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A música conecta

Alataj entrevista Malka Julieta

Por Laura Marcon em Entrevistas 27.08.2021

*Foto por Desna

Inicio esse conteúdo te convidando a mergulhar na sua biblioteca mental da pista de dança. Penso que você deva ter um bocado de memórias vividas em muitas delas. Provavelmente deva ter resgatado boas lembranças durante essa pandemia. Agora responda: quantas pistas de dança você compartilhou com um número expressivo, ou ao menos considerável, ou até mesmo mínimo, de pessoas LGBTQIA+ ou negras? Vou mais além: quantas vezes, de tantas festas que curtiu, você viu essas pessoas na cabine te fazendo dançar?

Eu também fiz esse exercício e minhas respostas me decepcionaram. Aposto que muitos que me lêem neste momento também não encontrarão respostas positivas. E basta conhecer o básico da história da música eletrônica para entender o quão vergonhosa é essa realidade, já que as batidas que amamos dançar por horas e horas a fio nasceram em guetos ocupados pelas minorias. Gays, trans, travestis, negros e negras, imigrantes, desajustades e marginalizades da sociedade. Acontece que, com a difusão global do gênero, justamente essas pessoas foram perdendo sua representatividade e o cenário mundial eletrônico se transformou em uma grande bolha de branquitude, majoritariamente hétero, conservadora e preconceituosa.

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Daí que, para essas pessoas, conquistar espaço e uma posição de destaque neste cenário virou um desafio de uma vida toda. E nós, privilegiados, passamos décadas ignorando esse fato, dando justificativas miseráveis para essa exclusão e perdendo a oportunidade de conhecer e valorizar uma gama de artistas incríveis. O ano é 2021 e é necessariamente impossível evitar esse assunto. Muito por conta de figuras que alcançaram as posições que merecem e, em uma cadeia de inspiração, impulsionam cada vez mais pessoas. Malka Julieta é, sem sombra de dúvidas, uma dessas personalidades.

São mais de 20 anos transitando por diferentes universos sonoros e uma carreira carregada de respeito em todos os ambientes que percorre. Malka é produtora, compositora, cantora e multi instrumentista que participa de cenários musicais que percorrem estilos que vão da música eletrônica à MPB, música clássica e trilhas sonoras. É a fundadora e peça-chave da produtora 3dB Áudio e do selo Trava Buziness, o primeiro label voltado para artistas trans no Brasil. É residente das label parties Sangra Muta e Mamba Negra, festas seminais à representatividade. Hoje, ocupa a linha de frente do time de artistas LGBTQIA+ no cenário eletrônico e cresce exponencialmente a cada projeto apresentado. 

Meu primeiro contato com a artista aconteceu no começo desse ano, quando a convidei para participar de um editorial que fala sobre mulheres no estúdio. Além de super receptiva, Malka me levou a incríveis reflexões em nosso bate-papo. A partir de então, acompanho-a em suas redes e já aprendi muito com ela. Não por menos, quando da elaboração das perguntas para essa entrevista, senti uma carga de responsabilidade que não apenas pudesse tirar proveito de sua experiência como musicista, mas que pudesse expressar meu respeito e admiração pelo seu trabalho e, como já esperava, ela mais uma vez me ensinou um bocado e me fez perceber que ainda tenho mais e mais a aprender.

Em um país que não nega um sistema hostil à comunidade LGBTQIA+, Malka Julieta é muito do que precisamos para enxergarmos um cenário mais plural e igualitário, não apenas por sua presença, mas por sua tradução do sentimento de liberdade através da música. Espero que você curta essa conversa tanto quanto eu e que também lhe proporcione bons aprendizados e reflexões. 

Alataj: Oi Malka, tudo bem? Muito obrigada por conversar com a gente. Você começou sua história na música há muitos anos e hoje está envolvida em diversos projetos, então temos muitos assuntos que gostaríamos de conversar contigo 🙂 Queria começar pelo início da sua relação com a música eletrônica. Você já se envolvia com a música profissionalmente em outros estilos quando a eletrônica apareceu? Conte-nos um pouco sobre o início da sua trajetória.

