A trajetória de Tiësto, um dos nomes mais emblemáticos da história música eletrônica, que transitou do Trance de nicho para o ápice do mainstream comercial e agora anuncia um retorno estratégico às suas raízes (com o single Bring Me To Life e um álbum programado para 2026), oferece um estudo de caso sobre as estratégias estéticas mobilizadas por alguns artistas do mainstream em relação que ao dinheiro e a conceitos da financeirização global. Essa jornada deve ser entendida dentro da totalidade capitalista, um conceito que estabelece que o capitalismo não é meramente um sistema econômico, mas uma forma de poder na qual os componentes sociais, culturais, econômicos e estéticos estão interligados de formas não lineares e interdependentes. Em tal totalidade, cada processo, incluindo a produção musical, torna-se um local de poder, contestação, captura e, crucialmente, criação de valor.
O período de ascensão de Tiësto à categoria de superastro global, abandonando o Trance que o consagrou no final dos anos 90 em favor de uma produção musical voltada para o mainstream e colaborações estratégicas massivas, alinha-se perfeitamente com um conceito comum em relação ao capital: o oportunismo vulgar. Esta “meia-estratégia” envolve a dedicação em adornar os ricos e criar commodities que satisfaçam a vaidade de um mercado financeirizado, visando o enriquecimento e a popularidade, como poucos artistas de seu porte o fizeram. Tiësto, neste contexto, operou como um artista que aceitou ativamente sua identidade como uma “marca”, sem relutância ou ironia, assumindo seu papel como produtor de commodities especulativas dentro de um mercado igualmente especulativo.
Essa completa subordinação da produção cultural aos imperativos econômicos é um reflexo da crise de representação que caracteriza a economia global. Essa crise surge de uma desconexão profunda entre o preço de algo e seu valor intrínseco. No neoliberalismo, todas as esferas de valor – como a arte e a cultura – foram progressivamente subordinadas à medida monetária, onde o preço se torna a medida de valor mais universal, justa e confiável. Tiësto, ao aceitar produzir hits comerciais massivos, validou essa crença, transformando sua música em um produto de altíssimo valor de troca (preço), em detrimento de um possível valor de uso puro (satisfação não monetária), demonstrando como a esfera da arte hoje se encontra dominada pelos imperativos econômicos.
A percepção de que o recente retorno ao Trance, caracterizado pelo lançamento do single Bring Me To Life e o anúncio de um novo álbum para 2026, é uma manobra mais tática do que propriamente de realização pessoal sugere que este movimento está inserido em um outro conceito: a reflexividade. Essa estratégia, em sua vertente mais cínica ou “desprezível”, admite franca e descaradamente a incrível influência do dinheiro. Para muito além de um simples pivot musical; este comeback é uma jogada calculada, repleta de sinais, como o uso de um logo inspirado em sua época de Trance, o apagamento de todas as postagens do seu Instagram e a performance especial do set In Search of Sunrise no EDC Las Vegas. Tais gestos são uma forma de admitir a sujeição da arte ao dinheiro e lucrar com a surpresa que essa justaposição, ainda que esperada, provoca.
Essa mobilização estratégica de nostalgia e autenticidade funciona como uma tentativa de reafirmar a credibilidade do artista em um novo ciclo de mercado. A elite financeira, que hoje é a principal consumidora de arte crítica e contemporânea, frequentemente acumula arte que a critica como forma de se isolar dessa própria crítica ou como demonstração de uma “superioridade”. De maneira análoga, o retorno a um gênero percebido como mais “autêntico” (o Trance) serve para revitalizar a marca “Tiësto” em um mercado sedento por autenticidade. Ao utilizar o logo que remete ao seu álbum de 1999, o artista transforma o passado em um gesto que busca legitimar o seu valor dentro de uma economia simbólica específica, assim como um ativo financeiro ganha legitimidade e valor com base na sua capacidade de alcançar credibilidade temporária em algo já testado e bem avaliado.
A estratégia de Tiësto, ao usar a iconografia de seus dias de Trance e as referências ao Prismatic EP e aos seus sets clássicos, convida o público a participar de um rito para criar valor, aceitando a narrativa deste “retorno”. Embora o sucesso do dinheiro dependa da obscuridade do fato de que ele é uma criação humana coletiva, o anúncio calculista de Tiësto atrai a atenção para o seu próprio processo de produção e validação como arte. Ao insistir na autenticidade, ele convence o público a participar do trabalho de crença e atribuição de significado, que é exigido não só da arte, mas também do próprio dinheiro, que se sustenta na nossa suspensão de descrença.
Em conclusão, a evolução de Tiësto, desde o pioneirismo do Trance até o hiper comercialismo e o retorno estratégico, ilustra como a produção cultural contemporânea está profundamente submersa e moldada pelas contingências das estratégias financeiras de nível global. Sua carreira demonstra que, mesmo que o artista declare um retorno a valores “autênticos”, a própria autenticidade torna-se uma commodity. O movimento de pivotar de volta ao Trance, com todas as suas jogadas de marketing e promessas de um novo álbum, é, em última análise, uma forma de mediação que disciplina o nosso trabalho criativo e cooperativo, garantindo que o artista continue a ser um elemento vital (e lucrativo) na complexa engrenagem que o cerca — investidores, festivais, gravadoras, etc. Assim como o preço de uma mercadoria é sempre uma representação imprecisa do valor, o “novo som” de Tiësto é uma representação negociada da autenticidade em um mercado onde o preço é a métrica suprema.