Há álbuns que ficam marcados na história de uma geração. Há álbuns que ficam marcados na histórica da cultura musical de um país. Nossa MPB possui um patrimônio musical tão rico quanto a diversidade cultural do nosso país. Cada ponto de sua linha temporal, traz um pedaço da nossa história, que pode ser contada através de um acervo especial de álbuns fascinantes, que refletem uma parte da nossa identidade. Ruy Maurity soube muito bem como contar essa história através da reverência de sua discografia, apresentando as narrativas do Brasil não litorâneo, ainda na década de 70.
Nascido em Paraíba do Sul, Ruy cresceu cercado pela música. Filho de mãe violinista – a primeira mulher a integrar a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro – e irmão do pianista Antônio Adolfo, o artista começou a tocar violão ainda na infância. Foi contando a história da regionalidade brasileira, em contraste com o samba praiano que se apresentava no litoral, que Ruy Maurity apresentou um lado da nossa cultura que não era tão explorado pelos artistas da época – estamos falando da década de 70 -, flertando com os ares rurais, com as crenças populares e a fé afro-brasileira.
Com uma discografia que comporta oito álbuns, que incluem grandes sucessos como temas de novelas, jingle de reveillion e canções que foram reinterpretadas por artistas de todos os segmentos musicais brasileiros, inclusive até mesmo por artistas da música eletrônica entusiastas da World Music e da MPB. E por falar nisso, Nem Ouro Nem Prata, é um álbum que se tornou grande referência não somente para a história da nossa música popular, mas dentro da própria música eletrônica.
Lançado em 1976, após o sucesso dos LPs Em Busca do Ouro e Safra 74, Nem Ouro Nem Prata foi um experimento de Ruy através da cultura do candomblé. O ponto de encontro entre culturas regionais, a paixão pela natureza e a relação com os terreiros de umbanda e candomblé, qual Ruy frequentava no subúrbio de Jacarepaguá, inspirou a criação da obra que ressignificava os pontos sagrados da tradição, e ao mesmo tempo, refletia o cotidiano do brasileiro marginalizado pela sociedade e do continente sul americano dividido pela desigualdade.
Foi assim que nasceram Xangô Vencedor, Quizumba de Rei e o grande sucesso da faixa-título Nem Ouro Nem Prata, cuja primeira parte inteira pertence a um ponto sagrado de Oxóssi: “Eu vi chover eu vi relampear / mas mesmo assim o céu estava azul / samborepemba folha de Jurema / Oxossi reina de norte a sul.”
Nem Ouro Nem Prata e Quizumba de Rei, inclusive, foram reinterpretadas e remixadas por artistas como Nicola Cruz, Spaniol, Salvador Araguaya – na faixa Folha de Jurema, lançada pela The Magic Movement -, e Dj Gregory e Gregor Salto – quem já ouviu a faixa Canoa, lançada pela Defected em 2010, que utiliza o sample refrão de Quizumba de Rei?
Além das três faixas centrais, o álbum Nem Ouro Nem Prata também inclui a clássica Serafim e seus Filhos, faixa que foi referência dentro do cenário da música popular regional sertaneja, e a Continente Perdido, que retrata a luta do indivíduo sul americano marginalizado pela sociedade. O disco foi o maior sucesso da carreira de Ruy Maurity, e representou o estabelecimento definitivo da sonoridade que o acompanharia em seus trabalhos seguintes, com presença constante de temáticas de origem africana e indígena, cantadas em sambas, sambas rurais, toadas, cocos e outros ritmos que compõem a rica musicalidade do vasto Brasil interiorano. Ruy Maurity nos deixou em abril deste ano, e com toda certeza, seu legado será eternizado ao longo da história da cultura musical.
A música conecta.