No último dia 20, durante sua única gig do ano, marcada no Vieilles Charrues Festival, na França, Martin Solveig anunciou sua aposentadoria dos palcos. Com mais de 30 anos de carreira, o artista afirmou ao público: “Toda vez que subia ao palco, eu me dizia: toque como se fosse o seu último show. Até que esse momento realmente chegou.” No dia seguinte, confirmou a decisão em uma publicação no Instagram, agradecendo à família e à equipe da Live Nation França.
O anúncio encerra uma trajetória que ajudou a levar a sonoridade do French Touch ao mainstream, mas também expõe algo pouco comum na cena: parar por vontade própria. Em um circuito marcado pela glorificação da performance ininterrupta, reconhecer o tempo de saída é um ato quase subversivo. A aposentadoria, em sua forma mais simples, como direito ao descanso, à transição e à reinvenção, ainda parece um privilégio distante para grande parte da comunidade artística.
Não faltam motivos para isso. A cultura clubber historicamente evita lidar com as consequências do tempo. Fala-se muito de inovação, mas pouco de continuidade. Exalta-se o novo, mas raramente se valoriza a experiência acumulada. O corpo do DJ, enquanto máquina de performance, deve resistir às madrugadas a dentro, à superexposição digital e à reinvenção estética constante. Quando não resiste, há pouco ou nenhum suporte institucional para sustentar a travessia.
É preciso lembrar que, fora dos lineups mais visíveis, a maioria dos artistas lida com a instabilidade crônica. Oscilação de renda, ausência de direitos trabalhistas e dificuldade em construir uma reserva financeira estão entre os fatores que tornam a aposentadoria um cenário improvável. Mesmo o prestígio cultural, tão celebrado quanto fugaz, não se converte necessariamente em segurança material.
E ainda há um fator identitário: para muitos DJs, tocar não é apenas uma profissão, mas uma extensão subjetiva de quem se é. Interromper a carreira pode significar um rompimento com a própria ideia de si, agravado pela lógica do setor que associa ausência de palco à irrelevância, ou pior, ao fracasso. A saída, quando vem, costuma ser forçada, por exaustão física, crises pessoais, problemas de saúde ou queda de demanda. Faltam modelos de transição gradual, ao menos para boa parte da cena.
Uma das “aposentadorias” mais seguras para quem trabalha com música tem sido, na verdade, a fuga parcial dela: estabelecer uma carreira paralela em outros negócios, muitas vezes mais estáveis e previsíveis, e manter a atuação musical como um extra, quase um luxo pessoal. Não é o ideal, mas frequentemente é o possível. Entre as exceções, poucos artistas conseguem redesenhar seu lugar na cena através da curadoria, educação musical, mentorias ou gestão de espaços. Mas são raros os incentivos ou estruturas que estimulem esse tipo de reconversão. A lógica predominante ainda é de uso máximo e descarte rápido.
É por isso que a decisão de Martin Solveig merece atenção. Ela não fala só de um artista específico, mas evidencia um ponto pouco debatido: a ausência de estruturas claras de transição e amparo para quem dedicou décadas à pista. Ainda falta à cena um debate consistente sobre o que acontece quando o trabalho noturno deixa de ser possível. Quando chega a hora da aposentadoria, quem pode parar?