Na segunda metade dos anos 1970, em pleno endurecimento da ditadura no Brasil, quando a indústria fonográfica girava em torno da MPB engajada e de um rock em ascensão, a noite carioca começava a ser transformada por outro fenômeno. Nos subúrbios e favelas, os bailes promovidos por equipes de som como Soul Grand Prix e Cashbox reuniam milhares de jovens em torno da Soul Music e do Funk norte-americano
Assim, consolidava-se o movimento Black Rio, os chamados “bailes”, que contavam com DJs, pista e proporcionavam encontros de afirmação de identidade, espaços de sociabilidade e resistência cultural. Ao mesmo tempo em que a dança e a celebração serviam de afago para o momento, esse público também passou a enfrentar novos olhares desconfiados e regados de preconceito, pois, para parte da crítica e da elite, dançar em meio à repressão política era sinônimo de alienação.
Na década seguinte, essa conexão ganhou novas formas. Os bailes black se mantiveram como ponto de encontro, mas a cena se diversificava: no Rio, as equipes de som incorporaram novidades da Black Music norte-americana, do R&B ao Electro, preparando o terreno para o que, no fim da década, se tornaria o Funk carioca.
Por outro lado, em São Paulo, o Rap emergia como voz das ruas, consolidando os primeiros grupos e coletivos que passariam a pautar a música urbana no país. Em paralelo, a televisão e as rádios ainda davam prioridade ao Rock nacional, o que ampliava a distância entre a indústria e a realidade das pistas que estavam surgindo, por vezes à margem da sociedade.
Fora do Brasil, a segunda metade dos anos 80 assistia à virada da Disco para a House Music e para o Acid House, com Chicago e Detroit exportando sons que logo desembarcariam em Londres e redefiniriam o conceito de clubbing. Paralelamente, a cultura pop global era marcada pela presença de artistas como Madonna, que levava Vogue para o topo das paradas com passos inspirados no ballroom nova-iorquino, e Michael Jackson que difundia sua performance em videoclipes dançantes e inovadores. Artistas como Neneh Cherry, por sua vez, mostravam como elementos da música eletrônica, basslines em destaque e arranjos vocais poderiam gerar uma música urbana capaz de soar contemporânea sem abandonar referências tradicionais.
Dançar, nesse contexto, ultrapassava a ideia de mero entretenimento, pois era uma forma de se reconhecer no mundo e de acompanhar transformações culturais e políticas que já eram uma realidade ao redor do globo. No Brasil, já em processo de redemocratização, havia um descompasso entre o que mobilizava as ruas e o que chegava aos estúdios das grandes gravadoras fora do eixo Rock/MPB.
Faltava um trabalho que colocasse essa energia em primeiro plano da cultura popular, que traduzisse em disco aquilo que já acontecia nas festas. Algo capaz de reconhecer que a cultura pop brasileira também era dançante e também estava sendo escrita por artistas tão disruptivos quanto aqueles que despontavam no exterior.
As pistas brasileiras já reverberavam novas e diversas sonoridades, mas nenhum disco de grande gravadora havia se disposto a registrá-las. No Rio de Janeiro, Fernanda Abreu, após o fim da banda Blitz, onde havia acumulado experiência dentro da indústria musical, começou a vislumbrar um caminho próprio, enquanto amadurecia a ideia de transformar em criação aquilo que era compartilhado nos bailes, nos clubs e na cultura pop global. Em 1990, com o lançamento de SLA Radical Dance Disco Club, ela foi capaz de sintetizar múltiplas influências, do Funk norte-americano ao rap, do Soul ao House, em uma proposta inédita para o pop brasileiro.
O projeto nasceu da recusa em aceitar papéis prontos, tendo em vista que Fernanda havia sido convidada diversas vezes a seguir como intérprete de repertórios prontos oferecidos pelas gravadoras, mas preferiu esperar até que tivesse clareza sobre o que queria propor. A resposta veio quando, experimentando uma drum machine Boss DR-220, ela compôs Kamikazes do Amor, sua primeira música autoral. Foi a prova de que poderia dar um passo além do que tinha vivido na Blitz: alinhar a cultura popular brasileira à cultura da pista de dança, em um momento em que a indústria nacional ainda tinha dificuldade em enxergar a dance music como obra legítima.
Para transformar essa ideia em disco, ela reuniu parceiros estratégicos. Herbert Vianna trouxe a experiência da vivência no rock brasileiro junto ao Paralamas do Sucesso, enquanto Fábio Fonseca aportou conhecimento técnico e equipamentos que estavam entre os mais avançados disponíveis no país, como a LinnDrum e a TR-808.
