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A música conecta

Isso realmente aconteceu?

Por Alan Medeiros em Artigos 05.09.2025

Em A Invenção da Tradição (1983), livro organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, os autores demonstram como muitas das tradições tidas como antigas e incontestáveis são, na verdade, criações modernas moldadas por quem detinha o poder de nomear, organizar e registrar. Esse processo, que envolve escolher o que lembrar e o que esquecer, está longe de ser neutro: é uma operação política que define o que será contado como verdade histórica. E o que será deixado à margem, como ruído, folclore ou simples “vivência”.

Em 2019, Chris Liberator concedeu uma entrevista ao Alataj — conduzida por Stefano Cachiello, com apoio de Tiago Santos — onde compartilhou suas visões sobre o passado, o presente e os desafios de se manter fiel à cena underground após mais de 30 anos de estrada. O artigo que você lê abaixo parte de insights e falas extraídas daquela conversa para construir, agora em 2025, uma leitura crítica do legado que ele representa.


Décadas após o nascimento da cultura rave no Reino Unido, as palavras de Chris Liberator ainda revelam o que ficou de fora da narrativa dominante sobre a música eletrônica daquele período: os selos autogeridos, as raves ocupadas, os discos prensados fora do circuito tradicional, a ética punk que fez do acid techno uma linguagem viva de resistência cultural.

Não se trata apenas de celebrar um pioneiro ignorado, até porque a jornada de Liberator fala por si só. Apesar disso, é sim relevante entender como uma história pode ser apagada mesmo quando vivida por milhares de pessoas e como alguns artistas, como Chris, seguem se recusando a aceitar esse apagamento.

“Milhares e milhares de pessoas têm conexões com as raves undergrounds”, ele afirma, “seja em Londres ou ao redor do mundo, festas inacreditáveis no Brasil como Rave Patrol, SP Groove e mais recentemente a Techno Route são parte importante da história. E elas vivem no coração e na mente das pessoas que as viveram. Esse é o verdadeiro legado e o que de fato importa.”

Mas a história que ficou nos registros não é essa. Ao olhar para trás, Chris vê com clareza como a imprensa da época privilegiou os superclubs, os palcos principais e os rostos mais comercialmente viáveis, enquanto raves ilegais, ocupações e circuitos alternativos eram vistos sem o devido reconhecimento — isso quando eram mencionados. “A imprensa musical escreveu a história da cena rave com relatos dos superclubes, Ibiza, grandes DJs… mas nós tivemos experiências completamente diferentes que nunca foram registradas. E experiências que realmente mudaram vidas.”

Esse abismo entre o vivido e o documentado também marca o lugar ambíguo que o Acid Techno passou a ocupar na última década. Depois de muito tempo ignorado, o estilo voltou ao radar — agora celebrado por nomes como Amelie Lens, Regal, Charlotte de Witte e outros. Chris reconheceu o valor simbólico desse retorno, mas não sem ressalvas. “Tenho sentimentos misturados. Se de fato (esse movimento) passar a ser defendido pela cena Techno mais elitizada, ele pode perder sua credibilidade de alguma forma.”

A crítica tem um foco na busca pela coerência. O que preocupa a lenda do Acid Techno britânico não é ver a linguagem ser potencialmente esvaziada. “O sucesso de One Night in Hackney foi sobre nós, nossas vidas no underground de Londres. Tem pouco a ver com grandes DJs em raves comerciais… mas as letras ressoam com todos os ravers em todos os lugares.” Essa tensão entre memória coletiva e apropriação estética está no centro do dilema: o que acontece quando uma cultura feita à margem é absorvida por sistemas que ignoram sua existência?

Trechos de A Invenção da Tradição descrevem a tradição inventada como um mecanismo que consolida o poder ao fixar símbolos e narrativas como se fossem naturais, quando na verdade foram moldados a serviço de uma ordem dominante. O reconhecimento tardio do Acid Techno por setores mais elitizados da cena pode parecer um acerto de contas com o passado, mas também corre o risco de funcionar como reescrita, um gesto que, em vez de reparar, reencena a exclusão, agora em moldes mais palatáveis. A cultura que foi subestimada quando era tida como “agressiva” ou difícil de ser compreendida, torna-se celebrada quando se adapta à moldura de vitrines.

A essa inquietação somam-se os efeitos de um novo tipo de visibilidade. “As redes sociais são muito narcisistas”, diz Chris. “Eu tenho que compartilhar coisas às vezes, entendo que as pessoas estão interessadas… mas não tem como sustentar DJs e artistas engrandecendo a si próprios constantemente.” É uma recusa discreta, mas firme, de participar do jogo da performance como estratégia de validação. Ao contrário de muitos que adaptaram seus discursos à era da autopromoção, Chris segue operando com a mesma lógica que o moveu desde o início: fazer, resistir, persistir. Mesmo que a estrutura não favoreça.

Hoje, passados seus 30 anos de carreira, ele ainda se posiciona com a franqueza de quem nunca esperou favores institucionais. “A história é escrita por pessoas que têm tempo e influência durante o período sendo registrado”, diz. Mas há também outra forma de registro — a das pistas, das memórias, dos discos prensados na garra, dos flyers rabiscados à mão, com mapas de como encontrar a rave em meio ao nada. É dessa forma que Chris defende ao manter vivos os catálogos da Stay Up Forever, os selos paralelos, o som ácido que nunca deixou de defender.

Quando o sistema inventa uma tradição, resta a quem viveu a história reforçar os fatos. E Chris sabe exatamente o que o motivou a fazer isso desde o início. Em suas palavras finais na entrevista, ele cita uma banda punk obscura dos anos 70, The Desperate Bicycles: “Você não precisa de habilidades. Apenas do interesse. O interesse é o desejo de fazer o que você acredita.”

Essa talvez seja uma tradição que vale a pena preservar.

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