O nascer de um álbum é algo muito subjetivo e peculiar na vida de uma artista. Pode ser que ele venha programado, que demore meses para ser construído ou, até mesmo, aconteça naturalmente e de uma vez só, literalmente em poucos dias. Foi exatamente essa segunda hipótese que aconteceu com o brasileiro Pedro Floriani, DJ, produtor e apaixonado pelo universo dos discos de vinil.
Trabalhando na criação musical desde 2006, Floriani já lançou suas faixas em formato digital e também em vinil pelos selos Little Helpers, Resopal Schallware, Permanent Vacation, Los grandes, além de lançar em sua própria gravadora Kanka Danky, fundada no início do ano. Já em relação a este álbum que acaba de sair pela gravadora catarinense Biscoiteca, Pedro nos traz um relato muito interessante sobre a criação das tracks, suas intenções na hora de produzi-las e, como iniciamos essa introdução, como ele trabalhou nesse projeto de forma tão natural e em tão pouco tempo. O álbum é realmente uma peça interessante e que, a nosso ver, vale muito escutar, mesmo!
Pedro Floriani
Esse trabalho foi feito em aproximadamente 40 dias, bem no início da quarentena do Covid-19. Não tinha em mente a ideia de fazer um álbum, mas tinha a ideia de fazer muitas faixas baseadas em cortes de samples, recortando e rearranjando eles, e dar um novo sentido para tudo adicionado novas linhas de baixo, sintetizadores, drummachines, fieldrecordings, etc. Nesse período, eu estava estudando a fundo as técnicas de produção de rappers americanos, principalmente as técnicas MPC chopStyle (samples picotados no sampler Akai Mpc). Associado a isto, passei dias a procurar samples para toda esta empreitada.
No quesito da procura de samples, apelei para tudo: vinil, youtube, discos de Kraut Rock, Indie, Psychodelic Soul, Piano Jazz, Acid Jazz, Folkmusic, entrevistas, programas de televisão e field recordings, sempre gravando tudo no meu gravador Tascam.
A situação do Covid foi piorando e, quando entramos em lockdown, eu já estava carregado de samples que me tomariam um bom tempo. Nos primeiros 40 dias do coronavírus, com base nesses samples, fiz umas 50 faixas, daí escolhemos 12 para fazer este álbum. No final, acabamos adicionando mais três faixas bônus, e estas somente estarão presentes na fita cassete ou para quem comprar o álbum inteiro no Bandcamp.
Another Rain | Another Rain é uma faixa onde eu queria dar um novo sentido a um vocal. Sampleei a voz e um vinil de breakbeat, resequenciei tudo e adicionei uma bateria e um baixo. Foi um processo simples e rápido, porém logo senti que tinha conseguido alcançar um bom groove junto aos vocais recortados. Os timbres vocais aliados a guitarra trazem aquela sensação de aconchego e conforto, no bom estilo Indie-folk. Somando as baterias temos uma mistura perfeita para relaxar e dançar ao mesmo tempo. Uma música pra se escutar em qualquer lugar, na minha opinião.
Cabkanek is Gone | Essa é outra faixa que tive a intenção de fazer um clima Indie-folk, com um sample de uma banda Folk-rock que adoro. Quis transformar o sentimento que tenho por aquela música numa track dançante. Usei o sample totalmente como inspiração para entrar nesse sentimento. Tentei fazer ela mais curta no início mas não consegui, o take original tinha 20 minutos. Várias partes gravei com microfone passando por um amplificador de guitarra que tenho em casa, para criar ainda mais aquela textura de música de banda mesmo. Com kick e bass feitos pra pista, a faixa traz um ciclo propositalmente repetitivo, junto a um timbre sintetizado que se movimenta em torno da faixa, entrando e saindo sutilmente, em um sentimento nostálgico pra literalmente fechar os olhos e se deixar levar.