Malka Julieta: Oi, tudo bem, eu que agradeço o espaço. Meu envolvimento com a música de forma profissional se deu por conta da música eletrônica, quando montei o duo WeSay Go com o Leandro Pankk. Eu comecei a tocar muitas vezes por semana e pude pensar em viver somente da renda de música, no caso discotecagem, produção em um volume menor de quantidade, trilhas sonoras e por aí vai. Eu já toquei em bandas de Rock antes disso, mas nada que gerasse renda relevante, foi uma boa escola para fazer o que realmente faria depois. Com o WeSay Go conheci a Argentina, o Brasil, tive oportunidade de abrir minhas asas e me conhecer melhor. Fomos, por oito anos e meio, residentes do clube A Loca, tivemos residência na Lions Night Club, éramos frequentes na Fosfobox no RJ, Hot Hot na qual atingimos lotação algumas vezes em nossa carreira, foi um período muito bom para me preparar para o futuro. 

Eu vi você dizendo uma vez algo que bateu muito forte em mim que foi “a verdade da transição trouxe a verdade musical que existe dentro de mim”. Queria que você falasse um pouco sobre essa transformação sonora que veio junto com a sua transição. 

Acho que é um processo simples, né? A música para mim é investigação pessoal profunda, é sobre me entender melhor, entendendo assim também o meu redor. Quando me libertei, a minha música também se libertou, de amarras, medos, expressão. Posso me expressar por completo agora, sem esperar nada além do que sou. A falta de medo de ser feliz é muito visível, e isso se traduz em notas, acordes e melodias mais profundas.

Acompanhando a sua discografia e projetos, encontro uma miscelânea de sonoridades muito legal que vai desde atmosferas mais sombrias dentro do Techno até o Funk carioca super brasileiro e cheio de swing, passando pela música mais clássica, MPB e Bossa Nova. Essa diversidade sonora sempre foi base do seu trabalho? De alguma forma você integra esses estilos mais distantes na hora de produzir, como Techno e música clássica, por exemplo?

A base do meu trabalho musical sempre foi conseguir trabalhar. Eu precisava de trabalho, então aprendi a me adaptar, mas sempre tive facilidade também. Nunca enxerguei música como algo com fronteiras que me prendesse às amarras de estilos musicais. Para mim são 12 notas que podem falar muitas coisas e transmitir infinitas mensagens. O que acho que acontece é que todo lugar onde era feita música e estivesse ao meu alcance, eu me permiti ouvir e experimentar, aprender e trocar. Antes de ser produtora musical, quando era mais nova, eu ia ao Astronete, de quarta, no Dub da Hole, de quinta, nas festas da Temp ouvir Breakbeat, no Madame Satã antigo, no after do Julião, Hells, todo canto que conseguisse entrar de graça, porque eu era fodida de dinheiro, mas se tivesse música massa eu estava lá. Fazia roda de Samba no Sapopemba de fim de semana com minha mana Mary Jane, e de lá saiu Pimenta, meu primeiro single. A música e os meios sempre foram plurais na minha vida e continuam sendo, amo música ao vivo, amo estudar música e experimentar com ela. No final, acho que tudo se funde, trago muito do meu trabalho do Techno na música brasileira. Tanto que essa é essencialmente a pesquisa da minha vida, a busca da mistura perfeita na música eletroacústica, achar o som da MPB, da Bossa, do Samba, do Rock de 2021 e além, com sintetizadores, beats e novas linguagens. Me interessa o novo.

Especialmente sobre o Funk carioca, é mais do que sabido (apesar da resistência que ainda existe) que o estilo faz parte da música eletrônica desde sempre e da cultura do Brasil, principalmente. Hoje, mais do que nunca, a gente vê ele se expandindo mundialmente e se integrando mais com à música eletrônica de pista de dança através de artistas do cenário conceitual. Mas ainda assim, para uma parte do público e profissionais do Brasil, ele é visto como um estilo marginalizado. Como você enxerga esse panorama? Acredita que estamos caminhando para um cenário onde as pessoas enxerguem o Funk de forma mais límpida e com mais respeito?

