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A música conecta

Abstinência total, já experimentou?

Por Ágatha Prado em Editorial 08.12.2022

Sair para curtir com os amigos, tomar uma cervejinha, pegar uma festona daquelas e dar uma fritadinha, às vezes, um encontro mais intimista para tomar um vinho, ou até dar um rolê na praia sozinho para fumar um baseado e dar uma relaxada. Você já parou para perceber que a busca pelo nosso prazer ou o alívio do stress do dia-dia, está  “naturalmente” conectado ao uso de algum tipo de substância lícita ou ilícita? Vivemos em tempos onde somos atropelados constantemente por informações instantâneas de todos os tipos, exigências da vida profissional, pessoal, financeira e nosso nível de stress tende a atingir picos alarmantes sem que percebamos. 

Como uma válvula de escape, recorremos à busca pelo prazer imediato. Não vamos negar que o álcool, o cigarro e as drogas de uma maneira geral, cumprem muito bem o papel de saciar a “fome” pela resolução instantânea, ou simplesmente, anestesiar os nossos problemas e angústias à curto prazo. Muito se fala sobre as políticas informacionais de redução de danos, e que felizmente, vem se tornado mais ativas no ambiente das festas com o intuito de orientar o usuário sobre o uso de substâncias, seus efeitos e consequências. Porém, e quando o assunto é o uso problemático? Quando todas as tentativas foram exauridas e chegou o momento de dar o stop total. 

Sabemos que a abstinência total é uma questão extremamente delicada, e tarefa nada fácil para um ex-usuário que frequenta ou até mesmo trabalha na noite, lugar em que especialmente há diversos gatilhos para enfrentar, enquanto indivíduo sóbrio. E em meio à cultura do hedonismo, esses desafios podem ser ainda mais dolorosos de lidar em um primeiro momento, pois é necessário transformar completamente o paradigma em torno do prazer. 

Já experimentou ir a um festival e não usar nada? Sem álcool, sem maconha, sem droguinhas, sem nada. Em um primeiro momento, isso pode parecer assustador para alguns. Porém quando o assunto é saúde mental, o entendimento desse cenário precisa ser trabalhado, assim como o condicionamento comportamental para ressignificar o que é entendido por “prazer”. 

Quando alguém passa a fazer o uso problemático de substâncias, já em situação de vício ou dependência, muitos fatores são determinantes como gatilho para o comportamento impulsivo. Dificuldades de lidar com frustrações e resolução de problemas, traumas da infância, sintomas de depressão e quadros de ansiedade, são apenas alguns dos fatores que podem desencadear uma relação de dependência, tanto para com substâncias químicas como para outros tipos de comportamento.

Em casos como esse, onde nem sempre há uma tendência de abuso necessariamente, mas uma rejeição do próprio organismo à ingestão de substâncias, a abstinência total vem como uma saída a ser realmente considerada. Afinal, o risco em torno do uso problemático pode ser fatal, e infelizmente, é um fator responsável por cerca de 11 mil óbitos no Brasil somente no ano de 2020 – segundo os dados do Sistema de Informações de Mortalidade -, além de uma média de 100 mil mortes por abuso de drogas, no último ano nos Estados Unidos – conforme os Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças.

Porém como dissemos acima, abstinência não é uma tarefa simples. Para se ter uma idéia da complexidade da aquisição da abstinência, os professores de psicologia da Universidade de Rhode Island, Prochaska e Diclemente, citam cinco estágios que surgem durante o processo: o de pré contemplação (interesse, mas inconsistente pela abstinência); contemplação (tomada de consciência e pensamentos voltados à desistência da droga); preparação (prontidão para a abstinência e compromisso com ela); ação (ocorrência da abstinência e tomada de consciência do problema); e estabilização (distanciamento da recaída e consolidação da auto-eficácia). 

