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A música conecta

Editorial | A audição ansiosa

Por Lisa Uhlendorff em Editorial 25.11.2021

Nessa tal de attention economy, empresas, pessoas e coisas competem entre si, nesse exato segundo, pela sua valiosíssima atenção – aliás, agradeço desde já por seu interesse nesta coluna pois sei que vídeos do TikTok são muito mais atraentes do que a boa e velha leitura. Em um mundo onde a atenção humana se tornou uma mercadoria escassa e com alto valor financeiro, a indústria musical foi obrigada a moldar seus produtos e serviços visando atender ao ritmo acelerado de toda uma geração.

 A geração da ‘audição ansiosa’ (que não necessariamente abrange uma faixa etária específica mas que é comumente percebida entre os Millennials e Zs) não ouve músicas com mais de 2 minutos e 30 segundos. Os ouvintes das plataformas de streaming, como Spotify, Deezer, Amazon Music e Tidal, moldaram essa nova ‘norma’ musical, influenciando e pressionando diretamente os artistas, produtores e compositores a serem mais “diretos ao ponto” em suas músicas.

Talvez eu seja uma alma velha que tem receio desse tipo de coisa. Essa ansiedade de chegar ao ponto da música nada mais ser do que um reflexo de tantas outras ansiedades contemporâneas que não reconhecem o poder do tempo, afundando-se na angústia por querer algo naquele exato instante e frustrando-se por não tê-la. Porém, a sede do consumidor (nesse caso, dos ouvintes) é o que dá rédeas ao mercado, que por sua vez adapta-se para não perder relevância. Se as músicas do TikTok precisam ter no máximo 1 minuto de duração, so be it – e de nada adianta falar sobre reflexos e consequências da ansiedade que permeia o contexto.

 Uma pena que a ‘audição ansiosa’ não se delicie com Easy Lee de  Ricardo Villalobos, com seus 10 minutos e 11 segundos, e muito menos com Everywhere you Go, também do Villalobos, com 28 minutos e 31 segundos. São músicas que te levam em uma jornada musical com começo, meio e fim. São histórias, contadas no seu devido tempo, fazendo seu corpo flutuar entre os altos e baixos dos kicks, drops e vocais minimalistas. Uma pena que tantas músicas eletrônicas atuais te levam tão rápido ao drop, pulando o começo e fugindo do final – tipo sexo sem preliminar em que se veste a roupa logo após o gozo, sem a respiração ofegante e o suor escorrendo pelos corpos nus jogados na cama. Música é como sexo, tem suas fases, e não necessariamente o drop é a parte mais prazerosa.

Em uma coluna recente no Estadão, Tiago da Cal Alves (aka Papatinho – DJ, beatmaker e produtor musical) comentou: “Se sua música não for direto ao ponto, você perde o ouvinte (…) Eu prefiro ter uma música de dois minutos ouvida por duas ou três vezes pela mesma pessoa a ter uma de quatro que ninguém ouve“. E continua, “só os artistas que têm muitos fãs devem lançar álbuns. É muito difícil fazer uma pessoa ouvir um disco inteiro. Melhor é lançar uma faixa de cada vez“. Não acho que o ponto de vista do Papatinho seja palco de julgamento entre certo ou errado; isso seria extremamente equivocado e ingênuo. Se as leis do mercado são essas, entendo quem as segue – por mais que tenha um lado revolucionário como ouvinte. A verdade é: não se escapa das garras do capitalismo, e a indústria musical está sujeita ao Capital como ninguém. Como o próprio Papatinho diz, a quantidade de tracks vale mais do que suas durações. Histórias curtas, rasas e em quantidade – igual o catálogo da Netflix – obedecendo à lei da ansiedade em massa.

Músicas eletrônicas de longa duração não são feitas para qualquer ouvido, ao contrário das músicas curtas e comerciais que são essencialmente estruturadas dessa forma. Não exige-se tanta atenção para ouvir uma música de 2 minutos – o tempo passa rápido demais para começar a pensar naquilo que se ouve (tipo comercial de rádio, vomitando informação antes que você consiga entender qual o produto em questão). Já as músicas extensas ‘forçam’ o ouvido a captar a informação, digeri-la, entender o contexto, diferenciar instrumentos e estranhar uma batida fora de ordem que só será interpretada mais a frente.

Imagino que a ‘audição ansiosa’ também tenha um problema ao ouvir sets. É completamente normal gostarmos de uma parte de um set mais do que da outra, e saber a minutagem na ponta da língua dos melhores momentos e drops. Mas a ‘audição ansiosa’ não é sobre favoritismos, mas sim pressa. Pular um set de 2 horas em pequenas cápsulas de 2 minutos não é escutar um set (recomendo uma playlist no Spotify, muito mais prático). Particularmente, vejo graça nas mixagens – às vezes, mais do que nas músicas.

Mas toda moeda tem dois lados. Diversos hits memoráveis estão na média dos 3 minutos, como Águas de Março com 3:32, Garota de Ipanema com 3:20, Tiro ao Álvaro com 2:44, Dias de Luta, Dias de Glória com 2:25, e Lança Perfume, com incríveis 2:07. Hits curtos expressam uma certa genialidade pouco encontrada entre artistas. Mas acredito que o Pop, Rock, MPB, Rap (entre outros) andam a passos diferentes da música eletrônica. No universo clubber, uma música com menos de 3 minutos carrega uma missão difícil aos DJs: mixar com tempo livre para experimentações (e sem precisar colocar no loop eterno e cansativo).

Me pergunto: será que a ‘audição ansiosa’ mudará, estruturalmente, a música como a conhecemos? Torço para que não, mesmo que adore uma mudança. ‘O que é bom, dura pouco‘ nem sempre é uma realidade; ‘O que é bom dura o tempo que for‘ se encaixa muito melhor. 

A música conecta.

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