Primeiramente, chamaria de Funk brasileiro, não dá mais pra chamar de Funk carioca. O Funk já é diferente em cada região do país, e ele é feito de um jeito no RJ, outro em SP, e outro ainda em MG e nordeste, cada um tem seu estilo.

Sobre a pobreza de espírito de quem crítica o Funk, desde o começo se dá por um elitismo e racismo cultural do Brasil, cada um escreve suas realidades, e o Funk é uma delas pra algumas pessoas. Hoje, uma boa parte das minhas músicas que deram certo são Funks e remixes com elementos de Funk, e eu faço porque esse é o som que eu danço com minhas amigas travestis no rolê, é isso que a gente faz para se divertir e é um som que fala de nossas vivências e nossas corpas também muitas vezes. Eu sinceramente não tô ligando em nada se um playboy privilegiado tá falando mal de funk. Dentro da cabeça dele de privilegiado, ele acha o certo a se fazer, a gente que constrói um som todo dia, e faz parte de algo maior que uma bolha. Na verdade to pouco ligando, porque eu sei que falo do meu rolê com minhas meninas e vou continuar falando. Eu sinceramente também não faço questão nenhuma de receber selo de aprovação algum de alguém que se acha melhor que os outros, por mim é isso aí mesmo, eles lá, nós aqui, quem tá perdendo são eles. Sabe o que começou com dois acordes, letra de putaria e machista pra caramba? O Blues. Mas veja só, a roda girou, a coisa mudou, e aí de repente todo mundo respeita, e hoje os brancos se apropriaram tanto que o Eric Clapton tem a audácia de falar de racismo reverso e ser anti-vacina. É isso que se espera que aconteça com o Funk um dia, pra ser “aprovado”? Não entendo muito o que se espera, mas garanto que ninguém precisa de selo de aprovação da ‘branquitudeheteronormativa’ para continuar fazendo som.

Além do seu projeto musical artístico para as pistas, você também faz produção de trilhas sonoras para filmes, dança e teatro. O que te levou a trabalhar com esse viés da produção artística? O processo criativo é muito diferente do que você realiza quando é a Malka para as pistas de dança?

A produção de trilhas não é um trabalho de hoje, faço trilhas para curtas independentes tem um tempo já. No teatro que é algo mais novo, eu comecei a desenvolver estudos de sonoridades na ELT com a Lúcia Gayotto. Pra mim, desenvolver trilhas é uma paixão enorme, eu assisti muito cinema, uma paixão que herdei de meu pai, e teve algo interessante na minha vida, eu me envolvi amorosamente com muitas pessoas da área do cinema, e essas conexões sempre fizeram a gente criar juntos. Com o tempo, meu trabalho foi ficando mais conhecido e hoje tenho uma série de trilhas compostas por aí.

Quanto ao processo criativo, não sei se é algo tão diferente assim. Quando penso em compor música, não penso mais em tonalidades, harmonias pré-definidas e encadeamentos padronizados. Penso mais em cores, sentimentos, o que quero sentir e que sintam no próximo compasso, acorde ou cena, e de certa forma como o processo de criação de trilhas como algo profissional, vem de antes da música de pista. Eu também enxerguei toda minha música como uma trilha sonora. Aliás, é algo que me falam muito, que minha música parece trilha sonora, talvez venha da influência de tanta música de filme que absorvi na vida. Eu penso sempre em cores, sentimentos e cenas quando componho, são pilares de como desenvolvo meu processo.

Algo que me chamou a atenção é a sua participação na Orquestra Sinfônica da Fundação das Artes e também sua apresentação na Sala São Paulo já como travesti. Eu particularmente vejo esse universo bem mais conservador, por isso me marcou esta situação. Como foi essa experiência na sua vida? 

A experiência com a FASCS e a orquestra foi enriquecedora no sentido de me fazer aprender a tocar todo tipo de música e me adaptar. Cada semana tinha que aprender a tocar muitas músicas diferentes, de estilos musicais diferentes e principalmente estudava muita música brasileira. Meus ouvidos se abriram! Comecei a pesquisar sobre um assunto que amo, que são as músicas das trabalhadoras ribeirinhas brasileiras, que me interessa muito, pois meus pais eram trabalhadores da lavoura, meu bisavô sanfoneiro, e eu queria muito saber sobre as raízes musical da minha família. Foi onde tive o encontro definitivo com minha identidade brasileira e isso é muito importante pra mim. Mas de outro lado também foi muito difícil, eu nem quero e nem posso falar sobre essa parte aqui, pois existem situações que seguem na Justiça e por orientação não posso falar mais, mas vocês podem imaginar. 

