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A música conecta

Alataj entrevista Fabrice Lig

Por Alan Medeiros em Entrevistas 07.03.2019

Abandonar uma carreira considerada “normal” pela sociedade para se dedicar a algo voltado a arte nem sempre é uma decisão fácil. O grande ponto, na verdade, é que essa questão muitas vezes não trata-se de uma escolha. Quando a música entra na vida de um artista em sua essência, ela age como um furacão com o poder de transformar tudo por completo.

Esse é mais ou menos o roteiro de vida do DJ e produtor belga Fabrice Lig. Antes de se dedicar a música, Fabrice dava aulas de história e geografia, mas após ser pego de jeito por influências que variam do sci-fi soul e techno, passando pela house music de Chicago até chegar no break dance, Lig decidiu transformar sua paixão em profissão e desde a década de 90 tem impactado a comunidade da dance music global com trabalhos de ponta lançados por labels como F Communications, KMS (por onde remixou Kevin Saunderson em seu projeto E-Dancer), Kanzleramt, Systematic Recordings e Crosstown Rebels.

Apaixonado por tecnologia, Fabrice Lig está constantemente empurrando seus limites no estúdio em busca de evolução artística. Seu mais recente EP trata-se de uma colaboração com Raw District e Just Her para a faixa Lay Your Weapons Down, liberado oficialmente pela Crosstown Rebels de Damian Lazarus no último dia 1º de Março.

Aproveitamos o recente lançamento e sua boa fase para um bate-papo exclusivo com o artista. Confira o resultado abaixo:

Alataj: Olá, Fabrice! Obrigado por nos receber. Percebo que você possui um relacionamento bem intenso com as máquinas que te ajudam a criar música. Como você vê esse relacionamento entre homem e máquina na esfera criativa? Você acredita que a inteligência artificial pode mudar a forma como produzimos e consumimos música em um futuro?

Fabrice Lig: Olá. O prazer é meu! O relacionamento do homem com as máquinas, para a geração mais velha como a minha, é como o relacionamento feminino e masculino, é uma coisa física e espiritual. Tocar as máquinas é algo que eu preciso, sentir a reação também é importante. Percebo que as gerações mais novas conseguem fazer música de outra maneira e também funciona, elas têm sua própria abordagem agora. Não quero que as pessoas pensem que sou um cara nostálgico e com pensamento retrô. Acho que existem muitas maneiras de fazer música boa, o homem/mulher é quem traz a energia, a alma em uma música. Então, para responder a segunda pergunta, sobre Inteligência Artificial, depende como nós vemos e usamos. Para um cara que nunca estudou música como eu, meu sonho é um computador que consiga ler meu cérebro e reproduzir minhas ideias na música. O único limite seria a imaginação e criatividade do cérebro. Poderia quebrar definitivamente os limites que ainda tenho quando produzo música. Acho que isso vai acontecer em algum momento, e isso poderia abrir muitos novos horizontes para a evolução da música.

A decisão de se dedicar plenamente a música eletrônica é uma tarefa bastante complicada, principalmente quando há a possibilidade seguir uma carreira “normal”. Como foi esse processo pra você?

Hmm, foi isso que eu fiz por 10 anos. Agora faz 10 anos desde que voltei para o trabalho de professor… Em 2008/2009, quando a indústria da música estava caindo, encarei a escolha de continuar fazendo música em período integral, mas com a provável pressão de fazer música pop regularmente ou voltar e ensinar (filosofia na escola secundária principalmente), continuando a ver música como um prazer, um hobby profissional, sem nenhum compromisso no lado artístico e agenda de lançamentos. Para mim, essa foi a melhor forma de permanecer verdadeiro e continuar a construir meu próprio som. Esse é o meu objetivo na música, ter um som verdadeiramente particular, da moda ou não. Quero que as pessoas reconheçam o som de Fabrice Lig, é provavelmente a parte mais difícil de querer construir uma longa carreira e uma discografia realmente sólida.

Sua pesquisa é um tanto quanto extensa e marcada por referências de diferentes movimentos musicais. Como DJ e seletor musical, como você organiza isso de uma forma que faça sentido no seu dia-a-dia?

Estou ouvindo bastante música, minha maior frustração hoje em dia é precisar de mais tempo para ouvir coisas novas, principalmente pelo fato de gostar de vários estilos, do hip hop ao jazz, funk, eletrônica, soul… Há muita música boa sendo lançada, mas é preciso achá-las em um oceano de novos lançamentos, não é fácil, então peço aos amigos que me ajudem em outros estilos além do eletrônico. Para o meu DJ set eu tenho um jeito fácil de selecionar… Tem que ser moderno, com alma, poderoso, o melhor são todos esses elementos juntos, e você pode encontrar esse tipo de música no techno e na house music.

