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A música conecta

Fandango: uma dança entre Berlim e Brasil

Por Redação Alataj em Storytelling 01.04.2025

Texto por Gustavo Drullis

Areia, água, sol. Esta poderia ser uma ótima descrição para os dias de verão no Rio de Janeiro. Ou também em Berlim, conhecida por ser epicentro da música eletrônica mundial, mas não tanto por seus lagos espalhados pela cidade. Fazendo uma inusitada ponte transatlântica entre esses dois mundos distantes, é um pouco da calorosa energia carioca – e brasileira – que o coletivo berlinense Fandango leva para as festas que o consolidaram como um dos fervos mais quentes do momento na capital alemã, em um desses lagos. Não à toa, em 2024 o evento foi ao Rio pelo segundo ano consecutivo, e novamente deu um pulinho em São Paulo. Em 2025, o coletivo promete retornar ao país para continuar a tradição anual, mostrando que busca se tornar parte do circuito nacional.

Pode parecer aleatória, mas essa conexão do coletivo com o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, tem motivo. Em 2022, alguns dos membros da Fandango – fundada em 2018 por Tania Just, Mark Gill, Sisi Savidge e Dave Murrin – passaram uma jornada de seis meses aqui, onde foram recebidos de braços abertos. Foi uma experiência transformadora, que os fez se conectar com a rica cena local. Assim começou a história de amor com o nosso país. A nossa cultura intensa, sua malemolência, pessoas hospitaleiras e uma disposição à experimentação foram o match perfeito com os valores que o coletivo busca promover em suas igualmente receptivas festas em Berlim, onde impera um forte senso de comunidade, diversidade, inclusão e respeito. 

No Rio, eles observaram que amigos, promoters, DJs e romances trocavam os agitos intensos de sábado por encontros na praia durante a semana. Descansadas e com a energia renovada, mas ainda assim carregando o brilho do fim de semana, as pessoas continuavam a construir as conexões que haviam feito em festas em um ambiente muito diferente – um ethos que ressoa fortemente com o que coletivo propõe em Berlim. Foi essa experiência que buscaram reproduzir na capital alemã, posteriormente, onde os eventos são projetados para parecerem despretensiosas reuniões de amigos. 

Nosso tempo no Brasil, junto à energia vibrante da cena local, marcará para sempre um ponto de virada para a Fandango. Tivemos inspiração profunda em experiências da cena do Rio de Janeiro, onde conhecemos pessoas e coletivos que nos acolheram em suas comunidades. Muitas dessas pessoas criam num contexto de problemas sociais e econômicos incomparáveis ​​a tudo o que já vivenciamos na Europa. Sua motivação, resiliência e talento incríveis, juntamente com a abundância de produtores, DJs e clubbers talentosos, nos deixaram profundamente inspirados. Ao retornar à Europa, fomos movidos por uma nova determinação de fazer da Fandango uma plataforma que pudesse conectar as culturas e comunidades que tanto nos influenciaram”, conta o quarteto.

Da esquerda para direita: Mark Gill, Sisi Savidge, Dave Murrin e Tania Just

Como no Rio, foi justamente na “praia” do Plötzensee, um entre quase cem lagos de Berlim, que a Fandango começou a promover as festas pelas quais foi parar na ponta da língua de clubbers de carteirinha e até frequentadores menos assíduos da cena – um contraponto aos incontáveis eventos que acontecem todos os dias em clubes da cidade. Iniciados em 2022, logo após a instigante visita ao Brasil, os hypados encontros às terças-feiras, que começam à tarde e se estendem até o anoitecer, são a pura ferveção de verão. Banhistas do lago, que é aberto ao público, tomam sol, nadam e curtem, se misturando às pessoas que estão lá para dançar, flertar, apenas relaxar com amigos ouvindo um som – ou também nadar e tomar sol.