Acredito que hoje você viva um momento muito belo da sua carreira, de ascensão e reconhecimento do trabalho, mas sabemos que só o fato de você ser trans foi – e acredito que ainda seja – uma barreira grande para essa evolução dentro do mercado por um preconceito enraizado que descredibiliza artistas e profissionais. Como você vê o mercado hoje em relação ao respeito e oportunidade a um cenário mais plural na música?

Acho que essa régua eu nunca vou ter para medir o quanto isso complica ou não as coisas. Tudo isso é subjetivo, mesmo enquanto sabemos que de fato isso ocorre, eu, no meu âmbito pessoal, tento não pensar muito nisso e fazer o melhor que eu posso e dar o melhor de mim. O mercado é obviamente desrespeitoso e obviamente transfóbico, afinal não faz sentido eu ser uma DJ bem melhor do que eu era quando era lida como cisgênera e não receber convites pros clubs que me convidavam quando eu era apenas medíocre e cis. Isso é escancarado, ok, mas também, sei lá, ando gastando minha brisa no que eu posso fazer e mudar e deixando esses sentimentos de lado, não tenho muito que fazer além de criar uma arte melhor e envergonhar essas pessoas em seus corações por dentro, porque elas sabem o que fazem.

Assim como você, conhecemos mais artistas trans que fazem sucesso em diferentes gêneros da música brasileira, mas o número de artistas que chegam em uma posição de notoriedade não é tão grande. Por outro lado, cresce cada vez mais o cenário da diversidade não só na música em geral, mas também na eletrônica. Consegue citar pra gente artistas trans e projetos realizados por trans que você admira o trabalho e aposta para os próximos anos?

Tem um povo que eu posso apontar pra vocês, sim. Primeiro têm as meninas que eu nutro com conhecimento e trocas, tenho ensinado produção musical e trocado sobre a vida com algumas pessoas que tem feito um trabalho massa. A Travagiu lançou um EP chamado Bruta Flor, pela Bicuda Recs, da festa bicuda, e é uma menina que aprendeu a produzir comigo. A Luwa, da Casa de Serpentes, também aprendeu aqui em casa a produzir e fazer som e tá terminando de gravar seu EP, cheia de rimas afiadas. Tem um parceiro do Low Beat, boy trans, Pinol, que também tem seguido uma caminhada fantástica e temos trocado muito em conhecimentos. No mais, em um âmbito mais afastado do meu meio, posso te falar com certeza o Joseph Rodriguez, esse menino tem uma estética muito boa de produção e discotecagem e vem chegando com força pra somar nos próximos anos. Eu acho também que a Pode Ser Desligado chegou com muita força, produzindo o disco da Ventura Profana e agora tem desenvolvido uma carreira por si que tem sido fantástica e maravilhosa, num processo com Drummachines e samples. Indico a Ayani, uma cantora paraense maravilhosa que o Brasil vai descobrir cada dia mais. Temos do RN, a BrunnaVini, de Goiás, a Anarkotrans. Cada uma no seu estilo e trazendo algo diferente pros meios, porque é isso também, lembrar que música trans não é uma cena, somos parte de uma sociedade e temos linguagens próprias e em estilos variados. 

Para finalizar, uma pergunta tradicional que a gente gosta de encerrar nossas conversas: o que a música representa em sua vida?

Hoje em dia representa liberdade para ser quem eu sou por completo e uma possibilidade de existência. Quando voltei a tocar música popular, há cerca de quatro anos e meio, eu estava sem trabalho algum. Tocar piano com a Verônica Valenttino e a Valéria Barcellos fez a diferença. Desde então, a música tem um significado mais profundo pra mim, onde me encontro mais comigo mesma.

A música conecta.

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