A cena eletrônica brasileira vive um paradoxo curioso. Ao mesmo tempo em que se consolidou como uma das mais efetivas da América Latina, com clubs estruturados, festivais em expansão e artistas circulando internacionalmente, ela segue ancorada em uma base instável. As engrenagens que sustentam essa cultura ainda estão sob domínio e dependência de poucos agentes, muita improvisação e, sobretudo, de uma paixão que nem sempre encontra respaldo em condições reais de trabalho.
Nas últimas semanas, conversamos com alguns produtores culturais, gestores de espaços e artistas que atuam nos bastidores dessa cadeia e percebemos que, mesmo com algumas perspectivas distintas, é possível enxergar quatro pontos de convergência que ajudam a compreender o que realmente está em jogo neste momento e que indicam caminhos possíveis para um futuro mais estável: a necessidade de profissionalizar as estruturas sem perder o sentido criativo, o cuidado com a saúde mental de quem trabalha na noite, o fortalecimento da cooperação entre agentes ativos da cena e a valorização efetiva do que é produzido no país.
No ponto de vista profissional, o consenso é de que o amadurecimento da cena passa pela forma como o trabalho cultural é conduzido. Para muitos, ainda existe uma resistência em tratar a música eletrônica como uma profissão de fato, o que impacta desde a maneira como os eventos são estruturados até a previsibilidade financeira de quem vive deles.
JP Florence, fundador da festa Neue, resume esse pensamento ao dizer que “o underground precisa sair um pouco da bolha do underground e se profissionalizar: não falo de perder a essência, mas de encarar a caminhada como um trabalho sério, como qualquer outra profissão. É só assim que a gente consegue ter um mercado mais seguro financeiramente, tanto pros produtores quanto pros artistas. A cena artística e criativa só vai render mais e melhor quando existir a perspectiva de retorno profissional.”
Portanto, não se trata de expurgar os próprios princípios e abrir mão daquilo que se move por paixão em prol de reconhecimento financeiro, mas de levar essa vontade com a mesma responsabilidade que qualquer outro setor corporativo. É o primeiro passo para que o movimento aconteça com planejamento, comunicação clara, divisão de funções e transparência. Quando os processos são sólidos, sobra espaço para a arte acontecer de maneira fluida.
A consolidação de um mercado mais saudável, no entanto, não depende apenas da postura de quem produz. Exige também o equilíbrio de expectativas e condições entre todas as partes envolvidas, Carina Góes, diretora executiva da SLAM Management, reforça essa importância: “A cena eletrônica precisa de uma sustentabilidade financeira, com modelos que equilibram a balança entre contratante e contratado, sem perder qualidade e acessibilidade, explorando experiências imersivas e únicas, saindo e pensando fora da caixa”. É uma equação que envolve diálogo, responsabilidade e parceria, que deve tornar possível seguir com entregas consistentes sem comprometer o orçamento ou a saúde de quem está por trás delas.
Concomitantemente, é impossível discutir profissionalização sem falar da valorização local. O Brasil tem um contingente imenso de artistas, produtores e técnicos que operam com alto nível de qualidade, mas ainda enfrentam um público e um mercado acostumados a medir relevância por parâmetros estrangeiros. O resultado é um ciclo que pouco nos favorece: importamos cultura e exportamos talento, mas falhamos em construir uma base sólida para quem está aqui. De acordo com Renan Brun, que trabalha com o desenvolvimento de produtos do Grupo Live, dono da PlusNetwork, “os novos talentos enfrentam dificuldades para vender ingressos em quantidade suficiente para sustentar uma festa, e há pouca iniciativa que estimule o crescimento da cena nacional. Hoje, o mercado se mantém de pé muito mais pela paixão de quem já está inserido nele do que pelas oportunidades oferecidas.”
Nessa mesma perspectiva, Yuri Mendonça, um dos fundadores do premiado do bar Matiz, em São Paulo, complementa: “em um país onde se valoriza excessivamente labels internacionais e grandes festivais, os pequenos produtores enfrentam enormes dificuldades para se manter no jogo. É praticamente impossível competir com line-ups muitas vezes inviáveis financeiramente, além da escassez de espaços adequados para realizar eventos.”
Esse comportamento impacta diretamente a sustentabilidade do setor, pois reduz a margem para curadorias autorais e encarece toda a operação. Um futuro mais estável depende de inverter essa padronização e do nosso esforço para olhar para dentro com mais atenção e orgulho. No mais, Renan acrescenta que “o Brasil conta com muitos talentos e uma nova geração de produtores que promete fortalecer ainda mais a cena. O crescimento contínuo é o caminho para gerar mais oportunidades para todos e é graças a essa nova leva de artistas e profissionais que podemos enxergar um futuro mais promissor.”
Denise Klein, sócia e diretora na Atomic Soda, acredita que o próximo passo está justamente em romper com a supervalorização do que vem de fora. Segundo ela, ainda há uma tendência a usar referenciais estrangeiros como principal termômetro de qualidade, o que limita o desenvolvimento artístico e simbólico da cena nacional e isso vem desde o público, que é a base de todo o movimento, até aos principais agentes que promovem a cena.