Remixar Kevin Saunderson deve ter sido um dos momentos mais importantes de sua carreira até aqui, correto? Você se lembra como encarou esse desafio lá em 1999? Se fosse hoje, teria feito algo de diferente?

Foi muito especial. Eu tinha um amigo que trabalhava para a PIAS na Bélgica (selo em que KS lançou seu álbum naquela época) que propôs que eu fizesse um remix e talvez enviasse para PIAS e ao Kevin… Fiz isso por diversão e com muito respeito a Kevin, foi ele quem me inspirou a produzir música. Kevin gostou do remix e concordou em lançar em um EP de remixes, mas eles também pediram a Underground Resistance e Funk D’Void para remixarem… Quando eles tiveram que decidir o tracklist do EP, eu não estava no topo da lista, por isso não foi lançado na PIAS. Foi aí que um ano depois, um amigo me ligou para me parabenizar pelo meu remix na KMS, selo de Kevin Saunderson… Eu não sabia disso, foi uma grande surpresa e um enorme prazer. Kevin e Mike (Mad Mike da U.R) queriam lançar o remix, então colocaram na KMS. A magia da música.

Para mim, remixes precisam ser algo especial, não apenas um serviço para os selos e uma forma de ganhar dinheiro. Tive muito prazer em fazer remixes para Laurent Garnier, DJ Hell, Agoria, Rob Mello, Kenny Hawks, Oliver Kapp… e ano passado para Wolfgang Flür do Kraftwerk. Remixes tem que ser algo espiritual também.

Boa parte de seus lançamentos são liberados pela Lig Music. Lançar por seu próprio label representa ter mais liberdade criativa nos projetos ou não necessariamente?

No momento, a ideia por trás do selo era relançar meu catálogo de músicas. Lancei em tantos selos diferentes. Às vezes, minha discografia parece um labirinto ou quebra-cabeça. Então, para os novos fãs, era necessário ter um lugar em que a maior parte das minhas músicas ficasse armazenada. Mas também é a chance de lançar algumas faixas inéditas e especiais sem os filtros dos selos, é algo que provavelmente eu desenvolva mais no futuro.

Durante muitos anos a pista de um club representou o ápice no que diz respeito a um lugar para dançar e tocar música eletrônica. Entretanto, sinto que essa realidade tem se transformado em direção aos grandes festivais nos últimos anos. Você também enxerga dessa forma? Na sua opinião, qual destes dois ambientes tem sido mais libertador para artistas e público?

Sim, e a Bélgica é um bom exemplo, agora temos mais festivais do que clubs… Festivais são interessantes se você tem a ideia de descobrir coisas novas ou diferentes, se você tem a mente aberta e não apenas a vontade de ver alguns artistas e nada mais. Em minha opinião, o club é o melhor lugar para sentir, viver e entender a dance music. Clubs pequenos ou médios são a melhor experiência que você pode viver. É aconchegante, o som vem direto no seu rosto (e corpo), o DJ pode sentir melhor e brincar com o público. É difícil construir uma relação com um público de 10.000 pessoas, você pode fazer um bom set, mas sem ter uma conexão real com as pessoas. Alguns artistas atualmente estão tocando em festivais apenas pelo dinheiro, e isso é triste, pois eles perdem a essência da música, a conexão com as pessoas.

Você acabou de participar de um EP pela Crosstown Rebels colaborando com Raw District e Just Her na faixa título do release. O que você pode nos contar a respeito de Lay Your Weapons Down?

Quando Massimo & Vernon da Raw District me propuseram fazer uma faixa juntos, imediatamente pulei dentro. Eles são grandes amigos de longa data e artistas muito bons, então havia uma conexão espiritual. Eles me enviaram os vocais de Just Her que me inspiraram muito. A ideia era combinar o meu lado melódico de fazer música com sua poderosa e orgânica forma de produção. Dessa forma, acho que funcionou. Em uma colaboração, sinto que é importante fazer uma faixa que você nunca faria sozinho, foi exatamente isso que aconteceu, e de um jeito bom. Estou muito feliz e orgulhoso.

Para finalizar, uma pergunta pessoal. O que a música representa em sua vida?

Música é algo que eu preciso, ouvindo e também produzindo. É físico, não posso ir contra isso, é como quando você precisa respirar ou comer… A música me traz muitas emoções, é a linguagem que eu mais entendo, acho que é algo universal, todos precisam de música. Por outro lado, não quero que a música seja a única coisa em minha vida. Preciso da minha família, amigos, natureza, cinema, cultura… É uma grande parte da minha vida, mas um elemento de algo global. A vida não pode ser baseada apenas na música, mas uma vida sem música é impossível.

A música conecta.

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