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A música conecta

Identificando e lidando com situações nocivas dentro da cena

Por Elena Beatriz em Artigos 27.11.2025

Quando se está inserido na cena, é comum acreditar que tudo o que acontece tem algum propósito maior. A disponibilidade emocional constante, as viagens, a rotina noturna, horários irregulares, o trabalho que depende de uma rede de relações que se sobrepõe ao tempo físico formam um ambiente onde práticas nocivas se escondem atrás da retórica da coletividade. Elas não surgem, necessariamente, em forma de situações explícitas, mas se camuflam em pequenas dinâmicas cotidianas. São movimentos que, à primeira vista, parecem normais — às vezes até desejáveis —, mas que silenciosamente desgastam saúde emocional, autonomia e até o próprio senso de direção daquilo que você se propôs a fazer pela arte no início de tudo. De antemão, é preciso indagar se você está acompanhando o ritmo ou se sujeitando a ele.

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Muitos artistas começam a perceber essas fissuras em momentos de exaustão: quando o corpo falha, quando a ansiedade se torna constante, quando a pista já não traz o mesmo alívio, quando o compromisso com a cena vira algo maior que o compromisso consigo mesmo. Em um mercado que fomenta o discurso da colaboração e coletividade — mas não deixa de ser um mercado —, é fácil confundir exploração com parceria, pressão com oportunidade, invisibilização com “falta de momento certo” e sobrecarga com “fazer parte do jogo”. Como descreve Pierre-Michel Menger em The Economics of Creativity (2014), artistas navegam em um campo marcado por alta incerteza e baixa previsibilidade, onde o reconhecimento é sempre projetado no futuro e essa projeção cria formas específicas de vulnerabilidade.

Neste sentido, existem algumas situações comuns onde essas práticas aparecem de forma mais acentuada. Uma delas surge na relação do artista com os coletivos. O discurso da construção conjunta costuma ser acompanhado por uma expectativa de disponibilidade: divulgar os eventos, ajudar nos bastidores, emprestar equipamento, aparecer por lealdade, assumir pequenas tarefas que ninguém quer fazer. Mas, com o tempo, alguns artistas percebem que, apesar de colaborarem de inúmeras formas, não são incluídos nas decisões estratégicas, nos lineups ou nos projetos que realmente impulsionam carreiras. Enquanto alguns membros acumulam visibilidade, outros permanecem numa zona periférica, sendo convocados apenas quando existe trabalho pesado ou quando sua presença é conveniente. 

Colaborações artísticas frequentemente seguem a mesma premissa. É comum que um artista receba convites para “fazer algo juntos”, mas perceba, pouco depois, que a parceria só existe porque é útil para o outro lado: um aumento de alcance, acesso a uma cena que não se tinha, melhora de imagem ou até mesmo uma estratégia para ocupar ambientes. Em uma colaboração verdadeira, ambos se asseguram do que a troca representa. Quando não é, o resultado costuma vir acompanhado de justificativas para benefícios unilaterais.

Outro ponto delicado aparece quando o artista mantém vínculos que já não fazem sentido, apenas por receio de perder algum espaço. Manter relações com pessoas cujas atitudes não são alinhadas aos seus próprios valores, parcerias existem apenas por medo de desagradar alguém influente ou para garantir futuras oportunidades, por exemplo. Há uma camada de sobrevivência simbólica — ser visto, ser lembrado, ser chamado — que leva muitos profissionais à aceitação de comportamentos prejudiciais por acreditar que o rompimento desses vínculos pode ser lido como ingratidão, imaturidade ou até deslealdade. Nesse processo, a capacidade de reconhecer os próprios limites éticos acaba se esvaindo e o networking; ao invés de servir como uma ferramenta, acaba se tornando uma espécie de prisão.

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Na relação com agências e selos, essas dinâmicas tomam outros contornos. Entrar para uma agência é, muitas vezes, entendido como marco de validação, já que alguém aposta no seu trabalho, representa sua voz e compartilha seus objetivos. Porém, há casos em que essa relação se transforma em um hiato. Sem comunicação transparente, sem construção de narrativa, sem estratégia de longo prazo, muitos artistas percebem que estão vinculados a estruturas que não cuidam da carreira, mas a administram passivamente. Gigs chegam por esforço próprio, oportunidades externas desaparecem no filtro de prioridades alheias, e a sensação de estagnação cresce a cada temporada. Permanecer nesse movimento por medo de “não ter nada melhor” é um dos sinais mais claros de que algo de errado está acontecendo ali. 

Também existem práticas prejudiciais que não dependem do entorno, mas do próprio artista tentando sobreviver ao ritmo imposto. A necessidade de estar em todos os lugares, de responder todas as mensagens, de aceitar todos os convites, de trabalhar mesmo sem descanso, doente ou recorrer ao uso de substâncias para aguentar a rotina — tudo isso é normalizado como “comprometimento”, quando, na verdade, indica descaso com a própria saúde física e mental. A cena passa a ditar quando o corpo pode descansar, quando a mente pode desligar e o quanto tempo para a sua vida pessoal você pode despender. A autogestão da saúde é sacrificada em nome de uma urgência contínua que raramente é recompensada. Muitos artistas só percebem essa exaustão quando o corpo colapsa ou quando a criatividade se perde em um estado permanente de alerta. A cena naturaliza esse comportamento como se fosse algo inevitável, e a linha tênue entre desejo de crescimento e autodestruição se dissolve lentamente.

