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A música conecta

Um buraco chamado direitos autorais na música eletrônica

Por Redação Alataj em Socials 22.05.2025

Este texto é uma reedição e atualização do Editorial escrito por Ágatha Prado em Setembro de 2022. 

Quando, em 2022, o processo de Larry Heard e Robert Owens contra a Trax Records voltou aos holofotes, ficou claro que aquilo nunca foi só uma disputa judicial. Era — e segue sendo — sobre uma ferida aberta na história da música eletrônica: contratos frágeis, informalidade estrutural e a desigualdade que, desde sempre, atravessa as relações entre quem cria e quem controla.

O processo, que cobrava royalties nunca pagos desde os anos 80, não surpreendeu quem conhece os bastidores. Afinal, boa parte da discografia que moldou a história da House Music foi construída sobre acordos frágeis, cláusulas abusivas ou, simplesmente, a completa ausência de contratos. O caso da Trax talvez seja apenas o exemplo mais explícito, mas não é exceção. 

Olhar para isso, hoje, é inevitável. E talvez mais urgente do que nunca. Porque, enquanto romantizamos a cultura DIY, seguimos ignorando que ela também opera sob bases frágeis. Contratos verbais, ausência de registros, acordos feitos no aperto de mão e… royalties que evaporam. A velha crença de que “somos diferentes da indústria” esconde um problema: muitas vezes, somos diferentes apenas na precarização.

Em paralelo, cresce a pressão por modelos mais justos de remuneração. O debate sobre o modelo user-centric — que redistribuiria royalties com base no que cada usuário efetivamente escuta, e não no bolo geral — caminha, mas ainda longe de uma tração que o faça real. O que se vê, na prática, é o mesmo padrão: quanto maior o volume de plays, maior o pedaço da fatia. Uma dinâmica que se replica tanto nas plataformas quanto no funcionamento interno de muitos selos.

O impacto disso não é apenas na lógica convencional que opera a relação entre artistas e gravadoras. Há outros pontos sensíveis que atingem diretamente quem está na base de um dos pilares centrais da música eletrônica: a cultura do sample, dos edits, dos bootlegs, dos remixes. Práticas que são o DNA da pista, mas que, juridicamente, seguem num território de incerteza. Quem protege quem cria quando criar significa, muitas vezes, recombinar o que já existe?

Há ainda outro ponto que raramente entra na discussão pública: a diferença fundamental entre o papel de uma gravadora e o de uma editora. A gravadora detém (ou negocia) os direitos sobre o fonograma, no caso, a gravação. A editora administra os direitos da composição, a obra em si. Na prática, especialmente no universo dos selos independentes, essa fronteira é ignorada. E quando ela é ignorada, abre-se espaço para tudo: má gestão, contratos mal feitos, repasses que nunca chegam e, muitas vezes, simplesmente o sumiço do dinheiro.

No Brasil, essa equação se torna ainda mais frágil. O ECAD, encarregado de arrecadar e distribuir direitos, opera com ferramentas pensadas para outra lógica — a da música tradicional, radiofônica e televisiva. A realidade das pistas, das festas informais, dos lançamentos digitais fora do mainstream, não entra nessa conta. Clubs que não registram setlists, lançamentos que não são informados, acordos que nunca passam pelo papel. A informalidade, que pode ser útil em determinados pontos do ecossistema, também mantém os artistas fora dos sistemas de remuneração formal.

Se há algum avanço — e talvez haja — está no fato de que uma nova geração de produtores, DJs e selos já parece mais atenta a essas questões e que, principalmente, há inovações tecnológicas que automatizam pagamentos que outrora já foram 100% manuais. O acesso à informação, os casos que viralizam, os debates que circulam nas redes, tudo isso ajuda a construir uma consciência mais crítica sobre contratos, direitos e modelos de remuneração. Mas a mudança estrutural ainda está distante. E não será feita apenas na ponta, mas sim se houver uma revisão profunda da própria arquitetura da indústria – do mainstream ao underground.

O caso Trax não é passado. É um presente bem vivo, mesmo 3 anos após o escândalo. Ele segue impondo uma pergunta que a cena, em todos os seus níveis, ainda não respondeu: quantos Larry Heard estão, neste exato momento, assinando contratos que daqui a 20 ou 30 anos serão lembrados como armadilhas?

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