Completaram o time nomes que estavam em sintonia com o movimento das pistas cariocas: DJ Memê, um dos primeiros a experimentar o House no país, e DJ Marlboro, figura central do funk. Fernanda, por sua vez, assumiu a direção criativa, desenhando um repertório que mesclava composições próprias, colaborações e duas versões de clássicos: Kung Fu Fighting, de Carl Douglas, e Got To Be Real, de Cheryl Lynn, rebatizada como Luxo Pesado.
O álbum saiu oficialmente em de março de 1990 pela EMI-Odeon. Logo depois do lançamento, captou atenção pela forma como Fernanda conseguiu emplacar singles que se espalharam tanto nas rádios quanto nos clubes. Entre os singles mais marcantes está A Noite, lançado em fevereiro de 1990, que fazia uso de samples de D.I.S.C.O de Ottawan e Lady Marmalade de Labelle, e foi incluído na trilha da novela Mico Preto, que ajudou a apresentar Fernanda solo para um público amplo logo no lançamento.
A faixa-título, Sla Radical Dance Disco Club, também vale destaque, já que expõe o conceito do álbum: noite, pista, personagem, cidade, personalidade. É também uma das que receberam a exibição de clipes na primeira safra da MTV Brasil, num pacote audiovisual que incluiu ainda A Noite, Você Pra Mim e Speed Racer, consolidando Fernanda como uma figura que unia música, imagem, dança, potência e presença e essa estratégia foi fundamental para garantir que SLA circulasse em diferentes públicos.
A importância de SLA Radical Dance Disco Club também passa por Space Sound to Dance, produzida com DJ Memê. Era uma faixa pensada diretamente para as pistas, num momento em que o House ainda era novidade no Brasil. A acidez que acompanhava o baixo e os teclados mostravam que Fernanda queria disputar o mesmo espaço sonoro que agitava Nova York e Londres, mas com a autenticidade local.
Já Disco Club 2 (Melô do Radical) cumpria papel histórico ao aproximar a música pop do universo dos melôs que agitavam os bailes cariocas. Com a assinatura de DJ Marlboro, Herbert Vianna e Fabio Fonseca, a faixa trazia para dentro de um álbum de grande gravadora o som que surgia nas periferias.
Em Venus Cat People, parceria com Fausto Fawcett e Laufer, os versos falados, as imagens futuristas e as guitarras mantinham vivo o elo de Fernanda com a poesia ácida de Fawcett, com uma letra atravessada por desejo, ironia e delírio. Esse também foi um grande diferencial do álbum por completo: a construção de uma persona feminina que não se encaixava nos moldes da MPB ou do pop da época. A forma como ela impunha sua personalidade de maneira firme, irônica, sensual e, principalmente, consciente nos anos 1990.
Num cenário em que a indústria ainda esperava mulheres em papéis de intérpretes dóceis ou limitadas a baladas românticas, Fernanda se afirmava com letras diretas, presença e postura de quem queria disputar espaço nas pistas, nas rádios e na memória coletiva de igual para igual. Obviamente, a autenticidade a levou a caminhos maiores.
Em números, o impacto foi imediato: o álbum ultrapassou a marca de 260 mil cópias no Brasil, um grande feito para uma estreia que comprava a briga de colocar pista e sample no centro do pop nacional. O êxito comercial e artístico de SLA Radical Dance Disco Club reverberou além da trajetória individual de Fernanda Abreu.
Pela primeira vez, um álbum lançado por uma grande gravadora no Brasil assumia a pista de dança como eixo criativo, legitimando uma vivência que até então permanecia marginalizada ou restrita aos bailes e clubes. Isso abriu caminho para que a música eletrônica começasse a ser vista como uma possibilidade real dentro da produção pop nacional.
SLA Radical Dance Disco Club foi uma tomada de posição. Ao centralizar a dança, Fernanda subverteu a visão ainda corrente de que música para pista era sinônimo de futilidade ou distração. Suas letras, sua presença e a própria construção do álbum afirmavam o contrário: que mover o corpo podia ser também um ato de consciência, um modo de pensar o Brasil que emergia da redemocratização, e uma inversão simbólica frente à crítica que ainda estigmatizava a dance music de alienada. O álbum não é só música para dançar, mas uma declaração de que dançar também é pensar.
O disco abriu passagem para novas formas de pensar a música nacional, legitimou a presença da música eletrônica no mainstream e pavimentou um caminho para que artistas posteriores ousassem ainda mais. Hoje, 35 anos após o seu lançamento, a genialidade de SLA Radical Dance Disco Club permanece íntegra, não como parte da nostalgia de um tempo específico, mas por sua capacidade de dialogar com diferentes gerações. O álbum nos mostra que o pop brasileiro podia e pode ser moderno, dançante e radical. Fernanda Abreu cravou, assim, a marca definitiva de que a pista é um espaço sério e que, sempre que tratada de maneira supérflua, a cultura brasileira perde.