Não é incomum ouvirmos uma música e o pensamento “acho que já ouvi isso aqui antes” surgir em nossa mente. Na verdade, essa associação de uma composição à outra tem se tornado cada vez mais comum, já que novas técnicas e maneiras de manipular e sintetizar sons aparecem a todo momento e também se tornam recursos mais populares. Há muitos anos a técnica do sample é um método que tem ganhado cada vez mais espaço e se popularizado bastante, principalmente em nichos musicais em que a cultura do DJing prevalece. Mas afinal, de onde vem o sample e o que é exatamente isso?
A técnica de sampling é muito antiga, datada à década de 1940, quando pesquisas dos teóricos da música Pierre Schaefer e Pierry Henry, chegaram à colagens de conteúdos sonoros e amostras de som, que formavam novas composições. A partir daí, esses estudos influenciaram o compositor alemão Karlheinz Stockhausen, que conduziu projetos de música eletrônica a partir dessa junção de sons. Nos anos 80 e 90, esse recurso se popularizou principalmente no dance music e hip hop, mas até hoje é utilizado em diversos gêneros.
+++ Papo de Estúdio sobre a perfeita combinação da house music e samples
E caso ainda tenha ficado alguma dúvida, em tradução literal “sample” significa “amostra” e nada mais é que a reutilização de trechos sonoros de uma produção em uma nova gravação, seja remixado, cortado ou até diretamente. No começo de sua utilização, alguns críticos até questionavam a legitimidade do sampling — afinal qual é o limite entre samplear e plagiar? Essa é uma questão que rende uma pauta à parte, mas o fato é que hoje essa prática é tão popular que atualmente até o Grammy, principal premiação da indústria, admite músicas com samples elegíveis ao prêmio.
A verdade é que a técnica de sampling tem muito a contribuir no mercado musical, basta olharmos a quantidade de boas músicas que surgem diariamente por aí e que utilizam desse recurso. Aqui no Brasil, antes mesmo dessa popularização, quem já apresentava lançamentos e sets respeitáveis com o uso de trecho de outras músicas é Craca, conceituado DJ live act e produtor da cena underground paulista.
“Acho que minha primeira incursão com um sampler foi num estúdio bem precário que tivemos na região da Teodoro Sampaio aqui em SP, tradicional rua das lojas de instrumentos musicais. Havia um samplerzinho AKAI (eu acho) daqueles que funcionam com disquete de 3e1/2 polegadas… daqueles que só cabia 1,44 mega de dados. Imagina… não servia pra quase nada, mas era bem divertido ficar batucando com os dedos enquanto esperávamos aparecer algum cliente de paraquedas. Ele tinha uns 6 pads duros de plástico. Em seguida passei a utilizar sample based DAWs como o ACID loops que era um programa revolucionário na época pois conseguia botar qualquer loop no tempo e no pitch da música. Realmente usei muito. Produzi uns 2 discos com ele em combinação com o Vegas, mas… felizmente, um dia, quando um colega me viu tocando num show, fazendo loucuras com os loop markers do Acid ele perguntou: ‘você já ouviu falar do Live?’. A partir daí realmente larguei a precariedade e mergulhei nesse mundo do Ableton explorando todos os recursos de sampling e MIDI dessa plataforma. Na época ele ainda estava na versão 2”, explica o artista.
Com mais de 30 anos de carreira, o projeto de Felipe Julián é conhecido pelas experimentações, principalmente ao utilizar narrativas transmidiáticas para criar sua identidade artística. Seus trabalhos e lançamentos trazem uma união surrealista da música com a imagem, compondo produções audiovisuais que também são transmitidas em suas performances ao vivo, executando as faixas ao vivo com projeções em vídeo mapeadas. Esse perfil distinto tem chamado a atenção; não à toa que o artista coleciona turnês internacionais, prêmios renomados e projetos aclamados, como as parcerias com MC Dani Nega e Sandra X.
E, quando o assunto é expertise frente ao uso de sampling, ninguém poderia contribuir melhor para esse debate do que Craca. A técnica de sampling é vista em diversos dos seus trabalhos anteriores, o qual ele misturou ostensivamente trechos sonoros e loops com elementos orgânicos ou eletrônicos.
