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A música conecta

Editorial | A conexão entre artistas, estilos e gerações em uma celebração à vida e carreira de Rita Lee & Roberto de Carvalho

Por Laura Marcon em Editorial 29.06.2021

A primeira vez que tive contato com a música de Rita Lee e Roberto de Carvalho que minha mente me permite lembrar foi na infância, através de Elis Regina, em Alô Alô Marciano. Dentre todas as músicas que escutava na voz de Elis, essa me soava mais diferentona. Lembro que não entendia bem o contexto da letra, mas no geral tinha um palavreado que me chamava atenção. Uma conversa com um ET, guerra, zona, high society… era uma bagunça na minha mente, mas eu gostava bastante, ainda mais porque Elis abusava de um tom irônico na interpretação, rasgava a voz em outros momentos, no final é puro deboche.

Anos se passaram e fui “formalmente” apresentada à rainha do Rock e seus cabelos ruivos, óculos pequeninhos e coloridos e também a outras de suas composições. Até hoje tenho o CD do Acústico MTV comigo, o qual leva um risquinho honesto de tanto circular entre aparelhos de som. Pouco a pouco, enquanto eu crescia e me entendia aqui dentro, também passei a entender mais e mais porque essa e outras faixas de Rita faziam – e ainda fazem – tanto sentido pra mim. Quando eu olho/escuto/leio Rita, entro em um lugar seguro onde posso falar e fazer o que quiser e não me importar para o que os outros pensam ou esperam de mim. Na prática não é assim tão fácil, convenhamos, mas o incentivo eu sei muito bem onde encontrar.

Justamente pelo peso que tem essa mulher que a introdução desse editorial está saindo a duras penas, confesso. Já faz algum tempo que, em virtude desse absurdo todo que estamos vivendo, tenho travado uma batalha com a minha criatividade – ou a falta dela. Tanta coisa passa na mente e o start não rola com tanta facilidade. Daí que se junta isso ao fato de que o assunto é uma das suas referências na música e na postura artística e humana e rola aquela “tela azul”. Mas, the show must go on e resolvi simplesmente escrever o que me viesse à mente e deixar as minhas expectativas ou qualquer regra editorial de lado. Já diria Rita Lee que o pior inimigo da criatividade é o bom-senso, então neste caso me sinto incentivada a sei lá… escrever o que me der na telha.

Afinal, fazer o que dá na telha é algo que Rita Lee Jones sabe muito bem. Dentre as frases que sublinhei lendo sua autobiografia (a qual recomendo fortemente), uma das melhores foi “uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo”. Disruptiva, ousada, debochada, urbana e zero filtro, a mezzo italiana, half north american e muito brazuka se tornou não apenas uma das artistas mais bem-sucedidas da história do nosso país, como também se tornou um símbolo do poder e libertação feminina e de simplesmente ser quem se é sem pedir licença pra ninguém. 

Ao longo dos quase 60 anos de carreira, a artista presenteou o Brasil e o mundo com composições em um grande hibridismo de estilos, com letras que vão das ideias mais subversivas e escrachadas até poesias mais românticas inspiradas no seu eterno amor e companheiro musical inseparável Roberto de Carvalho, com quem teve o prazer de deitar, rolar, compor e trabalhar por muitos anos. Rita e Roberto são autores de clássicos da música brasileira sem jamais se prender a uma vertente sonora. Rock, uma dose de psicodelia maravilhosa, Bossa Nova, Pop, New Wave, Disco, Eletrônica e tantos outros campos musicais foram explorados.

Sim, você leu Eletrônica. Os sintetizadores dos anos 80 são super presentes e basta uma breve conferida na discografia para você perceber que ela pode ser a rainha do Rock brasileiro, mas também é bem pixta, bebê. E foi justamente por conta desse viés dançante enraizado no trabalho do casal – e principalmente da vontade de celebrar essa belíssima história – que nasceu uma ideia tão ousada quanto as criações de Rita + seu amor-perfeito-muso-parceiro, vinda de um de seus filhos, João Lee, que escolheu o caminho da música eletrônica para expressar a arte que, obviamente, corre no sangue.

São 25 anos como DJ e produtor, tours nacionais, internacionais e um bocado de experiência dentro do universo da música e desse mercado como um todo. João, além de levar a carreira solo, tem uma profunda dedicação em manter vivo o legado de seus pais e, desde o lançamento da autobiografia de Rita Lee, é o cabeça de uma série de projetos incríveis para celebrar essa história. Dentre eles, um muito especial que vai totalmente de encontro com a sua própria trajetória: a série Classix Remix. Você provavelmente sabe do que estou falando, pois esse trabalho vem causando no cenário eletrônico desde o lançamento do primeiro volume em abril, e que na sexta (25) chegou ao seu terceiro e último episódio.

