Malka Julieta é uma multi artista que é uma fonte de inspiração para a riqueza e a diversidade para qual caminha nosso cenário musical nacional. A artista que soma mais de 20 anos de carreira, é multi instrumentista, DJ, compositora e produtora musical, levando na bagagem a relação com a música brasileira, clássica e a eletrônica. Integrou bandas consagradas do Indie nacional como Starfish 100 e Omega Mary, bem como o projeto eletrônico We Say Go, além de ter feito parte da Orquestra Sinfônica da Fundação das Artes, na qual foi a primeira pessoa trans a se apresentar na Sala São Paulo, um dos espaços de música clássica mais respeitados do mundo.
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Na música eletrônica, o trabalho de Malka soa como um manifesto crítico aos moldes engessados do conservadorismo heteronormativo. Através de sua residência na Mamba Negra e Sangra Muta, e a chefia da Trava Buziness – primeiro label para artistas trans no Brasil -, Malka se dilui entre as mais diferentes frentes da música eletrônica, chancelando sua presença entre diversas pistas do país, e deixando o poderoso registro de sua marca por onde se apresenta, “sem limites e sem barreiras” como ela própria já diz. Hoje é Malka a nossa convidada do Touch, contando com profundidade os aspectos e características que formam sua assinatura.
Malka Julieta
Creio que nós, produtores e músicos, trabalhamos nossa sonoridade através de subjetividades. Eu entendo que com os anos tenho tentado aprender a sublimar a barreira de estilos musicais e entender que música é um corpo vivo de interseções entre vivências e experiências. Venho descobrindo também que a necessidade de catalogar ou separar por estilos é mais uma necessidade midiática e jornalística do que artística, e que com certeza, tudo isso faça parte também do conjunto cultural de normatividade imposto para os corpos pensantes sobre sua existência. Tendo a chance de produzir em multimeios, como teatro, raves, festivais de MPB, filmes, me fez perceber cada vez mais como a escolha de minha sonoridade através de samples criados ou coletados, sintetizadores desenhados para cada música, faz-se importante para manter a minha história e assinatura, assim como dos artistas aos quais faço parcerias.
De alguma forma consigo conectar o piseiro com a artista Céu ao rap com Mulamba e Rap Plus Size, ou a música Quem Soul Eu? de Linn da Quebrada através dessas subjetividades, sejam os sons de síntese inspirados nos anos 80 ou sonoridades que vem do Techno anos 90, mas tudo com uma cara de 2022 pra frente, sem querer repetir ninguém. Nada se discute sobre a vontade de artistas reviverem épocas passadas e focarem em uma sonoridade já feita antes — o trabalho artístico não tem regras, mas quando se fala em inovação e vanguarda é preciso se arriscar. Entendo que com orgulho, junto com apenas mais alguns que conseguiram fazer isso de fato, eu tracei um caminho dentro da música brasileira que é um pouco raro, o de trabalhar no mainstream sem precisar fazer tudo como os outros produtores fazem.
Entendo que esse caminho é um caminho que muites produtores não querem seguir pois é muito mais tortuoso, mas com o tempo, se tiver coragem você consegue se estabelecer e as pessoas vão entender sua sonoridade. Falando sobre o som em si, acho difícil citar algumas referências como parte de um todo, porém posso dizer uma coisa com certeza: minha vida como produtora deu uma guinada nos últimos 10 anos pois eu me entreguei de braços abertos a criar uma música que fosse mais brasileira. Com a quantidade de material e música que nos é bombardeada dos EUA ou Europa, se faz muito necessário o trabalho de produtores que lutem por uma sonoridade que tenha a ver com nossas raízes e ancestralidade.
Em épocas de estudar com a orquestra, fiz pesquisas sobre música ribeirinha, canções cantadas por lavadeiras às beiras de rio em nosso país, e daí percebi a riqueza e muitos dos caminhos pelo qual nosso jeito de cantar, compor e entender música se formou. Acho isso engraçado, porque muitas vezes o que nos dá valor artístico e nos puxa além são essas influências que a mídia e o marketing querem tanto tirar de nós. Nos momentos que estive trabalhando com artistas de fora do Brasil em estúdio, como com Gavinlan Russom (LCD Soundsystem), Ah Mer Ah Su, Mare Advertência, entre outros; o que esses produtores mais valorizam é a riqueza e complexidade da formação harmônica e melódica de nossas músicas, que muitas vezes vai muito além da formação acadêmica jazzística dessas pessoas — nossa música constantemente desafia a lógica teórica que eles aprendem.