“O sampling já deixou de ser apenas um instrumento musical. Ele é a tecnologia por trás de diversos dispositivos que hoje utilizamos na produção musical. Os instrumentos virtuais, tão comuns atualmente, são baseados em sampling. As baterias eletrônicas também são. Softwares como o Ableton Live unem o MIDI ao sampling de forma tão natural que mal percebemos quando estamos em um universo ou no outro. Na verdade, o próprio sistema de gravação digital como Cubase, Protools, FLstudio etc… é um sampler. Mas, para além da ferramenta, a possibilidade de ‘quebrar o monopólio’ do timbre que o sampler permitiu principalmente a partir dos anos 80, inaugurou uma espécie de revolução pela citação que desembocou na cultura pop. O hip hop, por exemplo, é um dos gêneros que melhor vai aproveitar os benefícios de colocar dentro de uma música nova, um ou mais sons de uma música já conhecida. E isso é feito de forma especialmente eficaz no hip hop, pois tudo começa na verdade com o loop de vinil feito a mão pra gerar espaço pro MC versar por cima. Quer dizer… o hip hop tem como uma de suas mais marcantes características a referência ao que já existe. É uma reciclagem criativa e ao mesmo tempo crítica. Uma forma antropofágica de criar o novo. Algo que foi estupidamente criminalizado pela indústria fonográfica que agora deve quase todo seu incoming ao gênero. Irônico”, opina Craca.
Aperfeiçoando esse trabalho lançamento após lançamento, Craca levou a utilização dos samples ainda mais longe em seu novo EP Patchwork: Cobogó. Neste disco, todas as faixas surgem a partir da técnica de união de retalhos sonoros e montagens, que se assemelha ao recurso de Patchwork utilizado na costura — que inspirou o nome do projeto. Além da influência da arquitetura pernambucana nos cobogós, peças rústicas que trazem a ideia de mosaico geométrico. Tendo essa referências, os samples se tornaram base para o desenvolvimento do projeto. Ele nos dá mais detalhes sobre esse processo criativo:
“O sampler está presente em meu processo de trabalho desde a época do Projeto Axial. Ou antes até. Mas em Patchwork: Cobogó, pela primeira vez eu trabalhei quase que exclusivamente com essa ferramenta. Nos demais álbuns que já lancei sempre há coisas tocadas. Instrumentos de corda, harmonias, isto é, tem a minha mão de músico misturada na sonoridade final. Mas desta vez eu me propus a trabalhar exclusivamente com colagem. São samples diversos, obtidos em boa parte no meu banco pessoal de loops mas tem também material que alguns produtores de funk ou de lo-fi jazz disponibilizaram em plataformas de samples. Tem beats do Tropkillaz, do Sango, do King Doudou, do JLZ, do Redito e tem harmonias de diversos outros produtores. Isso explica um pouco o nome do disco e seu resultado sonoro complexo, fragmentado e com temperos diversos.
Neste projeto eu aproximei o meu fazer musical ao processo de edição cinematográfica. Para quem estuda cinema, tem um lance chamado ‘efeito Kuleshov’, que é o resultado obtido a partir de uma sequência de tomadas editadas uma depois da outra. Cada cena tem seu próprio conteúdo. Mas a partir da combinação de tomadas, surge exatamente uma história. Na música isso acontece também. Mas esse processo da ilha de edição é mais exclusivo do cinema. Em Patchwork: Cobogó eu busquei me submeter a uma ilha de edição de áudio”.
Com este trabalho, Craca prova, mais uma vez, que a utilização de samples pode elevar as produções musicais e que, se engana quem pensa que essa técnica está oposta à autenticidade. Afinal, quando bem trabalhadas elas transmitem toda a criatividade e personalidade e essência de seu autor. Para quem busca dicas de como aplicar esse recurso, Craca aconselha:
“A internet e os dispositivos móveis com telas touch screen permitiram o surgimento de uma enxurrada de brinquedos virtuais para se fazer música. Desde imitações de MPCs a softwares completamente novos com interfaces revolucionárias, tudo está facilitado em relação ao acesso. Quem poderia comprar uma MPC no passado? Quem tinha um Mellotron? Hoje em dia… todo mundo pode ter de graça ou a um preço barato. Claro! Não é a mesma coisa. Mas é um ótimo começo. Instale programas divertidos no seu celular ou tablet e descubra se você quer fazer música desse jeito e o quanto você consegue fazer uma coisa originalmente sua a partir de peças dos outros. Taí um bom desafio pros tempos massificados em que nos metemos”.
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