Para os que estão se afastando dos ambientes intensos de baladas, é uma maneira de permanecer ligado com a cena e a música em um local mais acessível e menos estimulante”, destacam os fundadores. O ambiente ao ar livre, com o lago, a areia e árvores ao redor, dá uma sensação de liberdade que contrasta radicalmente com aquela vivida dentro da maioria dos tradicionais clubes berlinenses, escuros e industriais. Com essa abordagem, as pessoas fazem pausas da pista de dança em diferentes cenários, descansando, se reconectando consigo mesmas, se conectando com as outras e apreciando o espaço ao redor. 

Longe de praias, no entanto, curiosamente a primeira empreitada brasileira da Fandango não foi aqui, mas sim em Berlim, em parceria com o coletivo Blum. A festa, que rolou em agosto de 2022, no clube Oxi, um mês depois do início do projeto no lago, contou com seus DJs residentes, além de nomes como Nikkatze, a idealizadora do coletivo paulistano, e Melanie Havens. A aterrissagem inaugural no nosso país se deu de fato no fim de 2023, no Rio, com participações de peso, como Flo Massé, Valesuchi, Larissa Jennings e Escola de Mistérios, além de um showcase da gravadora da casa, Púca Sounds, focada em combinar ritmos orgânicos com um som eletrônico moderno, no Caracol, em São Paulo.

Em dezembro passado, a sua passagem mais recente pelo país, foi a vez dos residentes Murrin, Gill e Just fazerem a trilha sonora da noite, novamente no Rio, trazendo consigo Big Leg, talento local de Berlim, ao lado dos DJs brasileiros Capetini e Joy. A estadia pela cidade foi marcada também por uma inédita festa no barco, daquele jeitinho carioca, ao lado do coletivo Legalzona. Apesar de uma inesperada tempestade, pela qual a festa precisou parar por um tempo, a navegação pelos mares foi um sucesso. Eles fecharam essa última vinda ao Brasil com um retorno ao Caracol, em um rolê que contou com os residentes – desta vez representados por Just, Savidge e Gill – mostrando o som do coletivo para São Paulo, ao lado do DJ local Guza.

A cada visita, ficamos mais sintonizados com o crescimento orgânico e o significado desse relacionamento transatlântico. No Brasil, temos profundo compromisso como coletivo para garantir que continuemos a promover uma ponte para os muitos artistas emergentes que recebemos em nossos eventos em Berlim e por toda a Europa. Essa troca está no centro do que fazemos e nos dedicamos a apoiar esses artistas de todas as maneiras que pudermos. Esperamos poder continuar nossa tradição anual da Fandango Rio para nutrir a crescente comunidade que temos aqui”, prometem. 

As festas na “praia” do Plötzensee, que se tornaram  um hype na cidade

De fato, a troca da Fandango com o nosso país vai além dos eventos regulares por aqui – a conexão do coletivo com o Brasil também é extremamente musical. O intercâmbio artístico já é parte quase essencial do seu universo sonoro. “Os DJs brasileiros trazem uma energia e diversidade únicas que se alinham com nossos valores e a vibe que tentamos criar. Sua capacidade de misturar estilos diferentes e se conectar com o público ressoa fortemente com nossa comunidade”, ressaltam sobre as qualidades que fazem dos nossos artistas um tempero especial nos line-ups das festas em Berlim. 

Pelas suas pistas passam constantemente DJs brasileiros, algumas vezes de repeteco. São artistas como Kenya20Hz, Carol Mattos, os membros da Gop Tun (Caio T, Nascii, Gui Scott e TYV), Millos Kaiser, Giu Nunez e Renata do Valle. A presença mais recente foi de Alírio, residente da Mamba Negra, de SP, que tocou na festa no último dia 23. Uma das residentes da Fandango é Moretz, DJ brasileira baseada na capital alemã, que se tornou parte integral do coletivo e se apresenta regularmente nos eventos, personificando bem essa ponte entre os dois países, inclusive em termos musicais.