Nunca vou esquecer quando li um trecho de uma matéria que contava sobre a visita de Hermeto Pascoal a Julliard, em que ele pede pros alunos esquecerem o que os professores de lá ensinaram sobre harmonia. Nisso, eu comecei a dar um valor ainda maior ao que temos aqui e a estudar as formas e criações do Samba, do Forró, da Bossa, do Jazz brasileiro, aplicando e trazendo essas idéias e formas pra outros estilos de música, como o House e o Techno, Pop, entre outros. Quando estive no Nordeste em 2021, durante seis meses, uma das coisas que me chamou a atenção foi que a música lá vive em outro passo que não o da colonização automática dos meios de produção musical. Além de uma riquíssima cultura de raiz, no que toca a síntese, o Nordeste está anos luz à frente do Sudeste. Enquanto aqui produtores de música com síntese em sua maioria se preocupam em fazer Techno e House com a cara de Berlim ou Chicago, ou de qualquer outro movimento externo, lá no Nordeste, há décadas pegamos estes estilos e os convertemos a nossa cultura e sonoridade.
O que vemos hoje no Tecnomelody, Tecnobrega, Piseiro, e os Forrós mais atuais, é uma linguagem de síntese que já se elevou ao status de completamente única de nosso país. Dito isso, meu esforço e pesquisa se tornam constantes em trazer o mesmo tipo de espírito para o Sudeste, para que possamos um dia ter nosso som mais parecido com Banda Sentimentos do que com Chemical Brothers. Um ponto de influência altíssimo na minha vida é também a artista Nina Simone. Lembro-me que quando conheci ela, minha maior influência era Ray Charles, sempre tive uma queda pelo Blues, principalmente misturado ao Jazz, mas quando eu adentrei ao universo de Nina, ela cavou fundo na minha alma e me levou a descobrir coisas sobre eu mesma que eu jamais imaginaria.
Hoje meu trabalho tem por grande parte o que chamo de “música efêmera” e, por conta dela, você nunca vai encontrar uma gravação sequer que a Nina tenha tentado tocar ou soar igual duas vezes e isso sempre me instigou e me fez querer estudar pra ser como ela, sem medo. Eu tenho seríssimos problemas de contenção de memória, cantar minhas letras ou repetir harmonias de forma exatamente igual não são meu forte, na época de orquestra conseguia porque estava escrito, mas tentar decorar algo longo e cheio de detalhes nunca foi meu forte. Então tive que aprender improvisação pra conseguir, vamos dizer, “enganar bem”. Basicamente eu fazia como qualquer pessoa que estuda Blues e Jazz: você vai ouvindo, tentando copiar sua maior influência e entender como o cérebro dela funcionava musicalmente.
A partir disso, comecei a fazer algo muito importante na minha vida que foi o improviso. Eu sempre via a musicista de improviso, como aquela figura elitista e de poucos amigos, mesmo porque, em geral, músicos desse meio tendem a inflar seus egos além do que deveriam. Sempre achei que aquilo não era pra mim, mas com os anos e o tempo, errando muito antes de acertar, percebi que esse era meu som e meu estilo de fazer música — uma música passível de erro e risco. A adrenalina do improviso para grandes platéias em meios onde se está para ouvir música popular é onde reside minha alma. Muitos fãs me perguntam quando vou lançar determinadas músicas, e a resposta é que existem algumas que nunca serão lançadas. Entendo que parte do meu trabalho é gerar esse valor da música efêmera, que começa e acaba em um dia, que é tocada apenas uma vez.
Óbvio que a gravação de fonograma é e sempre será um grande avanço no registro cultural e musical, mas isso também não significa que precisamos registrar tudo a todo tempo. Me parece que existe uma necessidade constante de nossa sociedade em repetir o ápice, o orgasmo, o momento de redenção tantas vezes que, no final, gozar se torna entediante, a redenção quase irrelevante e o ápice se torna o comum. Então por minha vontade resolvi que, muito da minha música acontece naquele momento, naquele ambiente e para aquelas determinadas pessoas. Faço isso pra levar os limites de minhas músicas e composições a lugares que eu nunca chegaria no estúdio, tentando gravar algo permanentemente. No ao vivo, eu me sinto viva e disposta a arriscar e isso me conduz à ápices que não vão ter repetição. Eu aprendi a fazer as pazes com isso, pois é exatamente isso que alimenta ferozmente as coisas que escolho gravar.
Enfim, entendo que minha luta não é pra produzir House, Techno, Samba, MPB, Rap, Jazz… é pra fazer música, sem limites e sem barreiras. Quero transicionar não só meu corpo, que minha música seja também, por que não, apenas música, não binária, ao invés de me pensar como um estilo musical? Gostaria que pensassem como tudo isso junto, em uma só corpa, todos esses ritmos, harmonias e melodias.
A música conecta.