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A música conecta

O que é ter sucesso na música eletrônica?

Por Elena Beatriz em Editorial 02.10.2025


O que é ter sucesso na música eletrônica? A pergunta parece simples, mas não admite resposta única. Para alguns, sucesso é lotar pistas, para outros é receber uma crítica que legitime um trabalho ou manter um catálogo ouvido por décadas. Pode estar na solidez de uma residência local, no alcance de uma turnê internacional, na saúde financeira que permite viver da música ou até no simples ato de dizer “não” a uma data para evitar um calendário exaustivo. Há quem veja sucesso no impacto que um coletivo produz e quem o encontre em preservar vínculos pessoais em meio a um circuito desgastante. Entre expectativas externas e realizações íntimas, raramente esses elementos acontecem juntos, e por isso a resposta está mais próxima de um debate contínuo do que de uma definição.

A história ajuda a entender essa pluralidade. No fim dos anos 70, sucesso podia significar simplesmente ter um espaço seguro para tocar e dançar, como aconteceu nos clubes de Nova York que deram origem à Disco. Nomes como Donna Summer também alcançavam o sucesso ao mostrar que uma figura feminina podia ocupar o centro das pistas e das paradas. Nos anos 80, em Chicago, o êxito estava em apresentar a força de um novo gênero e sua experiência coletiva, como quando Frankie Knuckles ajudou a fundamentar a House Music. 

Já nos anos 90, o crescimento das raves e festivais, exemplificado pela Love Parade, mostrou que sucesso também podia ser reunir público em massa, ainda que essa visibilidade viesse acompanhada de repressão. Em paralelo, selos como Kompakt, na Alemanha, e Warp, no Reino Unido, mostravam que sucesso também podia estar em catálogos consistentes, inovadores e, por vezes, numerosos e capazes de educar quem ouvisse. No Brasil, o Hell’s Club refletia seu sucesso ao sustentar e promover uma cena local.

Nos início dos anos 2000, o Berghain tornou-se referência mundial pela maneira como moldou a cena do próprio país e na capacidade de criar sua própria assinatura. Nomes como Ricardo Villalobos, Carl Cox ou Armin van Buuren sintetizaram trajetórias em que a singularidade artística e a consistência se transformaram em reconhecimento. Projetos como Daft Punk indicavam como a autenticidade poderia atingir escala massiva e sucesso mundial.

Contudo, a chegada da internet começou a alterar esses parâmetros. Plataformas como o Beatport e MySpace permitiram que novos produtores alcançassem ouvintes de forma direta, em contrapartida,  também inauguraram uma era em que números se passaram a contar como métrica de visibilidade. O sucesso já não se limitava ao espaço físico das pistas, ao repertório, ao catálogo ou às experiências criadas, mas começava a ser medido também por número de plays, seguidores e posições em charts, por exemplo. Segundo estudo publicado em Information, Communication & Society (Universidade de Leeds, 2018), as plataformas deslocaram a ideia de valor artístico para métricas de engajamento, reforçando uma dinâmica em que a criação precisa se adaptar ao ambiente que a distribui.

Ocorre que esse parâmetro não é capaz de medir o que move muitos artistas. Orgulho pelo trabalho feito, coerência entre o som produzido e a identidade que se deseja afirmar, sentido de propósito e impacto em uma comunidade específica são critérios que dificilmente são arbitrados pelos algoritmos. Simon Frith, no livro Performing Rites (1996), já alertava que o valor da música não pode ser entendido apenas em termos comerciais, pois envolve dimensões sociais e culturais invisíveis ao mercado. Um artista pode vencer por fora, acumulando streams, datas e seguidores e, ao mesmo tempo, sentir fracasso por dentro, caso não se reconheça no que produz.

Daí a necessidade de encarar o sucesso como um equilíbrio entre quatro eixos que se alternam ao longo da carreira: arte, cena, negócios e vida. Quase nunca os quatro caminham juntos; em algumas fases, um eixo puxa os outros, em outras fases, precisa ceder. Ler a trajetória por esses prismas ajuda a entender quais renúncias cada escolha exige.

