6.3. Licença para o WeTransfer. Para que possamos operar […] Você nos concede uma licença perpétua, mundial, não exclusiva, livre de royalties, transferível e sublicenciável para usar seu Conteúdo com os propósitos de operar, desenvolver, comercializar e melhorar o Serviço ou novas tecnologias ou serviços, incluindo melhorar o desempenho de modelos de aprendizado de máquina […]
A recente mudança nos Termos de Uso do WeTransfer adicionou uma cláusula que, mesmo com redação que deixa dúvidas, aponta para uma nova etapa no conflito entre criadores e grandes plataformas digitais. A partir de agora, a empresa se reserva o direito de utilizar conteúdos enviados pelos usuários para o desenvolvimento de tecnologias, incluindo modelos de aprendizado de máquina, ainda que justifique essa coleta com a intenção de “moderação de conteúdo”. A formulação genérica do texto, no entanto, permite interpretações que ultrapassam essa função, abrindo margem para que obras criativas sejam incorporadas em treinamentos de IA sem consentimento específico, remuneração ou mesmo notificação aos autores.
A mudança nos termos do WeTransfer expõe uma tensão crescente, onde ferramentas amplamente utilizadas por artistas e profissionais criativos começam a operar com cláusulas que podem contrariar os interesses desse mesmo público. No caso da plataforma, a nova cláusula amplia a possibilidade de uso dos arquivos enviados para fins de desenvolvimento tecnológico, incluindo aprendizado de máquina. Esse tipo de ajuste, cada vez mais comum em empresas que lidam com dados culturais, acontece em meio a uma disputa por acervos que alimentem modelos de IA generativa, em um ambiente onde os critérios de coleta e reaproveitamento seguem pouco claros.
Outras gigantes já adotam práticas semelhantes. A Meta, por exemplo, deixou explícito que usa conteúdos públicos postados em suas redes para treinar modelos de IA; a Adobe, por sua vez, desenvolveu seu sistema Firefly a partir de um banco de dados de imagens públicas e licenciadas internamente. Embora as empresas declarem atuar conforme leis locais e políticas de privacidade, o que se observa é uma ausência de mecanismos claros de recusa e, sobretudo, uma lacuna regulatória que impede os criadores de saberem, de fato, como seu trabalho está sendo usado. Soma-se a isso o fato de que, segundo uma pesquisa recente da Deloitte, 91% dos usuários aceitam termos de uso sem sequer lê-los, tornando o conceito de “consentimento” digital uma formalidade simbólica e desequilibrada.
No caso do WeTransfer, a situação é particularmente sensível por se tratar de uma plataforma que opera no cerne do circuito criativo. Não é exagero dizer que ali transitam arquivos ainda em gestação, faixas não lançadas, ilustrações em rascunho, textos de pitch ou versões de trabalho, que poderiam, em teoria, ser coletados e transformados em insumo para sistemas que atuam fora de qualquer contexto original. Diante disso, surgem respostas fragmentadas, mas significativas. Ferramentas como o Glaze e o Nightshade oferecem formas de proteção para imagens, introduzindo distorções imperceptíveis ao olho humano mas eficazes contra treinamentos de IA. Iniciativas como licenças Anti-AI ou AI-Free buscam criar selos de proteção, enquanto pressões por novas legislações tentam impor limites à captura indiscriminada de conteúdo criativo.
Mas nenhuma dessas saídas ainda representa uma solução sistêmica. E talvez o maior sinal de alerta seja justamente esse: plataformas que durante anos funcionaram como aliadas invisíveis no backstage da criação artística agora reposicionam seu papel, distanciando-se da função de meio neutro para assumir a de instrumento ativo na engrenagem da inteligência artificial. Até que ponto essa dependência continuará sendo sustentável? Em que momento a infraestrutura que apoia o artista passa a explorá-lo? O risco é que, sem mudanças estruturais e regulatórias, cada envio de arquivo deixe de ser apenas uma etapa criativa para se tornar também uma concessão invisível de autoria.