Skip to content
A música conecta

Vitrola Review | Joyce – Feminina

Por Laura Marcon em Vitrola 11.05.2021

Este não é um review qualquer. Aliás, acredito ser o review mais importante que já fiz em toda minha participação nesta coluna. Este álbum é muito, muito importante para mim, Laura. Assim também é a artista que criou a obra e as pessoas que me levaram até ambas. Portanto, permita-me misturar um pouco as histórias entre homenageadora e homenageada, já pedindo minhas humildes e sinceras desculpas à grande protagonista desse conteúdo. 

Um dos maiores privilégios que tenho plena consciência é o de ter nascido em uma família de músicos. Nas primeiras lembranças nítidas como mini ser humano, todas são ligadas a cantorias e encontros felizes em meio a instrumentos musicais ou qualquer outra coisa que uma criança lembraria com alegria, mas adicione sempre música. Entre essas memórias estão as primeiras canções que minha mãe e meu tio ensinaram a mim e a minha irmã. A mais marcante de todas é essa que transcrevo agora:

“Um coração / de mel de melão / de sim e de não / é feito um bichinho / no Sol de manhã / novelo de lã / no ventre da mãe / bate um coração / de Clara, Ana / e quem mais chegar / Água, terra / fogo e ar”. 

Letra singela, curta, gostosa, melodia que abraça, perfeita para as crianças. Alguns anos depois – e um pouco mais de conhecimento musical – eu descobriria que esta faixa, intitulada Clareana, é de autoria de Joyce Moreno, cantora, compositora e violonista impecável e que acompanha minha relação com a música brasileira de forma significativa e de diversas formas. 

Nascida no Rio de Janeiro, Joyce iniciou sua trajetória na década de 60 e ganhou notoriedade como instrumentista através de participações em gravações com artistas como Roberto Menescal e Pacífico Mascarenhas. Como compositora, se destacou nos grandes festivais de composição e interpretação da época. Logo em seus primeiros projetos dentro do estúdio, trabalhou com outros gênios da música como Dori Caymmi e Vinícius de Moraes, seu grande padrinho artístico.

A artista era uma voz desafiadora do tradicionalismo machista da música brasileira, apresentando composições femininas e em primeira pessoa, falando abertamente sobre seus amores e feminismo em uma época em que pouco ou nada se via neste sentido – considerando que tratava-se de um período coberto pela censura artística, por conta da ditadura militar, que pregava valores morais rígidos e desaprovava falas tão diretas como as de suas poesias. 

Em meio a censuras, mas grande talento e boas companhias, Joyce se lançou para o mundo na década de 70, gravando trabalhos em outros países como Itália, Estados Unidos e França e realizando shows na Europa e toda a América. Foi neste período tão criativo de sua carreira que nasceram seus grandes sucessos, incluindo Clareana. A canção criada para suas filhas foi gravada pela primeira vez na França, mas o Brasil a conheceu apenas em 1980, quando da sua interpretação no Festival da Música Popular Brasileira. Foi um sucesso.

A esta altura, Joyce já tinha composições imortalizadas nas vozes de grandes intérpretes brasileiras como Elis Regina, Maria Bethânia, Quarteto em Cy, Milton Nascimento e Boca Livre. E, no melhor estilo best of, nasce, também em 1980, o álbum considerado marco em sua carreira: Feminina. A obra é um conjunto das faixas sucessos na versão fresca de Joyce, a singela Clareana e outras faixas de sua autoria. 

O álbum é uma obra prima que confronta o autoritarismo político e social de forma genial, eis que não profere uma sílaba sequer de desprezo. Ao invés disso, Joyce celebra a mulher, os encontros, o Brasil e a música de forma pacífica e natural. Uma união majestosa entre sua voz límpida e sensível, o violão ritmado e arranjos suaves e cheios de swing. Jazz, Samba, influências latinas, uma miscelânea sonora reconstruída de forma única.

A canção que abre os trabalhos é a mesma que dá nome ao álbum e logo de cara somos recebidos com o samba que ecoa o que é de mais genuíno na artista: “Ô, mãe/ Me explica, me ensina/ Me diz, o que é feminina?/ Não é no cabelo, ou no dengo, ou no olhar/ É ser menina por todo lugar”. Mistérios dá sequência à obra, em uma versão cheia de sensibilidade. Clareana nos transporta para a infância, enquanto Banana homenageia o Brasil em fauna, flora e tantos sentimentos da época.

Revendo Amigos continua a viagem com uma poesia mais carregada, mas ainda assim apresentada de forma delicada. Essa Mulher, conhecida principalmente na voz da eterna Elis Regina, é um encontro de tantas mulheres que nos habitam e, particularmente, uma das composições mais fortes e incríveis sobre o feminino. Assim também acontece com Da Cor Brasileira, que traça um perfil da figura do homem envolto ao machismo: 

“De quem falo me fala macio / E finge que entende o que nem escutou / Me adora e me quer tão somente / Enquanto que mente é o que acreditou / Esse homem que passa na rua / Que encontro na festa e me vira a cabeça / É aquele que me quer só sua / E ao mesmo tempo que eu seja mais uma”.

O álbum também é composto das faixas Compor, Coração de Criança e Aldeia de Ogun, esta terceira tem tema instrumental e que foi responsável por colocar Joyce Moreno nas pistas de dança da Europa. É isso mesmo. A faixa foi descoberta nos anos 90 por DJs ingleses e explodiu nas casas noturnas, recebendo remixes e edits de diversos artistas, incluindo Fatboy Slim.

Anos passaram e Joyce ganhou um espaço gigante no mundo da música, mas infelizmente, pode-se dizer que muito mais internacionalmente do que aqui no Brasil. A artista é uma das grandes responsáveis por levar a Bossa Nova para a Europa e principalmente Ásia e é respeitadíssima pelo trabalho realizado. Aqui, não raramente cito seu trabalho para pessoas que não a conhecem – o que honestamente considero uma heresia à música brasileira. Mas há quem diga que este é um caminho escolhido pela própria artista, que nunca se preocupou com a popularidade e não se vendeu ao caminho daquilo que é mais comercial.

Este é apenas mais um dos pontos que tornam esta mulher tão impactante na minha vida. Clareana foi só o primeiro dos encontros que tive com Joyce. Suas composições me tocaram e ainda acompanham tantos momentos em minha vida. Lembro-me a primeira vez que ouvi Essa Mulher e como aquelas palavras acertaram meu coração em cheio. Perdi as contas de quantas vezes ouvi seu Astronauta (a última vez foi na semana passada, aliás) e assim também outros de seus álbuns e interpretações leves e gostosas que ela deu à faixas icônicas, como A Felicidade, de Vinícius de Moraes.

Sua forma tão suave de transmitir música muito já acalmou meu coração, como que num abraço gostoso. Me deu forças para me aceitar enquanto mulher, me faz acreditar que a liberdade de criação e personalidade artística são essenciais e uma base forte pela qual vale a pena lutar pois, do outro lado, deve haver outras Lauras se identificando com a sua mensagem. E por isso só posso agradecer, e muito, a Joyce Moreno. 

Dedico esse capítulo da coluna à minha mãe, Silvana, e ao meu tio Luciano, os responsáveis por me apresentarem não apenas a Joyce, mas tudo o que eu conheço de música brasileira em toda a minha vida.

A música conecta.

A MÚSICA CONECTA 2012 2025