O som do rolê, aliás, é um caldeirão de ritmos da música eletrônica, onde pouco importa o gênero, mas sim a partilha da boa música, sem precisar levar tudo muito a sério. Com artistas – e suas respectivas vibes – cuidadosamente organizados ao longo do dia para fluir junto ao ciclo natural do amanhecer, entardecer e anoitecer, uma Fandango pode facilmente começar na Disco e terminar no Trance. Em sets que duram quatro horas ou mais, sempre com muita liberdade artística para experimentação de forma despretensiosa, se misturam talentos expoentes locais de Berlim, que reúne DJs do mundo inteiro, assim como nomes mais consolidados ou até desconhecidos. 

Ainda que não tão difundidos por aqui, artistas como DJ Fart in The Club, 131bpm, DHC, Telephones, eoin DJ, E-Talking, DJ Sweet6teen, Angel D’lite e Stella Zekri estão fazendo as pistas mais fervidas da cidade. E DJs importantes da cena eletrônica mundial, como Palms Trax, Roza Terenzi, D. Tiffany, Daniel Avery, Objekt, Budino, Fantastic Man, Byron Yeates, CCL e Spray deixaram sua marca pela festa, assim como em clubes, raves e festivais no Brasil e no mundo. A prioridade são artistas que ajudam a criar paisagens sonoras diversas, capazes de se conectarem com a comunidade da festa – destacando-se talentos sub-representados e DJs que se alinham com o ethos de inclusão e cuidado. “Não se trata apenas da música que tocam, mas de como contribuem para a vibe geral da festa”, diz o coletivo.

Nascer do sol na Lighthouse

Há também um segredinho. “Outra regra não escrita que sempre seguimos é: independentemente da música, nossas escolhas funcionariam juntas em um jantar, ou seria estranho? Essa abordagem requer entender os DJs em um nível pessoal ou musical, garantindo uma sinergia natural. Não se trata tanto de seguir um estilo específico, mas sim de criar uma jornada que pareça dinâmica e inclusiva. É um equilíbrio de energia, emoção e diversão que mantém as pistas de dança vibrantes e dinâmicas. Em sua essência, o som reflete nossa comunidade – diversa, de mente aberta e cheia de energia”, revelam.

Não é durante o verão, entretanto, que essa pluralidade é melhor evidenciada. Quando as temperaturas esfriam e o céu fica nublado, durante o outono e a primavera, se torna impossível festejar ao ar livre. É aí que os clubbers se mudam da “praia” para locais fechados nas imediações do lago, onde três pistas de propostas diferentes dão outros tons ao rolê, que rola sempre aos domingos, do amanhecer até a meia-noite. Fechado ao público geral, o lago se torna um playground para os frequentadores. Sem a necessidade de coexistir com os banhistas, a festa ganha as energias de uma autêntica rave. 

Tudo aconteceu quase por acaso. Após o primeiro intenso verão na “praia” e o seu crescente hype, os organizadores se reuniram com os gestores do lago para discutir alternativas, descrentes de que seria possível continuar a festa durante os meses gelados. Eles foram surpreendidos pela possibilidade de ocuparem uma pequena sala com janelas de vista panorâmica dando diretamente para a água. “Nós perguntamos a eles, ‘onde o sol nasce?’. Quando eles apontaram para as janelas e disseram, ‘através delas’, imediatamente soubemos que tínhamos a chance de criar algo realmente único e que pelo menos valeria a pena tentar”, relatam.

Deu muito certo. A cada duas semanas, clubbers se deslocam até o local, afastado do centro da cidade, para vivenciar o amanhecer dentro da Lighthouse (farol, em inglês), apelido carinhoso que a pista de dança principal ganhou. A maneira como o sol da manhã entra pelas janelas coloridas se tornou uma marca registrada do que torna os rolês especiais. O local se assemelha a uma sala de estar, com plantas, sofás, poltronas e lustres – algo que vai sendo construído e modificado aos poucos, no melhor estilo DIY, atendendo às necessidades da festa e feedbacks dos frequentadores. 