O projeto é um desejo antigo de João. Em uma conversa que tivemos antes mesmo do lançamento do primeiro volume, ele me contou muitos detalhes de todo o conceito e processo de produção que transformam a série em um trabalho completamente apaixonante. “Eu queria trazer pra dentro desse projeto pessoas que fizeram parte da minha vida, sabe? Meus amigos, pessoas que eu sou fã, pessoas que me influenciaram como DJ, pessoas de quem eu toquei bastante as músicas…”, explica Lee.

João assumiu a produção total desse trabalho e esteve à frente de absolutamente todas as fases na concepção do Classix Remix. Esse, aliás, era um dos fatores determinantes para que o projeto sequer saísse do papel, já que Rita Lee e Roberto de Carvalho são muito criteriosos e perfeccionistas com sua arte. “A produção inteira desse projeto eu fiz sozinho, desde a capa até a escolha das pessoas, troca de informação com cada um. Então isso deixou meus pais muito tranquilos. E pra mim, uma coisa que eu sempre percebi neles, é que eles têm uma intuição artística muito forte e muito boa. Eles sentem o que é bom, sentem o que vai dar certo, eles sabem, então isso eu abusei ao longo do processo”. 

E quando falamos em processo, aqui começa uma história tão incrível e carinhosa que ninguém melhor do que o próprio João para contar, então deixo as palavras dele:

Quando eu fechei esse projeto com a gravadora, um ano e meio atrás, eu precisava ter material pra fazer o trabalho, então a gente foi em todos os lugares, os warehouse que é onde eles gravam as fitas que é um galpão gigantesco, a gente teve que fazer uma pesquisa enorme pra saber o que tinha e o que não tinha. Infelizmente algumas não tinha, tipo “Ovelha Negra”, “Agora só Falta Você”, “Coisas da Vida”, a gente não sabia onde essas fitas estavam, mas 90% das músicas eu tinha à minha disponibilidade, então uma vez que eu tinha essas fitas eu entrei em processo de digitalização. 

O processo demora muito, foram quase cinco meses pra digitalizar tudo, porque essas fitas são tão antigas que elas liberam um líquido corrosivo, então você não pode botar na máquina porque tem cabeçote que nem videocassete e suja, e as máquinas antigas não se fabricam mais. Então a gente teve que limpar tudo. Cada fita você cozinha por 12 horas pra evaporar… Enfim, cada fita demora de três a quatro dias pra digitalizar. Então só pra ouvir o que tem na fita demora de dois a três dias, então pra você botar uma fita em prioridade, ver se tem uma música que você quer, demorou. 

Uma vez que eu tinha uma lista de todas as músicas presentes, comecei a fazer a segunda parte que é uma lista geral de produtores que eu achava que poderiam participar. Sentei com meus pais e mostrei um pouco do trabalho deles, e em cima disso fui afunilando essa lista e comecei a fazer o téte-a-téte, que pra mim foi uma das partes mais legais, de sentar com cada um e perguntar se tinham uma música favorita e por que essa música era favorita. Pra mim era muito importante.”

E a lista de produtores? Outro ponto surpreendente no projeto. Não apenas pelo peso artístico, já que nele temos grandes nomes da produção nacional e internacional, mas também pela miscelânea de estilos de cada artista. De Vintage Culture e Dubdogz até Gui Boratto, Marky, Alex Justino, Morganna e Tropkillaz, de Axel Boman, Guti, Krystal Klear até Cobblestone Jazz. Entre esses estilos, os remixes passearam por uma variedade de sonoridades que vão do Disco ao House ao Techno, à Eletrônica, ao Tech House, ao Drum’n Bass e muito mais. Eu acredito ser praticamente impossível não encontrar algo que agrade os ouvidos, independente da sua vertente preferida. Nem se você não curtir música eletrônica! 

João Lee quis ser o mais democrático possível e viu o Classix Remix como se fossem palcos para um festival, desde o principal com grandes ticketsellers até as pistas mais alternativas, com sons mais sérios, experimentais e conceituais “Eu quero ter o cara do lado “B” tocando, eu quero ter o cara da Capslock tocando, quero ter o cara do D.EDGE tocando, quero ter o cara do Warung tocando, como eu quero ter o cara da Posh tocando, de sei lá onde tocando, porque essas músicas são felizes, são alegres, cada uma tem seu próprio estilo”, complementa.

Além de assinar o remix para Jardins da Babilônia, Lee também assina as três capas que acompanham os volumes da coletânea: “eu fiz algumas coisas à mão e alguns esboços de tinta, peguei várias referências de coisas que eu queria, não só de artistas, mas de quadros e texturas, e fiz um mix de tudo isso. (…) Foi um trabalho exaustivo, demorado demais. Cada capa demorei quase um dia inteiro fazendo e três meses pra fazer tudo”.

É claro que todo esse carinho, responsabilidade e respeito ao trabalho de Rita e Roberto também foi captado por cada um dos artistas que compõem o projeto. Em entrevista ao Alataj, o americano Harry Romero, que escolheu a faixa Mania de Você para remixar, afirmou que “é muito legal que João Lee tenha a visão de fazer um projeto eletrônico diferente. Tive que me familiarizar com a música dela e entender seu poder principalmente nos anos 70 e 80. Foi legal fazer parte disso e deixar o meu toque”.