Happy With U | Essa música está pronta a um tempo, já havia trabalhado o sample, a bateria e o baixo, mas sentia que faltava algo, uma melodia ou algo do tipo. Tinha que ser uma melodia alegre, mas ao mesmo tempo agoniante. Até que criei um patch no Reaktor, uma espécie de órgão de igreja, que passa por um monte de efeito tipo cassete tape, gerando variações de pitch, wow, flutter e todas aquelas imperfeições que adoramos escutar. Gravei essa melodia via amplificador de guitarra com um microfone e adicionei a melodia a música. Ali senti que tinha finalizado e criado o clima que queria. Se esse álbum fosse uma família, eu diria que essa música seria a irmã mais nova da Another Rain, com o sample vindo da mesma fonte; ela vem com baterias e baixo um pouco mais animados e fortes, mas a mesma alma e sentimento de conforto e aconchego da irmã. O diálogo dos vocais e harmonia meio confusos dá uma certa sensação de amor e ódio. Você acaba preso tentando saber se o final dessa história é feliz ou não.
Holy Beat | O diálogo inicial já diz que “se a gente quiser ser muito cool, a gente vai perder”. Aproveite, curta o momento e o que você está fazendo que com certeza tudo será eterno. É com muito amor, vontade e sem querer mostrar para os outros que você chega a coisas incríveis que nem imagina. Claro que você deve ser cool, mas somente para si mesmo. Você tem que ser brutalmente sincero com você mesmo e se livrar de todo ego. A música repele o ego. No meio da música tem um rapper que gosto muito falando, “25 anos depois, ainda falando sobre aquilo”. É exatamente o quis dizer: apenas faça, com o coração, à sua maneira e sem pensar no que vão pensar sobre isto.
Oh Baby Girl, I Have to Go… | Na procura dos samples, queria que um deles tivesse aqueles strings dos anos 70 a lá Shaft (seriado). Nessa busca, achei um disco sexy de Soul onde tem essa mulher com essa voz fora do comum e também uma linha de saxofone, instrumento que geralmente tento evitar. Juntando tudo temos uma “House track” feita com samples de seriado de investigação dos anos 70. Oh Baby Girl, I Have to Go… vem com duas partes muito interessantes que conversam muito bem. O break, se é que podemos chamar assim, tem strings que levam longe. Já o drop vem mais com sabor de chacota, caçoando com o break, tirando aquele sorriso maroto do rosto de quem ouve. Pra quem gosta de parafrasear no nosso português, nós ficamos com “uh, vai, não faz mal” que já aparece logo no início da faixa.
Thru the Time, Come On! | “Tem que sentir por dentro, através do tempo, vamo lá.” Chegando na metade do álbum, essa talvez seja a faixa mais ‘pra cima’ do lançamento. Com essa mensagem forte, ela chega com tudo no drop, pra fazer qualquer um sair da zona de conforto. Dos samples dela, posso confessar que a voz é do nosso querido Psycho Killer. Há tempos queria uma faixa com aquela vibe Talking Heads, com a voz dele. Sempre escutava a discografia dele e nunca achava um sample que me inspirasse a criar algo. Até que achei.
Naneke | Naneke é um breakbeat bem introspectivo e profundo, carregados de uma energia singular no contexto desse álbum, mas que encaixa igualmente bem na minha personalidade como artista. A faixa já estava bem encaminhado, mas eu sentia que faltava a cereja do bolo. A partir disso, resolvi fazer uma homenagem a um cara que foi uma inspiração para mim em vários momentos nesse último ano: Lil Peep. É ele falando na música. Na minha opinião foi uma perda inestimável para música, um jovem extremamente talentoso e carismático que deixou para gente uma visão linda e ao mesmo tempo perturbadora do mundo que vivemos.
I’m Found I’m Safe | Queria criar uma faixa 100% feita de samples, sem drum machines ou coisas do tipo. Todos os samples deveriam ser recortados de músicas e colocados em um novo contexto. Foi o que fiz aqui. Sampleei umas seis músicas diferentes, dos mais diversos estilos, afinei, deixei em 12 bit para dar uma textura ainda mais crua e resequenciei tudo novamente para criar esse projeto. Gosto da atitude dela, bem crua e direta.