Para lidar com esse processo e manter-se forte diante dessa batalha diária, há quem diga que o ex-usuário deve se afastar do ambiente que lhe renda gatilhos. Claro que isso deve sim ser levado em conta, porém, e no caso de quem está imerso no ambiente das festas? Um artista, um promoter, um bartender, ou qualquer pessoa que também entenda as festas como ambiente de acolhimento e que faça parte de sua rotina. Afastar-se dos gatilhos ou ressignificá-los?

É justamente sobre esse tema que a artista e psicóloga Lourene Nicola vem trabalhando nos últimos meses, sobretudo através de seu projeto frac_assadas. Por meio de consultorias individuais, reflexões, abertura de diálogo e relatos de suas próprias experiências, Lourene propõe uma rede de apoio através do projeto, como auxílio na manutenção da abstinência do uso de substâncias. Para ampliar a luz sobre o assunto, batemos um papo interessante com a Lourene sobre o projeto frac_assadas, esclarecendo dúvidas recorrentes ao processo e compartilhando seu conhecimento na área em questão. Acompanhe!

Alataj: Lourene, conte um pouco pra gente como começou seus estudos e seu trabalho dentro da área de apoio à manutenção da abstinência e o uso problemático de substâncias. 

Lourene: Tudo começou há 10 anos, com a minha total falta de assertividade no uso recreativo. Eu fazia uso de álcool e algumas outras substâncias todo final de semana. Depois de um tempo o uso da maconha começou a ser diário. Nisso tudo foram 15 anos fazendo o uso de alguma droga. Aos 24 anos quase tive uma overdose que me deixou longe do álcool, da cocaína e do LSD, desde então. 

Eu comecei a usar drogas em festas de Trance, minha paixão desde a adolescência, as quais me trouxeram toda a cultura linda da psicodelia e muitas experiências incríveis como bagagem. Eu lia Aldous Huxley, Timothy Leary e Terence Mckenna, ávida por ter experiências como as deles, mas – no começo dos anos 2000 – não tinha acesso às informações sobre redução de danos como temos hoje. 

Mantive o uso de MDMA e maconha por mais alguns anos, trabalhando na noite por muito tempo, até que a pandemia chegou. No começo da pandemia, toda rara vez que eu fazia uso de maconha (mesmo em ambientes seguros), tinha crises de pânico e muita ansiedade. Decidi, portanto, pela “abstinência total”, visto que nunca tinha me dado essa chance desde que iniciei a experimentação. Senti que era o que o meu corpo precisava e comecei a trabalhar pra me manter firme nisso. 

Há 10 anos eu iniciei estudos e práticas de estratégias e ferramentas para me manter longe das substâncias com as quais criei uma relação problemática e sempre falei disso abertamente na internet, e com quem conviveu comigo. Muitas pessoas me procuram, desde então, para contar suas experiências e pedir ajuda no processo de uso consciente, ou da sobriedade. O frac_assadas surgiu há apenas 3 meses, como a materialização de toda essa trajetória, visto que encontro muitos projetos que falam sobre redução de danos, mas poucos que trazem alternativas a quem busca a abstinência, para além de um internamento clínico. 

De acordo com a sua experiência na profissão, quais são as principais dificuldades que os ex-usuários enfrentam em manter-se sóbrios na noite? Essas dificuldades tendem a ser passageiras ou elas vão ganhando outras formas ao longo do tempo?

As maiores dificuldades advêm da glamourização do álcool e de outras substâncias em nossa sociedade, da falta de informação para o uso consciente desde o começo da adolescência, e das condições de desigualdade de oportunidades no geral. Lidar com os gatilhos emocionais relacionados a isso tudo é bastante complicado. Com o tempo aprendemos a buscar outras “soluções” para as frustrações e sofrimentos, mas o trabalho é diário, ou melhor, a cada minuto.

Não há como negar que a cultura da noite, das festas e festivais, é um ambiente onde o ex-usuário acaba se tornando mais vulnerável a uma recaída. Porém para quem trabalha na cena, acredito que o enfrentamento desses gatilhos é de suma importância. Como se dá o trabalho de recondicionamento comportamental e psicológico desses clientes, de maneira geral?