O primeiro ponto a ser trabalhado é de fato o que mais carece de atenção: a vida e a saúde mental. A dependência de métricas, combinada à instabilidade financeira, à necessidade de autopromoção constante, às datas acumuladas e a má distribuição de tarefas é uma fórmula pronta para o desgaste. Um estudo publicado em 2022 na Vrije Universiteit Amsterdam, intitulado Performers of the Night, apontou que cerca de 30% dos artistas de música eletrônica entrevistados relataram sintomas de ansiedade ou depressão relacionados ao trabalho. O mesmo foi investigado em um relatório da Record Union (2019), onde 73% dos músicos independentes relataram dificuldades similares. São números que mostram que a régua tradicional do sucesso pouco importa se o artista não consegue manter uma rotina sustentável, se perde vínculos pessoais, se desenvolve vícios, se não tem tempo de qualidade. Sucesso também pode ser a capacidade de manter uma vida equilibrada, com limites claros, pausas necessárias e relações preservadas.

Reconhecer limites também significa admitir que fracasso, pausas e até desistências fazem parte da equação. Projetos interrompidos, mudanças de rota e períodos de recolhimento muitas vezes são importantes para arejar e ampliar a qualidade do trabalho oferecido, além de abrir espaço para transformações reais. Uma mente bagunçada não é capaz de criar com excelência. Não é incomum que artistas precisem se afastar para estudar, reformular o próprio som ou simplesmente descansar e, assim, encontrem forças para redefinir o que significa seguir adiante. Isso também é sinônimo de sucesso.

No campo dos negócios, sucesso pode ser saber tratar a música como trabalho, lembrar que viver disso implica lidar com instabilidade e risco e que mesmo o trabalho movido pela paixão precisa de estratégia financeira, gestão de risco e disciplina. Ao entender esse conjunto de fatores, alguns eventos adversos como variação de cachês, temporadas de escassez e custos fixos que crescem passam a ser parte do planejamento de quem consegue precificar e diversificar fontes de renda — gigs, produções, aulas, selos, eventos — e administrar esse fluxo como parte do ofício. Conseguir construir uma base estável e ainda assim garantir autonomia é, sem sombra de dúvidas, um indicativo de sucesso.

Para falar em autonomia, que também é indicativo de sucesso, é preciso qualificá-la em pelo menos duas frentes: a autonomia profissional e a autonomia artística. No plano profissional, não se trata apenas da vontade de estabelecer limites, mas da possibilidade concreta de fazê-lo. Ter margem para recusar uma gig, evitar uma tendência ou reorganizar a agenda exige que o artista já tenha construído alguma estabilidade. Essa liberdade preserva não apenas a saúde mental e física, mas também o sentido do trabalho. O sucesso, nesse caso, está em controlar o ritmo da própria trajetória, em vez de ser controlado por ela.

Já na autonomia artística, sucesso significa sustentar o risco de não abrir mão da identidade, mesmo que isso signifique não agradar a todos. A história da música eletrônica mostra que muitos nomes lembrados décadas depois não foram os que mais agradaram de início, e sim os que insistiram em uma assinatura própria. Sucesso, portanto, não é apenas se inclinar ao que funciona naquele momento, mas sustentar a própria essência e oferecer algo que talvez não existisse antes, seja através de um selo, uma residência ou um projeto solo, capaz de permanecer ativo ao longo do tempo, com consistência, curadoria e trajetória que resistem às mudanças de gosto.

Se a liberdade individual é um indicativo claro de sucesso, ela certamente ganha densidade quando posta em relação ao coletivo. O que dá fôlego a uma trajetória é a capacidade de dialogar com uma cena, contribuir para sua continuidade e se tornar referência dentro dela. Consolidar-se em um circuito regional, por exemplo, pode ser mais transformador do que buscar validação externa a qualquer custo. Você está contribuindo para o fomento de uma arte na qual você acredita. A relevância, nesse caso, está na solidez de uma trajetória que gera impacto onde ela acontece.

Esse impacto traz junto a responsabilidade. Quem acumula visibilidade não influencia apenas a própria carreira, coletivo, selo ou projeto, mas também a forma como o público se relaciona com a música e com a cena. Sucesso, então, não é apenas ser ouvido, mas refletir e saber escolher o que comunicar, quais práticas se reforçam e quais se recusam. Por isso, medir sucesso também significa reconhecer o efeito que ele produz no ambiente ao redor.

No fim das contas, sucesso na música eletrônica não é uma linha de chegada, mas uma rota em constante revisão, moldado por um equilíbrio entre ganhos e renúncias inevitáveis. O que permanece é a necessidade de que esse caminho faça sentido para quem o percorre: que quem promove a arte se reconheça naquilo que entrega, que a cena se fortaleça a partir dessas escolhas e que a música siga cumprindo sua função de conectar pessoas. Diante de tantas variáveis, não existe definição única para o sucesso, apenas a possibilidade de cada um construir o seu processo e isso, por si só, já é uma vitória.

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