Funky Guide U | Essa é minha faixa preferida do álbum e a que mais gosto de tocar. Peguei samples de três vinis de funky dos anos 70. Inclusive um que tem um vocal. Até mesmo o baixo é sampleado e resequenciado. Foi uma track que fluiu com muita naturalidade e finalizei rapidamente. Deixei ela descansar por uns dias, e quando escutei novamente, senti a necessidade de adicionar alguns synths para acentuar o clima que queria para ela. Foi quando criei um patch num synth wavetable e adicionei nele vários efeitos do Eventide 3000. Outra coisa interessante é o snare. Queria um snare seco, no estilo woodblock e não encontrava nenhum sample. O sample final do snare sou eu batendo com uma colher de pau na porta da minha cozinha, bandpass filter, reverb leve e voilà.
Abers | Todo groove dessa faixa se deve a um sample que peguei de uma banda de Jazz marroquina num show a vivo nos anos 70. Foi com um simples groove que tirei dali que consegui criar toda esta track. No Marrocos no final dos 70 rolavam muitas festas secretas em lugares remotos, de pura improvisação, onde vários jazzistas viajavam para lá para imersões musicais que duravam dias. Com base nesse sample criei uma linha de piano elétrico com dois vsts de Fender Rhodes e gravei eles através do meu amplificador de guitarra com microfone. Semanas depois de terminar o projeto escutei novamente e adicionei uma linha meio Acid com Korg Monologue e alguns pedais de guitarra. Adoro tocar essa track também. Funciona muito bem. E é a preferida da galera da Biscoiteca.
Haze | Com 4:20 minutos, essa faixa é bem expressiva e sugestiva. Peguei um breakbeat do sample “haze” de um vinil que tenho. O sample Uhuuuhuu é de um antigo disco de Soul. Montei a parte de bateria com o samples. Para grudar tudo, criei duas melodias com órgãos, usei um Fasfisa e um Mellotron da Arturia. Também gravei eles com microfone via amplificador de guitarra para dar uma sujada e distorcida no som. Daí somente ficou faltando o baixo, que foi feito no Korg Monologue. Fiz a sequência no computador e gravei uma faixa em áudio modulando o baixo. Haze é uma faixa simples, com poucos canais, que adoro. Ela tem um estilo meio Hip Hop mas está em 124 bpm. Faço muito isso para conseguir misturar essas vibes de Hip Hop com tracks de House e Techno.
There Will Be a Dream | A última e maior faixa do álbum novamente é um sample de uma banda Indie-folk. Logo que arrumei o sample, comecei trabalhar nas melodias, antes das baterias. Quando fiz a primeira melodia já sabia o que queria deste trabalho: uma faixa para tocar em algum amanhecer, num after com todos amigos, num dia de sol, com todo mundo feliz, se encontrando e se abraçando. Queria trazer aquele sentimento de nostalgia, de pensar na vida para em seguida injetar um sentimento de instantaneidade, de se sentir totalmente presente no momento, de estar inteiramente feliz onde você está sem precisar dar um passo. Talvez seja saudade de ver meus amigos e celebrar a vida.
Bonus Tracks | Depois do álbum pronto, veio a ideia do Eduard (da TROOP) de fazer uma tiragem do álbum em cassete para vender no Bandcamp. Sempre envio minhas produções novas para ele e ele sempre me dá feedback. Dessa vez ele veio com essa ideia do K7 que todo mundo curtiu. Agora ele está com o The Smoking Cat K7 Studio, fazendo esses trabalhos por puro amor ao cassete e tudo que envolve esse mundo. Como sobrou algum espaço extra na fita, decidimos adicionar três faixas bônus que somente vai ter em fita cassete ou para quem comprar o álbum inteiro no Bandcamp.
A música conecta.