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A música conecta

Hernan Cattaneo: conexões em tempo estendido

Por Elena Beatriz em Storytelling 16.09.2025

Nos anos 80, enquanto o House despontava em Chicago e o Techno em Detroit, a música eletrônica ainda era um fenômeno localizado. A Europa logo absorveria esses sons: Londres com as primeiras acid parties, Manchester com a explosão do Haçienda, Berlim após a queda do Muro. Já na América do Sul, a cena se desenvolvia em passos mais lentos, marcada por importações pontuais de discos e por eventos e espaços locais que começavam a experimentar com a novidade.

Na Argentina, um adolescente de Buenos Aires acompanhava esse movimento à distância, introduzido à música pela coleção de alguns familiares. Hernan Cattaneo cresceu ouvindo Pink Floyd, especialmente o lendário The Dark Side of the Moon, que foi determinante para moldar uma percepção de continuidade e atmosfera, características que mais tarde se tornariam centrais em seus sets. A descoberta de Depeche Mode e New Order acrescentou a influência eletrônica, enquanto a chegada dos primeiros vinis vindos dos Estados Unidos abriram o caminho para o House e ofereceu a possibilidade de traduzir emoção em linguagem de pista.

O encontro definitivo com essa nova sonoridade aconteceu em Nova York, diante de Frankie Knuckles. Fascinado pelo impacto do “padrinho do House” na cabine, Hernan decidiu investir tudo para vivenciar essa experiência presencialmente, chegando a vender seu carro para poder viajar até Nova Iorque e observar de perto como Knuckles construía narrativas musicais de longo prazo. 

Em uma entrevista concedida ao Alataj em 2021, Hernan compartilhou a seguinte reflexão: “Já conhecia muito bem o trabalho de um DJ, mas com o Frankie aprendi muito sobre a personalidade do DJ, a identidade, a forma de colocar música, os tempos e os tempos, sets longos, abrir uma noite ou encerrá-la. Isso me inspirou a ter confiança em fazer apenas o que eu gostava.” A segurança com que Frankie conduzia a pista, abrindo e encerrando noites inteiras, serviu de escola prática e deu a Hernan a convicção de que seu caminho seria o de contar histórias através da música.

O passo seguinte foi transformar essa paixão em prática. Cattaneo começou a discotecar em festas locais ainda jovem, aprendendo a manter a pista equilibrada entre novidades e músicas mais conhecidas, já que o público argentino ainda não estava familiarizado com o House. Essa experiência, somada às longas horas de treino e às apresentações em clubes, resultou em sua primeira residência importante, no Clubland, espaço que se tornaria um polo da cena eletrônica de Buenos Aires. Foi ali que Hernan consolidou sua reputação como alguém capaz de sustentar noites inteiras e de articular, em escala local, a mesma abordagem que crescia nos grandes centros da música eletrônica mundial.

Naquele período, a busca por discos era quase uma missão. Com o amigo Julio Lugones, viajou diversas vezes a Porto Alegre para adquirir singles de artistas europeus e americanos que não chegavam à Argentina. Voltava também com álbuns de Gilberto Gil, Paralamas, Guilherme Arantes e outros nomes brasileiros que circulavam pouco em Buenos Aires. Muitas dessas edições vinham em versões estendidas, fornecidas diretamente pelas gravadoras, que no Brasil tratavam os DJs como parte importante da cadeia musical, algo que ainda não acontecia na Argentina. Esse acesso a material raro ampliou sua bagagem sonora e reforçou a ideia de que a música poderia ser uma ponte cultural e emocional.

O reconhecimento além da Argentina começou a se desenhar a partir de conexões feitas justamente no Clubland. O clube reunia DJs internacionais em passagem pela América do Sul e foi ali que Hernan criou vínculos com nomes como John Digweed, Sasha e Danny Tenaglia. A virada de chave veio com Paul Oakenfold, então à frente da Perfecto Records e já estabelecido como um dos nomes do Trance e House Progressivo. Impressionado com a consistência e a identidade do argentino, Oakenfold o convidou a integrar o time da gravadora, abrindo uma porta até então inédita para um DJ sul-americano.

