Esta é a segunda temporada da série Diggin Essence. De setembro a dezembro, sempre na última terça-feira do mês, mapeamos artistas cuja relação com a discotecagem vai além do ofício. Sol Ortega abriu a temporada; Trajano veio na sequência e agora é a vez de Laurine & Cecilio. No caso da dupla, a trajetória começa bem antes do seu projeto em comum, Slow Life, se tornar uma referência de trabalho reconhecida mundialmente.

Laurine nasceu próximo à Brescia, no norte da Itália, e saiu de lá aos 18 anos, quando se mudou para Barcelona. A cidade catalã foi o primeiro ambiente onde ela pôde se aprofundar no garimpo de discos, testar as primeiras técnicas de mixagem e exercitar a curadoria que mais tarde se tornaria a base de seu trabalho. Foram quatro anos vivendo uma rotina entre lojas de vinil, warm-ups para pequenas festas e longas tardes de pesquisa, até que decidiu ir para Berlim, com o desejo explícito de se dedicar de forma integral à música e, como ela mesma disse em uma entrevista à Once Was Now, “criar a própria personalidade”.
Cecilio seguiu um caminho diferente, mas complementar. O espanhol começou sua relação com a música assumindo a trilha sonora em festas entre amigos ainda na adolescência — uma prática intuitiva, mais ligada à curiosidade do que a qualquer ambição profissional naquele momento, mas que o levou gradualmente a tocar em eventos independentes na Espanha. Assim como Laurine, ele também viveu um período em Barcelona antes de se estabelecer em Berlim, onde decidiu aprofundar sua pesquisa e transformar aquele impulso inicial em uma identidade artística consistente, absorvendo um repertório que transitava entre House, Minimal, Electro e Techno.
O encontro dos dois aconteceu em Berlim, em 2011, quando ambos já estavam imersos em pesquisas próprias e circulavam entre clubs, pequenas gigs e grupos de colecionadores. A sintonia foi evidente. Na capital alemã encontraram um cenário que acolheu a energia de trabalho que já vinham desenvolvendo: noites que permitem narrativas extensas e cabines onde a curadoria é o elemento central. Desse encontro nasceu o que viria a se tornar o Slow Life: primeiro como uma pequena comunidade de DJs e colecionadores, depois como festa, selo e, finalmente, como uma assinatura artística reconhecida no mundo todo. A filosofia que dá nome ao projeto vai de encontro com a estrutura que sustenta o trabalho de ambos desde o início: recusar a pressa e permitir que repertório, narrativa e maturidade se construam no tempo certo.
Além do percurso que os aproximou, existe um laço central que define Laurine & Cecilio: o som que escolheram cultivar e criar em conjunto. A dupla construiu uma identidade marcada pela combinação entre House, Deep, Minimal, Techno, linhas sutis de electro e uma preferência clara por texturas analógicas e faixas que se constroem progressivamente. O dom da leitura de pista, somada ao foco em garimpos e à sinergia que desenvolveram, abriu portas dentro e fora da Alemanha. Com o passar dos anos, o reconhecimento crescente de Laurine e Cecilio fez da dupla presença decisiva em cabines que moldam a cena contemporânea, como Hoppetosse, Club der Visionaere, fabric London, Concrete, Fuse Brussels e Klub K4. Fora da Europa, levaram a sonoridade Slow Life a eventos da América do Sul, como Feuer, na Argentina e 0db, no Brasil, onde dividiram o lineup com Brasi e Jane Fitz, nas Cataratas do Iguaçu.
A partir desse percurso surge a pergunta que move esta edição da Diggin Essence: o que faz da discotecagem de Laurine & Cecilio uma assinatura tão distinta? Nos próximos tópicos, vamos analisar aspectos que definem o trabalho da dupla como DJs — pesquisa, construção de fluxo, sintonia em cabine, coerência e domínio do tempo — elementos que, combinados, explicam por que sua presença se tornou referência internacional.
Sets construídos progressivamente
Quem acompanha a dupla sabe que o ponto forte deles não está em picos imediatos de energia, mas em como constroem um fluxo contínuo ao longo das apresentações. Laurine & Cecilio são reconhecidos por sets que crescem devagar, alternando intensidades com precisão e criando uma sensação de movimento permanente. Transições longas, mixagens lentas e ajustes de energia pensados para manter a pista engajada por muito tempo são características centrais da dupla.
Sintonia em cabine
Quando tocam, Laurine & Cecilio transmitem uma sintonia que não se encontra em qualquer b2b. Não é uma alternância entre uma música e outra, mas uma troca onde ambos respondem às escolhas do outro em tempo real e transparecem alegria genuína em dividir aquele momento. A sinergia construída ao longo de mais de dez anos faz com que as transições pareçam parte de um mesmo pensamento, mesmo quando dividem a cabine. Eles ajustam BPM, criam pontes entre estilos diferentes ou reorganizam a direção de um set sem que a pista perceba, logo, a fluidez é um dos elementos mais reconhecidos pelo público.
Coerência nas escolhas
Embora o Slow Life seja associado ao Minimal e House mais denso, Laurine & Cecilio não se limitam a esse recorte. A dupla transita por diversos caminhos, mas sempre com uma linha estética clara: um andamento mais contido, percussões sutis, atmosferas limpas e muito groove. Mesmo quando alternam décadas, idiomas ou origens em suas escolhas, o conjunto do set permanece coerente. É um talento raro de tornar repertórios distintos parte de uma mesma narrativa. Laurine, em entrevista à Once Was Now, menciona que “não importa se estamos falando de House, Techno, Minimal, Electro… É necessário que seja profundo de alguma forma.
Paixão pelo diggin’
O trabalho da dupla se sustenta em um garimpo contínuo, feito principalmente através de discos de vinil —- prática que acompanha ambos desde o início de suas jornadas. O repertório mistura prensagens antigas, faixas esquecidas dos anos 90 e produções recentes de nicho, muitas delas encontradas em lojas pequenas e catálogos menos evidentes. Essas escolhas criam uma assinatura própria e reconhecível: seleções que soam analógicas, cheias de sutileza e com caráter atemporal.