenvolvimento longo e clímax emocional bem definido, caracterizando um momento de expansão das vertentes mais melódicas de House e Techno. Era o auge da busca por “emotional bangers” — faixas com peso suficiente para sustentar picos, mas com equilíbrio claro entre impacto e sensibilidade. Foi exatamente isso que ele nos entregou.

A partir daí, a carreira de Sulta acelerou de maneira mensurável. Em julho de 2015 — ainda antes do lançamento oficial de It’s Only Real — ele já tinha uma gravação de Boiler Room em Glasgow circulando como cartão de visitas. Nos anos seguintes, os convites passaram a incluir palcos como Berghain/Panorama Bar, Time Warp e Awakenings. Nesse mesmo movimento, Denis começou a organizar um espaço próprio para a sua assinatura, sem depender apenas do que outras gravadoras ofereciam. Em 2016, ele anunciou a criação da Sulta Selects, começando pelo EP Nein Fortiate/Dubelle Oh XX. O reconhecimento formal chegou pouco depois: em 2019, Denis Sulta venceu o prêmio de Best DJ no DJ Mag Best of British Awards

Esse crescimento acelerado, no entanto, também marcou um ponto de inflexão pessoal. Em entrevistas ao longo dos anos, Sulta falou abertamente sobre períodos de instabilidade emocional, ansiedade, autossabotagem, os efeitos da rotina intensa de turnês em meio à pressão constante de produzir e performar, no sentido amplo da palavra. Diferente de um discurso genérico sobre cansaço, suas falas abordavam comportamentos autodestrutivos, abuso de substâncias e a dificuldade de sustentar uma persona pública expansiva enquanto lidava com instabilidades internas. A figura do “party boy”, presente nas redes e nas pistas, começou a entrar em conflito com a necessidade de cuidado, pausa e reorganização do seu eu interior. Neste sentido, a busca por terapia e a redução consciente do ritmo de apresentações marcaram um momento de recalibração como tentativa de permanecer em movimento sem se perder no processo.

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Essas questões passam a atravessar sua produção de forma mais direta. O EP Aye Spoake Te Sumwuhn & They Listenhd, lançado em 2019 pela Ninja Tune, apareceu nesse contexto como um trabalho mais introspectivo e pessoal. O projeto se afastou de singles voltados ao pico de pista e apresentou uma abordagem mais fragmentada e pessoal, com samples da própria voz e um quê de fragilidade que, mesmo mantendo conexão com a pista, se permitiu criar climas menos diretos, abrindo espaço para introspecção, identidade e observação interna, sintetizando perfeitamente a contradição entre a imagem pública e os paradoxos que refletem na vida privada. A recepção da imprensa destacou justamente esse caráter mais íntimo, apontando o disco como um dos momentos mais transparentes da sua discografia.

A partir desse ponto, a relação de Denis Sulta com a própria carreira passou a se reorganizar de maneira visível. A redução do ritmo de shows em determinados períodos, o retorno mais frequente ao estúdio e a reavaliação do papel da persona pública indicam um artista interessado em permanecer ativo sem repetir automaticamente os mesmos padrões que haviam impulsionado sua ascensão. A Sulta Selects ganhou novo peso nesse processo, como ferramenta de controle criativo, permitindo lançamentos menos condicionados ao imediatismo do mercado e mais alinhados ao seu tempo interno.

É dentro desse momento de maior controle e escuta que It’s Only Real 2025 aparece. A nova versão não desloca a faixa do lugar que ela ocupa na história, nem tenta adaptá-la a um outro momento da cena. O que se percebe é uma revisão cuidadosa: a progressão permanece, a carga emocional segue presente, mas a música se organiza com mais espaço entre os elementos e uma relação menos ansiosa com o clímax, sintetizando perfeitamente o aprendizado internalizado pelo artista ao longo dos anos.

Ao longo dos últimos anos, essa forma de construir tensão e emoção passou a reverberar em uma geração mais nova de DJs e produtores. Faixas de Denis Sulta funcionam como ponto de contato entre referências clássicas do House, do Techno e das variações que surgiram depois, passando a lição de que a emoção não é efeito imediato, mas algo que se acumula quando você permite direcionar sua atenção — ao seu redor e a si mesmo.

Denis Sulta ocupa um lugar particular dentro da música eletrônica contemporânea. Sua trajetória atravessa uma década marcada por expansão emocional na pista, pela intensificação da exposição pública e pela necessidade crescente de discutir saúde mental, autoimagem e permanência artística. Entre a figura carismática que domina a cabine e o trabalho menos visível de transformações internas, sua carreira oferece um ponto de atenção preciso sobre um tempo em que criar impacto deixou de ser suficiente e aprender sustentá-lo com autocuidado passou a ser parte fundamental do percurso.

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