+++ Alataj entrevista Harry Romero

Mary Olivetti, DJ, produtora e uma amiga de longa data de toda a família, remixou a faixa Cor de Rosa Choque e nos contou que sempre foi “Rosa Choque pela vida, uma menina delicada e feminina, porém somente até a página dois [risos]. A mensagem da música é atualíssima e se trata de uma bandeira que, mais do que nunca, hoje levanto: não nos provoquem, somos Cor de Rosa Choque, babe”. 

Ney Faustini, por sua vez, remixou a faixa Corre Corre. “A empolgação é inevitável quando vem o convite pra participar de um projeto que envolve artistas e ídolos da grandiosidade da Rita e do Roberto, além de um grande elenco de produtores. O João Lee já me avisou que seria um longo processo para recuperar todas as gravações originais, então eu confesso que a ficha só caiu de verdade quando ele me mandou a Multitrack da música. Escutar as guitarras solo, as linhas de baixo e o vocal da Rita em três vozes foi emocionante. A responsa com o projeto foi proporcional a honra e felicidade de fazer parte dele”, explica Ney.

Já o argentino Guti, em entrevista para o Alataj, disse: “Ohhh, Rita Lee e Roberto Carvalho fizeram a trilha de uma geração. Ela é inacreditável e ele é inacreditável. Estou muito feliz e honrado por fazer parte deste projeto. (…) João é um bom amigo que nos esforçamos para sempre fazer parte da vida um do outro e sou abençoado com essa amizade. Eu escolhi Mania de Você porque eu amo essa música. Tudo nela. A letra (falo português e a compreensão da letra me faz amá-la ainda mais) e claro, a voz dela!”.

Saí extasiada da minha conversa com João sobre toda a história do Classix Remix e ainda mais curiosa para ouvir o resultado. Eis que, quando dou play, aquela jovem que tem vivido períodos de conflito com sua criatividade e até mesmo com a música ressurge das cinzas like a Fenix! Sabendo que certas coisas a gente não consegue – nem quer – controlar, sorri, dancei e até me emocionei em alguns momentos. Acompanhando o trabalho da maioria dos artistas que compõem o time, consegui captar através de cada remix o respeito máximo que todos tiveram pelo trabalho de Rita Lee e Roberto de Carvalho e a capacidade de deixar um pouco de suas características sonoras, seu eu musical nesse projeto. A vontade era de chamar cada um para trazer suas impressões, comentários e sentimentos por participar desse projeto.

Mais do que isso, após toda a conversa e o deleite para os ouvidos, consigo imaginar a satisfação do filho e orgulho dos pais pela conclusão de um projeto tão cheio de sentimento. “Este é um presente de filho para pais que envolve sentimento, retribuição e emoção. Eu consigo entender a dedicação de cada etapa que João passou, eu também percorro esta trajetória em meu caminho. Nós, como filhos, temos o propósito de perpetuar a história de vida e legado de nossos pais e para isso não medimos esforços. João está de parabéns”, disse Mary Olivetti. Eu assino embaixo. 

Bom, se você entrou nesse material sem ter ouvido os três volumes do Classix Remix, dê o play agora. Se você já ouviu, eu também estou ordenando que escute tudo de novo, mas dessa vez com um gostinho muito mais sentimental e especial pelo projeto. Eu ouvi e reouvi. Aproveitei também para mergulhar mais uma vez na discografia de Rita, desde Os Mutantes, seus álbuns com a banda Tutti Frutti, o amor transbordante com Roberto, o acústico que ganhou um CD riscado aqui em casa de tanto tocar, o álbum dedicado aos Beatles, os shows ao vivo, até os anunciados últimos trabalhos de estúdio. 

E, como bem imaginei, se me embaralhei toda para começar a escrever, o final não poderia ser diferente, então ouso romper regras de novo e soltar alguns devaneios. Ritalee, Ritaqui, Rita e Roberto em qualquer lugar. Em tempos em que a palavra vírus nunca foi tão proferida, lembrar, através dessa bela homenagem, a música desse casalzão na porra, do vírus do amor que existe dentro de mim, foi um respiro profundo e necessário em meio ao caos e me deu mais energia para aguentar esse momento tão conturbado. 

A poesia, crítica, piada, auto-deboche e amor de Rita Lee, além da atitude tão autêntica, porra louca demais e fucking Rock’n Roll babe, precisam ser exaltados hoje e sempre, principalmente em um período de tantas mulheres-liquidificadores e homens-geladeiras, como Rita mesma diz. Nunca foi um bom exemplo, mas sempre gente boa. Mais macho que muito homem. Brincando de ser séria, mas levando a sério a brincadeira e, justamente por achar que não tinha nada para dizer, disse, e muito. Sim, você fez e faz muita gente feliz.

A música conecta.

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