Em 2002, Hernan assinou a compilação dupla Perfecto Presents: South America, um marco que simbolizou sua chegada ao circuito internacional. O disco foi amplamente reconhecido por mostrar como o DJ argentino lia a cena, enquanto transmitia sua identidade sonoridade emocional e contemplativa dentro da linguagem global do progressivo. Pouco depois, foi chamado para atuar como residente da Cream, tanto em Liverpool quanto em Ibiza, dois dos epicentros mais importantes da música eletrônica europeia na virada do milênio. Essa fase ajudou a projetar seu nome para festivais de grande escala, incluindo Homelands, Dance Valley, Monegros e Creamfields.

A ascensão de Hernan Cattaneo não se explica apenas pelos palcos que conquistou, mas pela forma como modula o tempo na pista, construindo uma identidade inconfundível. Sua paciência em elaborar transições suaves, a sutileza na escolha de melodias e a confiança em deixar que as atmosferas amadureçam lentamente criaram uma assinatura muito própria. Hernan optou por narrativas que se desenvolvem em horas, convidando o público a experimentar um outro ritmo de percepção.

Sua abordagem se conecta diretamente à sua personalidade. Ele coloca a música no centro, conduzindo a pista com delicadeza, sem pressa em provar nada. O resultado é uma confiança quase incondicional: quem se entrega à uma pista de Hernan sabe que pode se entregar a uma jornada que inevitavelmente será memorável. O destaque é emitido pelas sensações causadas. Essa relação de entrega mútua, construída ao longo de décadas, talvez seja o que melhor explica a grandeza de Cattaneo: um artista capaz de atravessar fronteiras emocionais, transformando a pista em espaço de entrega, catarse e comunhão.

No Brasil, essa trajetória ganhou um dos capítulos mais emblemáticos. Ao longo dos anos, Hernan se tornou nome incontestável na história do Warung Beach Club, em Itajaí. Seus long sets ajudaram a consolidar a identidade do espaço como referência mundial para o house progressivo, e o clube, por sua vez, ofereceu o ambiente ideal para que o argentino desenvolvesse apresentações que hoje são consideradas marcos da cena eletrônica nacional. Tanto que com o fechamento de suas portas no próximo ano, o Warung fez questão de anunciar um último all night long seu, marcado para 14 de março. Uma relação de proximidade similar pode ser observada no Stereo, em Montreal, onde seus long sets estabeleceram um padrão de confiança: o público sabe que encontrará uma experiência única, sustentada pela paciência e pela precisão com que Hernan organiza a narrativa sonora.

Essa mesma abordagem se refletiu em seus registros em estúdio. Depois de Perfecto Presents: South America (2002), que apresentou ao mundo uma leitura do progressivo a partir da América Latina, Hernan consolidou sua assinatura em compilações que hoje são referências, a exemplo de A Masters Series da Renaissance (2004) e a celebrada Balance 026 (2014) que destacaram sua habilidade em estruturar narrativas de longa duração, reforçando a ideia de que sua música não se organiza em torno de momentos isolados, mas de processos que amadurecem lentamente até atingirem impacto emocional pleno.

O passo seguinte veio em 2006, quando Hernan lançou pela Renaissance o primeiro álbum da série Sequential, dividido em duas partes – com Arquipelago de Gui Boratto como faixa de abertura da primeira. O trabalho rapidamente se converteu em sucesso, recebendo reconhecimento de veículos especializados como DJ Mag e M8 Magazine, do Reino Unido. Com faixas que iam do progressivo mais atmosférico a grooves de pista mais intensos, o projeto reafirmou sua habilidade em desenhar narrativas de longa duração em formato de compilação, consolidando-o como um dos grandes contadores de histórias da música eletrônica contemporânea.