Há ainda os impactos subjetivos — aqueles que não vêm de pessoas ou estruturas, mas dos acontecimentos da cena que se tornam gatilhos internos. Um lineup anunciado sem seu nome, mesmo depois de anos de trabalho. Um comentário nos bastidores que coloca em dúvida sua competência. Um grupo de colegas que fecha portas sem explicação. Esses eventos ativam sentimentos de inadequação, comparação e autodepreciação que podem evoluir para ansiedade severa, bloqueio criativo ou afastamento social. Em uma cena altamente visível e competitiva, cada decepção ganha proporções ampliadas e os artistas, que são acostumados a performar, raramente têm espaço seguro para expressar vulnerabilidade, criando uma régua onde o valor próprio se mede pelo ritmo do outro. Assim, é quase impossível perceber a própria trajetória com clareza.

A relação com o público também pode se tornar fonte de desgaste. Se, antes, a validação dependia da pista, hoje depende também de métricas. Assim, muitos artistas começam a moldar sua identidade em função do que “funciona”, abandonando interesses genuínos para se adaptarem ao que é momentaneamente relevante. Outros passam a sentir culpa por não seguir esses passos, idealizando a originalidade como um risco à carreira, diminuindo riscos e, consequentemente, privando o mundo de algo diferente que poderíamos conhecer. 

As microviolências também fazem parte desse cotidiano. O cenário se agrava quando somado às pressões sociais. As mulheres na cena, por exemplo, enfrentam habitualmente cobranças por estética, carisma, disponibilidade emocional e postura “profissional” — uma exigência que não recai da mesma forma sobre homens. Além disso, na maioria dos casos, são silenciadas sobre atos de violência cometidas por colegas de cena, pelo simples receio de ter a sua palavra invalidada e de perder oportunidades profissionais por conta disso. Outros exemplos envolvem indivíduos historicamente marginalizados, como pessoas pretas ou LGBTQIAPN+ que, além de já lidarem com as inseguranças estruturais que atravessam espaços de trabalho, muitas vezes engolem piadas atravessadas, comportamentos desrespeitosos, bastidores hostis e mensagens ríspidas para “não queimar aquele contato” ou a sua própria imagem. Quando essas camadas se acumulam, reconhecer práticas nocivas torna-se ainda mais desafiador, porque elas já fazem parte da estrutura que sustenta o mercado de trabalho.

Identificar essas camadas nocivas não significa abandonar a cena ou apenas apontar falhas, mas recuperar uma autonomia que, muitas vezes, é levada. Reconhecer que algumas parcerias acabaram, que certos vínculos nunca foram recíprocos, que o descanso não é uma falha, que o reconhecimento não define valor, que a comparação não diz nada sobre competência — tudo isso é parte de um processo de reorganização interna que permite que a carreira seja sustentada com mais lucidez. Mas esse movimento também exige um olhar sincero para o próprio papel nessas dinâmicas: aceitar que, em algum momento, você pode ter colaborado para estruturas injustas, reproduzido comportamentos nocivos, naturalizado a precariedade de quem está ao lado ou se calado diante de situações que reconhece como inadmissíveis. Autonomia e liberdade não se limitam a se proteger do entorno, mas de admitir onde você também ajudou a mantê-lo como está.

A cena não se torna melhor apenas quando grandes transformações acontecem, mas quando cada agente se permite fazer perguntas incômodas: Por que continuo aqui? O que este vínculo me oferece? — e o que eu ofereço de volta? Eu estou me protegendo ou repetindo algo que fizeram comigo? O que eu perco quando aceito menos do que mereço? — e o que os outros perdem quando aceitam menos de mim? Essa situação está equilibrada? Enfrentar essas dinâmicas exige passar por conversas difíceis, limites claros e uma revisão honesta das relações. Entender que dizer “não” é, muitas vezes, o primeiro ato de autopreservação, mas que pedir desculpas, rever posturas, redistribuir oportunidades e recusar práticas que antes pareciam “normais” também fazem parte do trabalho. Além disso, é de suma importância procurar apoio — coletivo, terapêutico, profissional — e construir vínculos que ofereçam estabilidade emocional e ética, não só dentro da cena, mas com quem está fora dela e também com as suas necessidades individuais.

+++ Reflexões de quem está dentro: o que a cena precisa para evoluir no agora?

No fim das contas, práticas nocivas não fazem estrago apenas quando são explícitas, mas quando se repetem sob o disfarce de normalidade. Esse cotidiano aparentemente inofensivo é o que desfigura o desejo inicial que moveu tantos artistas até aqui. Reconhecer esses padrões — no entorno e em si — é o primeiro ato de responsabilidade. O segundo envolve agir a partir dessa consciência, reorganizando vínculos, revendo acordos e restituindo a si mesmo o direito de criar sem se punir e sem querer ultrapassar os outros. A cena não exige perfeição. Ao entender essa dinâmica, é possível seguir adiante sem perder de vista a própria integridade e a vontade de estar em movimento.

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