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A música conecta

Entre Minus e Beltran: ecos e sinais de uma arte cíclica

Por Alan Medeiros em Editorial 28.04.2025

Quando uma tendência soa nova demais, talvez o mais inteligente seja procurar onde ela já esteve antes. É essa sensação — de frescor absoluto e familiaridade — que emerge ao ouvir a nova linhagem sonora que o brasileiro Beltran vem trabalhando, com faixas como a ainda não lançada Bossy e os trabalhos do selo Beltools alimentando um movimento que hoje reverbera em pistas do Brasil, dos Estados Unidos e, como um fenômeno, começa a contagiar o circuito global.

Brevemente, pois não é nosso objetivo aqui definir as características estéticas desse movimento: trata-se de um som que parte da estrutura do Tech House, mas deságua em uma abordagem mais dark, com timbres secos, grooves pesados e texturas minimalistas que imediatamente remetem à estética da Minus de Richie Hawtin no começo da década de 2010 combinada com traços clássicos do Electro e uma pitada sutil de Indie Dance. A bateria assume o protagonismo, os baixos são ásperos e ressonantes, e o vocal — quando surge — é essencialmente frio, cortante e robótico. Para a nova geração clubber, é algo que pode parecer inédito. Para quem já percorreu esses caminhos antes, é a arte em seu movimento mais natural: o retorno.

Toda criação carrega em si um impulso de reinvenção. Não existe arte surgida do zero. Como um eco atravessando diferentes tempos, estilos e sensibilidades retornam transformados, impulsionados pela energia vital de novas gerações. O frescor que ouvimos hoje nos sets de Beltran e seus contemporâneos não é uma ruptura total com o Tech House tradicional: é uma metamorfose, uma reorganização de fragmentos sonoros do passado sob novas tensões e afetos do presente. Na música eletrônica, o que parece novo muitas vezes é uma sensibilidade antiga vestindo um novo corpo. 

Sons minimalistas que pareciam ter encerrado seu ciclo em meados dos anos 2010 ressurgem agora reinterpretados: mais densos, mais viscerais, mais conectados ao ritmo hiperacelerado da vida contemporânea. A sensação de ruptura dá lugar a um fenômeno mais sutil: a reconfiguração criativa. E essa nova geração de produtores, ainda que de forma intuitiva, se inscreve nessa tradição de fazer do reencontro com o passado uma abertura para novos imaginários.

Elastrik, de Gaiser, lançada pela Minus em 2011, é uma das faixas que lembra a estética atual de Beltran

Nos primórdios da Minus, a proposta era clara: reduzir, depurar, alcançar uma expressão quase clínica da dança. Plastikman, Gaiser, Barem — todos artistas que, cada um à sua maneira, estruturaram essa busca por um groove essencial, onde o silêncio e o vazio tinham tanto peso quanto o som. Matemática e feeling combinados. Essa estética, que parecia ter cumprido seu ciclo natural, retorna agora de forma deslocada. Se para a Minus a frieza era o ponto de chegada, 2025 é um novo ponto de partida. A bassline crua, os vocais cortantes, a tensão dos drops: tudo é reciclado, mas ressignificado. 

Como uma extensão especial deste conteúdo, preparamos uma playlist com 15 faixas históricas da Minus que ajudam a entender as referências que agora reverberam nesse som do presente:

Se hoje o impacto desse novo som parece instantâneo, é porque o próprio tempo da cultura mudou. O que selos como a Minus construíram ao longo de anos — num processo de maturação lenta e mutação gradual — hoje se condensa em ciclos que duram meses, ou até semanas. A pressão pela novidade se tornou uma força dominante e não apenas uma característica natural da criatividade coletiva. 

Essa aceleração, claro, carrega seus paradoxos. De um lado, amplia a capacidade de circulação de novas linguagens, muitas vezes nascidas em circuitos periféricos. De outro, torna ainda mais raro o surgimento de movimentos que consigam resistir ao desgaste precoce. Na lógica atual, ser cíclico não é mais uma curiosidade histórica: é condição de sobrevivência. Mesmo artistas com reconhecimento consolidado se veem forçados a mover suas estéticas, antes que sejam ultrapassados por tendências que nem sempre ajudaram a criar.

Nem toda nova estética encontra terreno para se consolidar. Muitas surgem como reflexo imediato de um desejo passageiro — um visual, um BPM, um hype — e desaparecem junto com o esgotamento do impulso que as gerou. Outras, no entanto, conseguem tocar algo mais profundo: atravessam o instante, enraízam-se em afetos coletivos, e abrem espaço para novas histórias.

O que faz a diferença é a capacidade de transformação. Uma tendência que se deixa recombinar, reimaginar e ressignificar sem perder seu núcleo vital tem mais chance de permanecer. A música eletrônica, que sempre sobreviveu mudando, mostra que as linguagens que resistem são aquelas que sabem evoluir sem trair sua essência. O que se simplifica demais, inevitavelmente, se quebra.

Esse caráter cíclico da arte é facilmente reconhecível também em outras linguagens. O cinema, por exemplo, já viu o expressionismo alemão dos anos 1920 ressurgir décadas depois em filmes como Blade Runner (1982), que reinterpretou suas atmosferas sombrias e urbanas de forma futurista. Na música pop, a explosão dos sintetizadores nos anos 1980 renasceu nos anos 2010 com artistas que recuperaram a estética synthwave sob novas narrativas. Em cada retorno, o velho não volta como era: volta modificado, reeditado para um novo momento específico.

Esse novo movimento também representa uma mudança simbólica, já que não é comum vermos um artista brasileiro jovem, conectado com sua geração, liderar uma renovação estética global. Não como seguidor de tendências, mas como criador de uma linguagem que faz sentido para seu tempo — e que, justamente por isso, encontra ressonância mundo afora.

Se a história da música eletrônica é feita de retornos, mutações e renascimentos, ver o Brasil nesse papel ativo de criação é mais do que um feito. É um sinal de vitalidade cultural das nossas pistas. Em meio a ciclos cada vez mais breves, a trajetória que Beltran está esboçando indica que certas forças — aquelas que realmente tocam o imaginário coletivo — sempre encontram um jeito de retornar. Renovadas. Diferentes. Mais vivas do que nunca.

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