Em 2000, o filme Erin Brockovich levou aos cinemas a história real de uma assistente jurídica que, sem formação em Direito, descobre que uma grande companhia de energia estava contaminando a água de uma pequena comunidade na Califórnia. Baseado em uma história real, o roteiro acompanha desde o momento em que ela encontra os primeiros indícios do caso até a árdua batalha judicial contra um adversário bilionário. Para além de um drama jurídico, o filme revela os bastidores da persistência: o desgaste físico e emocional, as pequenas vitórias que quase passam despercebidas e as alianças improváveis que se formam quando a luta se arrasta por anos.
Duas décadas depois de seu lançamento, a narrativa proposta no filme encontra paralelos na trajetória de Miss Kittin, não como alguém que está começando, mas de uma artista que já vem moldando a cena desde 1994 e que, ao longo de três décadas, se manteve relevante sem abrir mão de princípios. Saem os tribunais ou processos ambientais, mas entra um cenário igualmente marcado por estruturas que, muitas vezes, resistem às mulheres. Resistem às mudanças. Sim, a música eletrônica e seus bastidores. Nesta entrevista concedida ao Alataj em 2021, a icônica artista e personalidade francesa traçou um retrato lúcido das concessões que nunca fez — e do bônus e ônus que ganhou por isso.
“Eu sempre me considerei uma artista, não apenas uma DJ. E isso, para algumas pessoas, era difícil de aceitar. Havia essa expectativa de que eu fosse uma coisa só, encaixada em um papel confortável para o mercado.” O desconforto gerado por sua recusa em seguir a cartilha moldada pela indústria acompanhou Kittin desde o início. A questão não era apenas estar nos palcos ou no estúdio, mas sustentar a identidade artística conectada ao seu ser, ainda que isso implicasse ir contra a corrente.
Esse “não jogar o jogo” se traduziu em escolhas artísticas e posicionamentos que desafiaram tanto a lógica da indústria musical, quanto expectativas estéticas. Sua discografia, entre colaborações marcantes e trabalhos autorais, nunca se prendeu ao conforto da previsibilidade. Cada lançamento, cada projeto e cada recusa formam um mosaico de decisões que, somadas, contam a história de alguém que escolheu ser livre antes de ser conveniente.
“Eu sigo o meu instinto, não tenho medo de errar ou falhar, não tento agradar, copiar ou me encaixar. Cultivo minha independência e minha curiosidade o tempo todo, isso me mantém segura. Não é algo fácil de se fazer, mas é gratificante.” Este é quase um lembrete de que a liberdade criativa costuma cobrar um preço alto. E que a verdadeira segurança, nesse cenário, não está necessariamente em ceder às demandas do mercado, mas potencialmente em sustentar a própria voz, mesmo que isso signifique seguir sozinha.
A recusa em se encaixar também gerou efeitos que vão além da sua própria carreira. “Não vou dizer que isso me tornou mais forte, pois ainda tenho cicatrizes que tento curar. Digamos que eu sobrevivi. Agora a nova geração [de mulheres] pode assumir essa luta. Elas jogam no mesmo campo que os homens, mesmo que ainda tenha um longo caminho a percorrer.” compartilhou ela. Ao sustentar seu espaço e impor seu nome como produtora, cantora e DJ, Kittin ajudou a abrir caminho para outras mulheres que hoje encontram menos barreiras técnicas e simbólicas para produzir, lançar e assinar sua própria música. Ainda que o terreno continue bastante desigual.
“Quando você diz sim para algo que não acredita, isso fica com você para sempre.” A frase, dita quase como um aviso, sintetiza o eixo moral que guiou suas decisões e também o preço que escolheu pagar para mantê-lo intacto. Persistir, nesse contexto, não é apenas resistir às pressões externas, mas construir um caminho onde a própria integridade se transforma em ferramenta de sobrevivência.
Miss Kittin sempre compreendeu e demonstrou que a cena se move devagar e que a igualdade não virá apenas com mais mulheres nas cabines. É preciso também mudar a forma como elas são ouvidas, contratadas e reconhecidas, porque quando alguém como ela permanece fiel à sua voz em sistemas que tentam silenciá-la, abre espaço para que outras possam fazer o mesmo.