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A música conecta

Eduard e toda sua experiência enriquecem a Troally

Por Alan Medeiros em Troally 25.06.2015

Eduard é o tipo de artista que não surgiu do nada. Desde pequeno ele – realmente – vive a música. Junto com seus irmãos montou um dos maiores catálogos de bootleg’s do Brasil na década de 90. De lá pra cá, aprimorou ano após ano as suas pesquisas e acompanhou de perto toda transformação que a tecnologia ofereceu ao nosso meio. Integrante do coletivo TROOP, de Florianópolis, ele tem uma visão bem interessante sobre diversos aspectos explorados na entrevista, incluindo questões artísticas e sociais. Não seria ousadia da nossa parte dizer, que o material que você vai conferir a seguir, é com certeza um dos melhores da curta história da Troally. Enjoy!

1) Olá, Eduard! Prazer falar com você. Conte para nós como foi a sua iniciação na música eletrônica. Quais foram os fatores principais que te levaram a ser DJ?

Olá. O prazer é meu! Desde já agradeço o convite pra participar do Troally. Olha, eu não sei bem como isso começou exatamente. Eventualmente alguém me pergunta isso, e o que consigo pensar é que passei os anos 1980-90 em frente a um aparelho de som Sony, daqueles com tudo separado, receiver, toca-discos, tape deck, ao lado de dois irmãos mais velhos. O primeiro ouvia o som da primeira metade dos 80, entre rock, pop e new wave, algo entre The Police e Duran Duran. O segundo ouvia um rock mais alternativo, da segunda metade dos 80 – 1988 em diante, pra ser mais preciso, que é quando começou a surgir uma oferta mais variada de LPs nas lojas – pra situar, algo entre Cocteau Twins, The Sisters of Mercy, Killing Joke, New Order. Além disso, um dos meus irmãos, o segundo, entrou no mundo punk no fim dos 80. Nós fazíamos um fanzine, o Grito Surdo (na época escrevia-se apenas ‘zine, porque fanzine era muito pop, rs) e lá por 1990 tínhamos uma distribuidora de fitas k7, a Fucking Tapes, com gravações de shows desse universo alternativo, era provavelmente o maior catálogo bootleg do Brasil, numa cidade do interior de Santa Catarina. Então eu cresci ouvindo discos, gravando fitas e com muita informação. Só a partir dos 90 é que comecei a ter meus próprios LPs e construir um acervo. Eu era office boy e gastava todo o meu dinheiro nisso. Nos dez anos seguintes eu ouvi de tudo: dei alguns passos atrás em relação às discotecas familiares e comecei a ouvir as coisas dos anos 70 além do punk, um rock mais progressivo, produções nacionais, MPB inclusive. Perto dos anos 2000, já na universidade, eu passei a ouvir jazz e um pouco de música clássica. Nessa época também houve o boom do mp3, e de repente era possível acessar todos os discos que você não conseguiu ouvir nos 20 anos anteriores, além de todo um outro universo alternativo que não sabíamos que existia. Lembro de duas bandas dessa época que me chamavam muito a atenção, Crybaby, de Atlanta, cujos arranjos não possuíam riffs e solos de guitarra, o que era um alívio, e Drone Theory, que usava bateria eletrônica com uma programação interessante (usar bateria eletrônica era quase um demérito nessa época). Em meio a isso, comecei a sair à noite lá por 1998. O som que eu curtia dificilmente rolava nos bares, em Florianópolis, e pouco a pouco comecei me a interessar por algumas festas eletrônicas. Lembro até hoje da primeira vez que ouvi “Secrets of the Floating Island”, do XRS Land, em um bar daqui chamado O Santo, em 1999. Um tempo depois surgiu o Conceição Nite, e lembro que peguei algumas noites de techno. Daí não parei mais. Um momento emblemático pra mim é do tempo em que morei em Curitiba, a rádio 96 Rock tinha um programa no sábado à noite chamado Poperô, acho que das dez à meia noite, em que algum DJ que estava passando pela cidade pra tocar ia lá e fazia um set, com entrevista. Daí ouvi um cara chamado Mental Giu (hoje somos amigos), que começou o set com uma track do Patrick Dubois,“Isoghi”. Aquilo foi um momento. Levei alguns anos até descobrir qual era a track, quando encontrei o Giu, afinal, e perguntei… Mas enfim, nessa época eu dava aulas numa faculdade em Curitiba e fazia pós-graduação aqui em Florianópolis. A viagem semanal de três horas dirigindo entre um ponto e outro era um espaço sagrado onde eu ouvia os sets que tinha conseguido baixar durante a semana, e pouco a pouco fui entendendo como funcionava a mixagem. Então, minha entrada na música eletrônica rolou por uma estafa pessoal da música de bandas, no sentido de uma música estruturada em torno da letra, solos de instrumentos etc., e por uma atração em torno de uma musicalidade não linear, com um apelo estético que me parecia mais interessante, onde houvesse espaço pra eu interagir. Em 2008 comecei a tocar em parceria com o Edo Gasparetto. Temos um projeto chamado SHIFTD. Hoje em dia temos sonoridades distintas, mas eventualmente nos reunimos pra tocar e a coisa funciona bem. Também usei por um tempo o nome The Editor, em uma linha techno mais pesada. Hoje uso apenas o meu nome, Eduard, e não reivindico a posição de DJ. Sou mais um pesquisador.

