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A música conecta

A presença LGBTQIAPN+ na cultura clubber e o papel de quem faz a diferença nos bastidores

Por Marllon Eduardo Gauche em Xpress 27.06.2025

A história da música eletrônica sempre esteve muito conectada com diversidade, mesmo antes dessa palavra estar em alta. Desde o começo, a pista foi um lugar de encontro para quem vivia por fora das normas ditadas pela sociedade. E, por muito tempo, foi um dos poucos espaços onde ser diferente não era problema. Gays, lésbicas, pessoas trans, não-binárias e outros corpos dissidentes que ajudaram a “fundar a cena” sempre estiveram ali, dançando entre a fumaça, a luz baixa e o som estourado das caixas de som porque era o único lugar onde dava pra existir com alguma liberdade e sem julgamentos.

Esse tipo de espaço foi surgindo em diferentes lugares do mundo, mas talvez nenhum tenha sido tão simbólico quanto os clubes de Nova York dos anos 70 e 80. Foi lá que pessoas negras, latinas e LGBTQIAPN+ criaram ambientes como o Paradise Garage e o The Loft — lugares que funcionavam quase como templos. Lá dentro, o que você fazia fora pouco importava. O que importava era como você dançava e como respeitava quem dançava ao seu lado.

Com o tempo, esse espírito foi atravessando fronteiras e chegou ao Brasil, que, mesmo com outras dinâmicas sociais e culturais, acabou criando suas próprias formas de acolhimento dentro da noite. Nos anos 90 e 2000, São Paulo teve clubes que, à sua maneira, mantinham esse tipo de energia. o Lov.e Club, por exemplo, foi fundamental não só como espaço de experimentação musical, mas como ambiente seguro para gays, drags, clubbers, performers… todos convivendo na pista sem precisar justificar sua presença. 

Outros espaços como o Massivo — talvez o primeiro clube gay centrado na figura de um DJ a conquistar fama nacional — o Hell’s Club, Vegas Club e mais tarde o Jerome, também tiveram um papel importante em abrir ou manter essa filosofia viva. Em menor ou maior grau, foram pontos de encontro entre o som que vinha de fora e o desejo de se criar algo nosso. E, claro, as festas independentes e itinerantes — como Mamba Negra, Capslock e outras tantas — seguiram atualizando esse espírito com novas narrativas e linguagens.

O que muita gente esquece é que essas histórias não se constroem sozinhas. Ter um line-up diverso não acontece por acaso. Alguém precisa abrir espaço, dar suporte, negociar fee, fazer contrato. E é aí que o papel das agências e da curadoria entra em cena. Porque a cena, de verdade, não se faz só com DJ e público. Cena se constrói na base da escolha e toda escolha é, de alguma forma, política.

Nesse sentido, algumas iniciativas no Brasil foram decisivas. A SmartBiz, que completa 25 anos agora em 2025, é um desses casos. Muito antes de se discutir diversidade como obrigação de marca, a agência já representava artistas LGBTQIAPN+ — não por obrigação ou estratégia, mas porque esses artistas já estavam ali, ativos, produzindo e puxando a cena. Hoje, mais de 70% do casting da SmartBiz é formado por pessoas LGBTQIAPN+, incluindo artistas trans, não-binários e travestis. Isso não começou com a campanha de junho, começou com o entendimento de que curadoria é um ato de responsabilidade com a cultura e com quem faz ela acontecer na vida real.

Na década de 2000, a agência foi responsável por movimentar a cena em várias frentes — do SmartBiz Café, que era mais do que uma loja ou ponto de encontro, ao envolvimento com coletivos, clubs e eventos que ajudaram a formatar o que viria depois. Mais tarde, com a fusão com a Crash e o nascimento da Entourage, parte dessa história se espalhou. E quando a SmartBiz voltou, anos depois, ela voltou atualizada, mas com o mesmo eixo: dar palco pra quem tem algo pra dizer, mesmo que (ou principalmente se) for fora da curva.

O que a gente vive hoje, em 2025, é resultado desse tipo de trabalho. A pista continua sendo espaço de prazer, mas também diz muito sobre como a cultura se organiza e é o melhor lugar para sentir quando algo é verdadeiro. Não importa o gênero musical ou o tamanho da festa — dá pra perceber quando tem alguém ali tocando de um lugar legítimo. E por mais que a indústria mude, que as estratégias mudem, tem algo que não muda: a pista continua sendo território de pluralidade. Quando ela começa a parecer homogênea demais, é sinal de que tem alguma coisa errada.

Por isso, junho pode até ser um mês de visibilidade, mas quem realmente se importa com essa cultura sabe que ela é feita ao longo de todos os meses, e não em um só. No backstage, na curadoria, na escolha de quem vai fechar a noite. O passado só importa se servir para melhorar daqui pra frente. E algumas estruturas, como a SmartBiz, mostram que dá pra caminhar com o tempo sem abrir mão daquilo que sustenta a cena de verdade. Se for pra celebrar alguma coisa, que seja isso: não a festa em si, mas a possibilidade de seguir fazendo dela um espaço onde todo mundo possa, realmente, existir.

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