Artistas e grandes gravadoras, gravadoras e grandes artistas. Uma relação fundamental para a pulverização organizada e sustentável da cultura musical, e que perdura ativamente desde o começo do século XX. A conexão entre os dois agentes é peça-chave indispensável da força motriz que gira em torno da indústria musical, funcionando como base para a progressão de carreira e o avanço ao sucesso de tantos compositores e produtores ao redor do mundo. Afinal, qual artista nunca desejou assinar com uma grande gravadora? Porém, nem sempre o mercado funciona como um mar de rosas.
Ao passo que a representatividade por meio de um notável selo fonográfico brilham os olhos de todo artista – sobretudo daqueles que estão em ascensão e que ainda são marinheiros de primeira viagem na experiência com grandes labels – por vezes, alguns acordos não favorecem benefícios claros aos dois lados da moeda, podendo se tornar uma pedra no sapato, ou até mesmo um pesadelo para o artista.
Não estamos aqui para generalizar essa questão, pois é claro que existem – felizmente em sua maioria – cases de sucesso para ambos os lados, e laços que se sustentam ao longo de toda vida criativa de um artista. Porém, estamos aqui também para levantar um alerta para os revezes que, em geral, tendem a acometer muito mais o lado do artista do que da própria gravadora.
Para contextualizar o assunto, no mês passado um caso envolvendo os gigantes Larry Heard e Robert Owens, com a também gigante seminal Trax Records, veio à tona. Em 2020 os artistas entraram com um processo civil contra a Trax, reflexo de uma luta que já remonta décadas, pelo resgate de direitos autorais de suas faixas lançadas pela gravadora. A denúncia aponta que a Trax supostamente usou contratos desonestos para manter falsamente a propriedade dos direitos autorais musicais de faixas como as lendárias Can you Feel It e Washing Machine – de Larry Heard -, e se recusar a pagar royalties devidos aos artistas.
O processo afirmava que a dupla nunca recebeu royalties por suas faixas na gravadora, e que foram coagidos a assinar os direitos de suas músicas por quantias insignificantes de dinheiro antecipado. Felizmente Heard e Owens conseguiram ganhar a ação, após dois anos de litígio, recuperando seus direitos sobre as faixas, porém a quantia reivindicada de indenização não pode ser devidamente cumprida já que a Trax, que desde os anos 2000 passa por dificuldades financeiras. Em vez disso, “as partes resolveram amigavelmente suas disputas”, como disse o advogado de Heard e Owens, transferindo tanto as masters quanto os direitos de publicação de volta para os artistas.
E ao que se encaixa a partir de denúncias paralelas, não foram somente Heard e Owens que foram atingidos pela marca. Adonis, produtor de um dos maiores clássicos do Acid House da década de 80, No Way Back, começou a arrecadar fundos para sua própria luta legal por royalties não pagos há quase 40 anos. “Nenhum artista jamais recebeu royalties [do Trax]”, escreveu ele na época, segundo o The Guardian. “Se alguém puder encontrar uma declaração de renda oficial, eu adoraria vê-la, porque eu nunca vi uma.”
O mesmo também foi denunciado pelo mestre do Acid House, DJ Pierre, que por lá lançou verdadeiros hinos do estilo, como o notável disco Acid Tracks, do qual nunca recebeu os royalties devidos da gravadora. Por outro lado, a Trax – administrada agora por Rachel Cain, viúva do co-fundador Larry Sherman – emitiu uma nota em sua defesa dizendo que nunca receberam nenhuma receita gerada por qualquer exploração da música dos artistas, e que o uso exploratório do catálogo foi de responsabilidade da Casablanca Media Publishing, empresa que firmou uma joint venture com a Trax no início dos anos 2000.
O fato é que acordos mal intencionados podem acometer a quaisquer tipos de artistas, em diferentes magnitudes. Até mesmo os maiores gigantes da história da música, The Beatles e The Rolling Stones, não ficaram de fora de uma enrascada como essas – quem sem lembra do empresário Allen Klein, que se apoderou dos royalties das duas bandas e de mais de dezenas de artistas, e foi processado pelos quatro cantos do universo do Rock n’ Roll entre a década de 60 e 80.
Tendo em vista casos desagradáveis e perturbadores como esses que, apesar dos esforços, frequentemente acometem a indústria musical, é preciso estar de olho enquanto artista e contratado. Mesmo que você tenha um representante de confiança ou um advogado poderoso intermediando suas negociações, é fundamental conhecer os detalhes minuciosos de um contrato e saber decifrá-los nas entrelinhas.
Em suma, um contrato de gravação, de forma geral, apresenta os seguintes aspectos comuns. Primeiramente, o termo ou cláusula temporal são imprescindíveis na determinação da duração de compromisso das partes, ou seja, é nessa seção que será estipulado quanto tempo os direitos de sua música ficarão à disposição da gravadora. Na sequência, nos deparamos com os aspectos financeiros que estão vinculados ao acordo, referindo-se aos adiantamentos e o apoio financeiro ao artista durante o período de produção.
Nesta parte é fundamental atentar-se se essa quantia será da forma recuperável ou não recuperável, isto é, a gravadora retém o pagamento de direitos autorais (ou uma porcentagem, dependendo do contrato) do artista até que o investimento inicial seja reembolsado integralmente ou em um percentual acordado. No entanto, a diferença é que um adiantamento não-reembolsável significa que se as suas vendas não atingirem o ponto necessário com a gravadora, você não deverá dinheiro para ela – mas você ainda terá que pagar de volta o adiantamento em seus direitos autorais.
+++ Relembre: Pirataria Musical: O dilema entre a ilegalidade e o acesso à cultura
Ainda, ao longo do contrato é de extrema importância averiguar como se dará a divisão de direitos autorais, já que os mesmos podem incluir direitos mecânicos, publicação, streaming e se estender a qualquer outra forma de receita gerada a partir da obra do artista.
Segundo a Groover Blog, há alguns pontos também que você precisa ficar com um pé atrás, estando ciente e se puder, evitar. Afinal, é melhor se prevenir do que se remediar.
- Não é de bom tom a gravadora te pedir dinheiro, é sempre a gravadora que deve pagar e não o contrário. Se a sua solicitar pagamentos, provavelmente é melhor recusar educadamente e encontrar um novo parceiro.
- Cuidado com os contratos que o prendem a um acordo de longo prazo e totalmente exclusivo.
- Fique longe de qualquer acordo que exija a mesma porcentagem de direitos autorais exigida por uma grande gravadora, mas sem o adiantamento financeiro ou outros benefícios.
- Cuidado com os contratos que afirmam que seus fonogramas são propriedade integral da gravadora. Em vez disso, tente manter a propriedade de seus fonogramas ou pelo menos compartilhar a propriedade com sua própria gravadora.
- Por fim, preste especial atenção às cláusulas de rescisão ou quaisquer cláusulas que possam sugerir que a gravadora é proprietária das gravações para sempre.
A música conecta.