2) Você que participa de forma atuante da cena já há alguns anos, como enxerga esse processo de transformação que tem acontecido? O que mais mudou se olharmos a realidade de hoje para a realidade de 10 anos atrás?

A “cena” é uma coisa curiosa, meio paradoxal. Ela se renova mas ao mesmo tempo parece sempre a mesma coisa. Depende de como você olha – porque “a realidade” não existe, só existem os relatos sobre a realidade, as ficções que armamos sobre essa coisa a que chamamos “realidade”, enfim.
As perspectivas de qualquer um mudam bastante em 10 anos – o som que você ouve ou produz, os eventos a que você vai ou deixa de ir, um mercado que se forma ao lado de outras iniciativas que não conseguem se firmar. 10 anos é tempo suficiente pra umas três gerações de consumidores. Se você perguntar isso a um promotor de eventos na área da música eletrônica ele dará um tipo de resposta – provavelmente diga que hoje o mercado está mais promissor e que há mais espaço. Aqui pela região há grandes casas sempre lotadas, como o Warung, o Green Valley (nunca fui lá, mas gostaria de ter ido, perdi de ver o Marc Antona, em 2011), o Terraza, além de festivais. Já se você perguntar a um produtor independente, cheio de ideias e conceitos, ele dirá que é difícil viver disso e abrir espaço, e que nem sempre vale à pena. Se perguntar pra quem está a mais tempo tocando por aí, poderá demonstrar algum tédio, e se perguntar a alguém que está começando, estará super entusiasmado com a possibilidade de comandar uma pista.
Mas, de 10 anos pra cá, mudou tudo. Basta pensar que as pessoas consomem mais música, só que de outra forma (tenho um filho de 14 anos e pra ele a música só existe de forma digital, e a origem é o smartphone). É fato que há público e que há mercado, mas seria preciso perguntar “Para qual música eletrônica?”. A sensibilidade do público em geral mudou, que hoje ouve sons sintéticos, produzidos por computador, mas a demanda desse público em massa continua pela mesma estrutura didática, de início, refrão, clímax (com “subidão”, rs), letra, melodia e grooves simples. Ir além disso é sempre uma empreitada pessoal.
Tudo é muito curioso. Em Florianópolis, há 10 anos você via Mathew Jonson, Heartthrob, Gaiser tocando na Lagoa da Conceição, numa casa como a Confraria das Artes, que mais tarde ficou apenas na música comercial e hoje está fechada (aliás, parece que estão fechando toda a Lagoa da Conceição). Depois disso houve um vão, quase não havia festas, era preciso ir ao Warung pra ouvir certas sonoridades. De uns cinco anos pra cá se formou um novo cenário local. Eu arriscaria dizer que o que existe hoje em parte se deve porque o Ricardo Lin descobriu uma tomada no Trapiche da Avenida Beira Mar Norte. Lembro que lá por 2008 ele andava com uma caixa mista emprestada no porta-malas do carro e a gente chegava lá, ligava as coisas e tocava até surgir a polícia. Daí o Allen Rosa fez uma coisa organizada, a Sounds in da City, que hoje atravessa uma série de obstáculos com burocracia para continuar ocupando os espaços públicos da cidade. Talvez até haja quem tenha feito isso antes e eu esteja cometendo alguma injustiça, mas é o modo como me lembro das coisas.
Parece que se não for em Berlim, em Detroit ou na Romênia (e isso é um olhar de alguém de fora), não há como gerar uma progressão contínua do público para as sonoridades alternativas, simplesmente porque não é assim que a coisa funciona. Quem sai à noite está em busca de diversão fácil, e quem vive disso investe no que dá retorno financeiro. Se a pessoa assimila informação de um modo mais crítico, só então ela passa a escolher aquilo que consome. E isso não só pra música, porque atinge toda a esfera de bens simbólicos – o cinema, as artes plásticas etc. Você pode até conseguir uma rotina de DJs e produtores interessantes circulando pela cidade, mas um público que saiba o que está consumindo, crítico, depende de uma série de outros fatores que implicam política cultural pública em todas as facetas do setor artístico, e com um olhar aberto, que vá além de um conceito de cultura atrelado à noção de folclore.

