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Editorial | Lei Rouanet: incentivo cultural para quem exatamente?

Por Isabela Junqueira em Editorial 18.02.2022

A arte e o desenvolvimento humano caminham, inegavelmente, atrelados — assim como suas respectivas evoluções. A primeira manifestação artística que se tem registro é ainda no período pré-histórico (muito antes da escrita), e que pode ser divido em três momentos que marcam, essencialmente, o aparecimento dos primeiros hominídeos. É no Paleolítico Superior, o segundo, aproximadamente 30.000 antes de Cristo, que surgiram as primeiras pinturas, esculturas, além de objetos feitos de marfim, ossos, pedras e madeiras. Por volta de 10.000 a.C., chega o terceiro e último período, o Neolítico — marcado pelo uso de objetos feitos de pedra polida, o início da agricultura, artesanato e grandes construções feitas de pedra.

Mas se o assunto é a Lei Rouanet, qual o ponto de contextualizar o surgimento da arte na evolução humana? Simplesmente porque a arte é uma das massivas esferas associadas ao caminho evolutivo que resulta no Homo Sapiens, do latim “homem sábio” — mais precisamente nós, humanos modernos. A arte não só veio antes da linguagem, como foi fundamental para que ela fosse desenvolvida. A partir da habilidade de gerar conscientemente e racionalmente novas obras de caráter estético, a humanidade ganhou não só mais uma fonte de prazer e nutrição mental, mas também uma ferramenta social que expõe e documenta características históricas e culturais, refletindo a essência humana.

Essas breves considerações sobre a importância da arte são necessárias para, de cara, darmos a profundidade correta ao tema e enfim adentrarmos à pauta desse editorial que é a Lei de Incentivo Cultural. É necessário estar ligado dos efeitos diretos e indiretos sob a humanidade para que se aplique um olhar atento, para então, partirmos de um nivelado pressuposto de que sim: a arte e seus mais diversos frutos são irrefutavelmente fundamentais para qualquer esfera da sociedade, não importando se você se julga um grande consumidor ou não. Dito isso, que tal nos aprofundarmos na cabeludíssima e muito mal interpretada Lei Rouanet (nome de batismo da Lei que rege o incentivo cultural)?

No “papel”, a Lei Federal nº 8.313 do dia 23 de dezembro de 1991 foi criada para ser a principal fonte de fomento e difusão à cultura do Brasil, buscando contribuir para que projetos culturais aconteçam uniformemente pelo país. Basicamente, por meio dela, empresas e pessoas físicas podem patrocinar um vasto leque de expressões culturais (exposições, galerias, livros, museus, produções audiovisuais, shows, entre várias outras produções) e abater o valor total ou parcial do apoio no Imposto de Renda (ou seja, até 6% do valor de imposto devido para pessoas físicas, ou 4% para pessoas jurídicas) — dinâmica baseada no mecanismo de incentivo fiscal. Aqui já matamos um grande equívoco popular sobre o programa: não, o dinheiro não sai dos cofres públicos aprovados a partir de determinados interesses.

A Lei também contribui para ampliar o acesso da população às produções culturais, já que os projetos aprovados e patrocinados são obrigados a oferecer uma contrapartida social. Os mais comuns são a disponibilização de acessos gratuitos e a promoção de ações de formação e capacitação junto às comunidades. Esse mecanismo de incentivo à cultura é só um dos pilares do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que também conta com o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficarts) — financiados com recursos do Ministério da Cidadania, diferentemente da Lei Rouanet. 

Em dezembro de 2018, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou os resultados do estudo que levantou os frutos da Lei ao longo de 27 anos. Até aquele momento, mais de 53.368 projetos já tinham sido contemplados, injetando mais de R$ 17,6 bilhões na economia brasileira. Entre os grandes impulsionados pela Lei estão o Instituto Tomie Ohtake, Instituto Cultural Inhotim, Orquestra Sinfônica Brasileira, Museu de Arte de São Paulo (MASP) — sendo esses alguns dos maiores captadores de recursos. Carandiru, Cazuza – O Tempo Não Pára, Central do Brasil, Dois Filhos de Francisco, Lisbela e o Prisioneiro e Zuzu Angel também são algumas das importantes produções audiovisuais que obtiveram autorização para captação de recursos via Rouanet.