Lourene: É um trabalho sistêmico e complexo, que demanda comprometimento, redenção,  autorresponsabilidade, dentre tantas outras competências que podem ser desenvolvidas, também, durante o processo. É necessária uma rede de apoio fortalecida e bem clarificada, que abranja profissionais da saúde em suas mais diversas possibilidades, e estratégias que trabalhem o mental, físico, emocional, social e espiritual (de acordo com como cada ume enxerga tal aspecto). 

É possível traçarmos algumas dicas básicas para auxiliar no enfrentamento desses gatilhos, tanto do ponto de vista do ex-usuário, como do ponto de vista da rede de apoio e dos amigos que estão em torno?

Admitir que “perdeu a mão na dose”, que precisa de ajuda e que não consegue sozinhe, é clichê, mas é realmente o primeiro passo. Sem assumir o risco de bancar a realidade de que não se tem controle sobre o uso, o processo se torna impossível; 

  • Buscar informação com profissionais e literatura confiáveis;
  • Enxergar-se como um ser sistêmico que precisa de autocuidado de diversas maneiras e em diferentes àreas;
  • Identificar quem são as pessoas que sabem ouvir e auxiliar nesse processo, dialogando sobre o tema;
  • Encontrar maneiras de expressar os sentimentos, emoções e pensamentos que não sejam prejudiciais à saúde, evitando que as válvulas de escape precisem acontecer no uso;
  • Se você está perto de quem precisa cessar o uso: acolher e apoiar o processo, sem julgamentos, é fundamental. No início é imprescindível não oferecer ou convidar ao uso. Busque novos hábitos saudáveis para se fazer em conjunto. Não seja “o amigo só da droga”, não abandone o sujeito nesse momento, mas se ele pedir espaço, respeite.  

Dentro da cena, felizmente vemos o crescente fortalecimento das políticas de redução de danos ativas no ambiente das festas, porém, a rede de apoio e informação quanto à questão da abstinência total é algo mais tácito dentro do movimento. Na sua opinião, o que poderia ser feito para viabilizar o debate real sobre esse tema, dentro dos rolês? 

Acredito que as políticas de RD estão sendo um avanço imenso na luta antimanicomial e contra o proibicionismo (que, já sabemos, mata mais do que o próprio uso). Conheço profissionais focados em Redução de Danos que comentam claramente a necessidade de cessar o uso caso haja o desenvolvimento problemático de alguma maneira, o que já é maravilhoso para alertar quem precisa. No mais, precisamos falar abertamente sobre tudo isso, sem vergonha nenhuma, mesmo. Enquanto assuntos como esse forem tabus, o tratamento continuará elitizado ou realizado de forma violenta, sem respeito pela subjetividade do sujeito. 

E quais são suas perspectivas e planos para o frac_assadas daqui em diante?   

Em primeiro lugar frac_assadas é uma plataforma onde eu mesma, enquanto uma pessoa que precisa estar abstinente, crio e expresso minhas angústias e piadas com relação ao meu processo. Acontece que todes nós temos muito em comum nessa jornada e muites se identificam com o conteúdo em memes, poesias e textos. O intuito é informar e relaxar as tensões sobre o assunto, chegando de uma forma acessível a quem possa interessar. 

Para além disso, enquanto programa de consultoria individual, é uma alternativa  consistente para quem precisa de ajuda nesse caminho da sobriedade. 

Desejo apenas que esse processo de identificar um uso problemático e viver abstinente possa ser menos doloroso e nebuloso. 

fracassar – em uma sociedade que aponta o sucesso através da reprodução heterosexual e do poder de consumo – é legítima vitória. soluções criativo_coletivas nascem de momentos de fracasso e sentimentos de derrota. É importante se dar o tempo de sentir o descaso de um sistema enfraquecedor para então, mesmo que com raiva, dedilhar possibilidades outras que não levem à falência total das expectativas de vida. Chorar o fracasso e construir_destruir a partir dele, o que quer que possa servir de motivação para manter o sustentar de si mesme. desistir de caminhar em alguns padrões vigentes e assumir o perder do controle é essencial.”

A música conecta.

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