Três anos depois, em 2009, nasceu a Sudbeat, selo que se tornaria uma de suas plataformas mais relevantes. Com sede na Argentina, mas alcance global, a gravadora foi descrita pelo próprio Hernan como “global no ethos, mas sul-americana no espírito”. O catálogo, que combina artistas consagrados e novos talentos, rapidamente se firmou como referência para o progressivo melódico e o techno hipnótico. Nomes como Danny Howells, Guy J, Henry Saiz e Marc Marzenit encontraram espaço lado a lado com produções do próprio Hernan, além de colaborações com Kevin di Serna, John Tonks, Martín García e Soundexile.

A Sudbeat ampliou a presença latino-americana no circuito global e também serviu como canal para que Cattaneo imprimisse sua visão sem concessões. Assim como em seus sets, a prioridade nunca foi o gênero, mas a profundidade e a qualidade musical. O selo reafirma a mesma ideia que guia sua trajetória: paciência na construção, emoção como resultado e consistência como marca.

Nos anos mais recentes, em 2013, marcou sua estreia no emblemático festival Burning Man, em Nevada. Em 2018, Hernan apresentou o espetáculo Connected no Teatro Colón, em Buenos Aires, um dos palcos mais emblemáticos da música erudita latino-americana. Ao lado de uma orquestra e de seus colaboradores de longa data, o Soundexile, traduziu a estética do Progressive House para um ambiente historicamente associado à música clássica. A repercussão foi tamanha que o projeto se transformou em documentário lançado pela Netflix em 2021, ampliando sua relevância cultural para muito além da cena eletrônica. 

Nesse mesmo período, Cattaneo também publicou o livro, Um Sonho de DJ (com edição brasileira viabilizada pelo amigo e entusiasta da cena progressiva Jonas Fachi), em que revisita sua trajetória desde os primeiros contatos musicais até a consolidação global. A obra resgata diversas memórias do artista enquanto reforça os princípios que sempre guiaram sua carreira: disciplina, integridade, paciência e paixão. O reconhecimento oficial de Buenos Aires como figura de destaque cultural coroou essa fase, consolidando-o não apenas como um maestro das pistas, mas como referência institucional da cultura argentina.

Aos 60 anos, Hernan segue ativo e presente nos principais festivais e clubes do mundo. Sua longevidade não se deve a uma busca incessante por tendências, mas à capacidade de manter uma proposta coerente e sempre atualizada. Em vez de se adaptar a modismos, construiu uma identidade sólida baseada na paciência da narrativa, na sutileza da conexão e na confiança do público, demonstrando que a grandeza não se mede apenas pelo alcance de espaços desejáveis, mas pela capacidade de criar experiências que atravessam décadas e continuam a emocionar. 

Essas características encontram sua expressão no Sunsetstrip, projeto autoral de Hernan que nasceu da ideia de capturar a magia de seus long sets ao ar livre. A proposta é diretamente conectada com o legado de suas apresentações: uma experiência imersiva com a música guiando a passagem das horas, do entardecer à noite, em uma construção sonora fluida e contemplativa, daquelas que emocionam e criam conexões, seja com o ambiente, com as pessoas ou com seu entendimento sobre o que a música pode alavancar internamente. 

Desde sua estreia em Buenos Aires, em 2019, o conceito rapidamente se expandiu para diferentes cidades do mundo, transformando-se em uma verdadeira marca registrada do DJ, que inclusive chega ao Brasil pela primeira vez, na próxima semana, dia 20 de setembro. O evento, acontecerá no Hangar Campo de Marte com início às 14h, garantindo ao público pelo menos 6 horas de set do maestro do Progressive House e ainda contará com a presença de BLANCAh e do pernambucano BRVNOV no lineup. 

No final de tudo, Hernan Cattaneo mostra que, quando ambientada com paciência e propósito, a música não apenas preenche o tempo: ela o conduz.

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