Mas nem tudo são flores, aliás, longe disso. Mesmo nos tempos de vitalidade sob o comando do extinto Ministério da Cultura (MinC), a Lei já recebia diversos questionamentos sobre a real eficácia. Com o passar dos anos e trocas governamentais, não soa exagerado dizer que o programa enfrenta um estanque se considerarmos as últimas atualizações (sejam as de 2019 ou de semana passada). Fato é que o descaso começou no xeque-mate de Temer em 2016, e consequentemente com o atual governo que em 2019, acabou por aniquilar o Ministério da Cultura que, à época, gerou várias manifestações da classe artística e fomentadora — que em junho daquele ano foram às ruas em massa protestar.

Em 2019, com Bolsonaro assumindo a presidência, o desmonte foi continuado: o valor máximo de investimento foi reduzido em 98% (de R$ 60 milhões, caiu para R$ 1 milhão), mudança mais significativa até aquele momento. Soou drástico? E se eu te contar que há alguns dias atrás, esse valor caiu novamente, desta vez para 50%, o que resulta em R$ 500 mil? Além do valor máximo, as principais mudanças foram: redução do valor pago a artistas que será de R$ 3 mil para cada projeto aprovado, redução do valor de aluguéis de teatro para R$ 10 mil, redução em publicidade e a extinção do limite de R$ 200 mil para o primeiro projeto.

Entre mais algumas expressivas reduções que não se encaixam na realidade de quem vive da arte no país e muito menos em suas demandas, pode-se considerar como ponto positivo a retirada da obrigatoriedade de contratar escritórios de advocacia e contabilidade. Mas como os responsáveis pelas alterações estão as justificando? Nas palavras do secretário de Cultura, Mario Frias, a atualização na Instrução Normativa tem o objetivo tornar a Lei Rouanet “mais justa e popular”. Ainda de acordo com os representantes da pasta, a finalidade seria desburocratizar o processo e, com isso, atrair mais investimentos, gerando mais renda e empregos na área cultural — já que em tese as regras ficaram mais claras para agregar fluidez ao processo.

Se antes a Lei Rouanet soava distante de você, artista ou fomentador da cultura (eletrônica ou não) brasileira, quem sabe não está na hora de reconsiderar o sentimento? Apesar da diminuição de valores repassados, em tese, com as atualizações é para ser um processo mais prático. A única forma de interpretar se a nova dinâmica é efetiva, é pondo a mão na massa inscrevendo o seu projeto e colocando a prova se as modificações estão sendo de fato favoráveis ou não. É a velha história: o “não” você já tem. Além da tentativa, você pode colaborar gerando número para que os órgãos governamentais (federal, estaduais e municipais) e a sociedade civil passe a enxergar o setor da música eletrônica e demais âmbitos alternativos com o profissionalismo aos quais são merecedores — além de nichos latentemente crescentes no país.

+++ Confira o editorial que te dá os caminhos para inscrever seu projeto na Lei

A arte precisa ser fomentada e incentivada para que prospere e siga a nutrir os mais diversos públicos. Se você é do time que defende o afastamento da esfera pública sobre arte e entretenimento, talvez a informação de que o acesso à cultura e ao lazer são direitos fundamentais aos cidadãos assegurados pela Constituição Federal, te faça entender que é simplesmente impraticável. Ou seja, cabe ao Poder Público possibilitar efetivamente a todos o usufruto dos direitos culturais por meio da adoção de políticas públicas que promovam o acesso, mas também a proteção ao patrimônio cultural, o reconhecimento e preservação dos direitos de propriedade intelectual, assim como de livre expressão e criação. 

Então, com essas informações em mente, se ainda não está claro, o incentivo cultural deve ser para absolutamente todos. Infelizmente, ao longo de seus anos após a implementação, a Lei passou por uma espécie de demonização marcada por ondas constantes de desinformações. Sejam para as antigas gerações ou as mais novas, sejam entre artistas ou consumidores, fomentadores públicos e privados ou profissionais técnicos, a Lei de Incentivo Cultural funciona como uma forma de prestação de serviço à sociedade de forma geral. Portanto, entenda com clareza que a Lei Rouanet está aqui para auxiliar a dar o devido valor e espaço que a arte tupiniquim merece — por isso consumir, participar e cobrar a atuação firme da esfera pública são tão substanciais. Viva a produção cultural brasileira!

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