A celebração possui uma atmosfera intimista de house party, algo que a Fandango já vinha cultivando desde o início, fazendo suas primeiras edições em locais pequenos e aconchegantes da cidade. Mas não se engane com o clima aparentemente tranquilo – com o calor humano que se acumula durante o dia, uma névoa de suor e fumaça se condensa, transformando o local em um digno inferninho tropical, como amamos no Brasil. É aí que a festa chega ao seu ápice. Sem carão, as pessoas colocam de lado as diferenças, abraçando, ao mesmo tempo, a própria individualidade e o espírito coletivo, na maior ferveção e intensidade. “Queríamos criar um espaço seguro onde clubbers e artistas pudessem se expressar e se unir, apesar das possíveis diferenças aparentes”, comenta o quarteto  sobre uma das motivações por trás da concepção da festa.

O sucesso dos rolês no lago veio acompanhado de um inevitável crescimento de público. Duas novas pistas surgiram em outras dependências do local, tanto para acomodar o maior número de pessoas quanto para explorar novos horizontes musicais, contrapontos ao acelero típico da noite berlinense. A Cave (caverna, em inglês) é um ambiente de chill out, onde se ouvem texturas mais experimentais e ambient, algo incomum na capital do Techno – um respiro íntimo em um espaço relaxante e reflexivo, onde é possível se envolver em uma escuta mais profunda. Já a Aquarium (aquário, em inglês) se trata de um mergulho em ritmos mais lentos, mas ainda assim dançantes.

A Aquarium

Inaugurada em janeiro de 2023, a pista é um bom exemplo de como a Fandango busca trazer “um antídoto à cultura de clubes muitas vezes exclusiva e rígida em Berlim”, nas palavras do coletivo. Em termos de som, não há restrição de gênero, mas sim de BPM, que só pode chegar a 115 – algo incomum em tempos em que a música eletrônica só parece acelerar cada vez mais. “Algumas das ideias mais emocionantes emergem de espaços de limitação. Os artistas podem mergulhar fundo em seu próprio som, criando caminhos antes inexplorados”, afirmam sobre o universo sonoro aquático que se desenrola em cenário atípico: o vestiário do lago, que, assim como as outras pistas, está em constante metamorfose. A ideia teve tanto êxito que a Aquarium tomou vida própria com festas em clubes de Berlim, além de gerar uma coletânea recém-lançada, que mostra bem alguns tipos de sons tocados por lá.

Agora, fica a pergunta: como é transportar toda essa atmosfera única para outro país, que possui a sua própria cena, com características específicas? Isso é um desafio constante para o coletivo, que também já levou a festa para outras cidades, como Paris, Madrid, Copenhague e Kiev. Há alguns pontos fundamentais que fazem toda a diferença, como colaborar com artistas e coletivos locais que se alinham com a missão e os valores da festa, além de usar a mesma abordagem para o design do espaço, garantindo que sua essência e identidade sejam preservadas. Outro aspecto importante é nutrir um senso de união. “A comunidade está no coração do Fandango. Nós construímos isso priorizando a inclusão, criando espaços para as pessoas se conectarem e incentivando uma cultura de cuidado”, apontam os idealizadores.

Ao refletirmos sobre nossos eventos no Brasil, temos orgulho de falar sobre a comunidade que estamos construindo aqui, que inclui clubbers, promoters, produtores e DJs. Pessoas locais desempenharam um papel enorme e vital em nos ajudar a criar e replicar a mesma energia e senso de conexão pelos quais estamos sendo reconhecidos em Berlim. Estamos cientes das sensibilidades envolvidas em receber reconhecimento em uma cena da qual não somos nativos. Como gringos que vêm ao Brasil, nunca tivemos aspirações de obter ganhos financeiros ou ocupar espaços. Em vez disso, nosso objetivo é contribuir para uma cena que passamos a amar cada vez mais. Esperamos oferecer algo em troca por meio de nossa experiência como organizadores, ajudando a apoiar coletivos e artistas emergentes no Rio e em São Paulo”, refletem.

A MÚSICA CONECTA 2012 2025