Para produtores, realizar um evento significa lidar com custos crescentes, exigências logísticas cada vez mais complexas e margens de risco estreitas. Faltam incentivos institucionais, rede consistente de patrocínios e uma visão mais aberta por parte das marcas, do Estado e do próprio público, que poderiam aliviar parte dessa pressão e permitir uma programação mais ousada, autoral e financeiramente viável. Enquanto isso, artistas seguem em uma batalha de reconhecimento diária que, mesmo com uma produção rica e criativa, ainda enfrentam barreiras estruturais para alcançar maior projeção. “Profissionalismo é a base, mas o que vai nos levar adiante é o orgulho do que é nosso, e a coragem de criar caminhos que ainda não foram trilhados”, afirma Denise.
Neste sentido, é essencial lembrar que a evolução da cena também depende de uma rede que entenda o valor emocional, histórico e econômico da cultura noturna. O público tem papel essencial nessa construção. É preciso estar disposto a se abrir para consumir novas descobertas e ir além da expectativa de grandes nomes no line-up, trabalhando o pensamento de que a experiência musical não se resume à escala do evento, mas à conexão que ele propõe.
Ao falar em conexão, torna-se indispensável falar também de coletividade e relações humanas. A música eletrônica é historicamente pautada no senso de comunidade, mas parte desse espírito foi se perdendo em meio às competições e a vontade de cada um de fazer o seu negócio ou projeto prosperar. Hoje, o desafio é recuperar a dimensão comunitária da pista, que se desdobra na forma como as pessoas colaboram, se respeitam e se apoiam. A cena melhora quando entendemos que o sucesso individual não tem o mesmo sentido e sustentabilidade sem o fortalecimento do entorno.
Entre os produtores de eventos, há um consenso crescente de que a cooperação é a ferramenta mais eficiente para enfrentar tempos de instabilidade. Compartilhar estruturas, equipes, som e espaços tem se mostrado a alternativa mais realista para seguir em atividade de maneira independente. A coletividade, nesse caso, além de ser sinal de respeito, é um método prático de sobrevivência. Em várias cidades, festas e labels têm se unido em formatos colaborativos que reduzem custos, aumentam o alcance e mantêm a coerência artística mesmo com recursos limitados.
Como resume Rafael Palone, DJ residente da Novo Affair: “[…] a cena melhora quando a gente entende seus limites e suas potências. Ela é, antes de tudo, um espaço de prazer, arte, hedonismo e liberdade. Isso já é transformador por si só, nem todo mundo precisa carregar a missão de ‘mudar o mundo’ aqui dentro”. Como bem observado, para esta cena crescer, ela precisa preservar o que a torna viva: o prazer, a coletividade, a liberdade e o amor pela música, sem esquecer que esse espaço também é profissional e requer cuidado, ética e consistência.
Buscar compreender o público e as pistas para além do próprio olhar é parte dessa maturidade coletiva. Ouvir, dialogar e respeitar as diferentes formas de participação, seja de artistas, produtores, técnicos ou frequentadores, pode manter a cultura firme. É se apegar à lembrança de que a música eletrônica nasceu de uma necessidade de se reunir e que talvez seja essa a resposta mais simples para continuar existindo.
Consequentemente, há também uma dimensão humana em jogo. O trabalho na noite é intenso, solitário em muitos momentos e marcado por uma pressão constante para entregar experiências que superem expectativas, mesmo quando os recursos e o tempo são escassos. O ritmo das demandas, a competitividade e a falta de estabilidade financeira têm adoecido profissionais que, paradoxalmente, trabalham para criar momentos de alegria e desconexão para os outros. Investir na conscientização da saúde mental é o que garante consistência e longevidade a quem atua na cena. O cuidado consigo mesmo precisa ser parte da estrutura, para que seja possível manter o entusiasmo sem que ele se torne peso. É o que faz a diferença entre permanecer e desistir.
A sustentabilidade que tanto se busca, seja financeira, criativa ou emocional, passa, inevitavelmente, por reconhecer que quem trabalha com cultura também precisa de condições dignas de existir. Isso inclui tempo, descanso, limites e apoio. Nenhuma cena sobrevive apenas da entrega; ela precisa de equilíbrio para continuar inspirando.
Por fim, como outros debates que envolvem esse espectro que é a nossa manifestação cultural através da música, não existe caminho único. Há variadas trajetórias possíveis e todas passam pela combinação entre a profissionalização, o autocuidado, a valorização mútua e a cooperação. O que se pede agora é maturidade para compreender que a cena só se sustenta quando cada parte reconhece seu papel dentro dela.
A consolidação desse espaço não virá de um novo boom ou de uma tendência passageira, mas da capacidade de transformar entusiasmo em continuidade, desejo em responsabilidade e trabalho em legado. E isso não depende apenas de quem está à frente, mas de todos que dela participam, dentro e fora da pista. O futuro da cena será resultado das escolhas feitas agora, na forma de produzir, de consumir e de cuidar. Porque, no fim das contas, preservar o que temos de mais valioso não é apenas sobre manter o ritmo, tem muito mais a ver com manter o sentido daquilo que se quer sustentar.