Mas pra resumir, o cenário em Florianópolis hoje é bem diferente de 10 anos atrás. Há pouco tempo, a opção era ir até Itajaí ou Balneário Camboriú. Hoje você tem aqui uma casa como o Terraza, em que passam DJs e produtores como Carl Craig, Fumiya Tanaka, Koze, Margaret Dygas, Anthony Collins, Matthias Vogt, Iron Curtis, San Proper, Robag Wruhme, Michael Mayer etc. Tem a Sounds, com um viés rítmico em outra linha e por onde já passou muita gente. Tem o Karuna, na praia da Joaquina, do pessoal do núcleo In Da House, uma festa que está completando dois anos e que tem se esforçado pra oferecer bons lines; tem a Injeção Eletrônica, a EXIT, que fez edições ótimas, e mais recentemente a Bend, no centro da cidade. O cenário é bom. Você pode escolher em qual festa ir. Há muita vontade de fazer acontecer, mas um olhar mais “pra frente” dos setores público e privado sobre a música eletrônica e as artes em geral na cidade (e no estado) seria bem produtivo. A música eletrônica não precisa ficar restrita às festas. Há muito por explorar.

3) A música muitas vezes exerce importante papel social. Com a cena eletrônica não é diferente. Quais ações você acha que seriam possíveis por em prática para levar gêneros como House e Techno a pessoas que não têm condição de bancar os caros ingressos dos grandes clubs da região?

Olha, eu acredito cada vez mais em eventos intimistas, com orçamento baixo, que permitam aos núcleos continuarem em atividade praticando experiências estéticas interessantes. Não faltam ideias nem vontade dos produtores alternativos. Como disse antes, acho que falta um olhar inteligente da esfera pública e da iniciativa privada que reconheça a música eletrônica como manifestação do intelecto. A música eletrônica não é nenhuma novidade, são já algumas gerações… Talvez isso aconteça aqui, desta forma cara, via superclubs, porque o gênero eletrônico não veio das ruas, chegou a partir de pessoas com maior poder aquisitivo e acaba sendo visto apenas como entretenimento confinado a estes lugares. Por exemplo: recentemente tivemos Carl Craig no Terraza, mas poderíamos tê-lo visto fazendo um live no Teatro do CIC. Quem já assistiu ao Versus 2.0, com Craig, Tristano e Von Oswald, ou o Hawtin no Grand Palais entende o que estou falando. Então, assim como falta espaço para uma música conceitual, falta espaço para outros vieses da arte em geral por aqui. É uma questão de visibilidade e investimento nas pessoas. Por exemplo: você vai a Curitiba e consegue visitar no Oscar Niemeyer uma exposição sobre o Dada e o Surrealismo, tendo trabalhos de Marcel Duchamp à sua frente. Por que isso não acontece aqui? Ter acesso a informação é o que muda a escopia das pessoas, a forma como se percebe o mundo. A música é uma parte disso.
E outra coisa: tem toda essa conversa de que o som precisa ser comercial, acessível, pra atrair público blablabla. Mas house e techno sempre funcionam. Os públicos precisam ser desafiados. O resto é paranoia.
Então, de modo prático: precisamos ter acesso à cidade. A cidade é das pessoas e elas têm o direito de utilizá-la. Lamentavelmente, neste momento estamos experimentando o contrário disso por aqui, com entraves e não liberação de alvarás, por exemplo. Mas é preciso persistir.

4) Para encerrar. Comente um pouco sobre seu trabalho como residente do núcleo TROOP, como tem sido essa jornada junto ao coletivo?

Tenho muito orgulho de fazer parte da TROOP. É um projeto com que me identifico. O Caetano me convidou em 2013, depois vieram o Le Calve e o Guto Gomes. O projeto é itinerante, sem linha de som definida, e a gente se articula para desenvolver um conceito de evento que una música à imagem, moda, gastronomia. Normalmente as festas não dão lucro, mas temos conseguido fazer a coisa girar e criar alguma circulação de DJs do país cujo trabalho nós admiramos. A TROOP já fez boas conquistas nestes dois anos de atividade. Na festa de aniversário, trouxemos o Fred P aka Black Jazz Consortium. Foi uma festa incrível. E o mérito é do Caetano, que não desistiu enquanto o negócio não se tornasse possível, articulando parcerias com outros núcleos e clubs do país. Também temos uma série com podcasts, a Overcast, que está no 18o. volume, reunindo muita gente boa que está em plena atividade neste momento: DoNeck, Godog, Blasquez & Holocaos, Stekke, Max Underson, Vivian Penzes, Daniel UM, Renato Lopes, Mau Mau, o duo português Module 23, Andre Torquato, Manara, Mauricio UM entre outros. Queremos trazer todos para cá e estamos sempre buscando formas de tornar isso possível. Acho que o projeto ainda pode render muito mais, e vamos trabalhar para isso.

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