Trazer uma contextualização sobre ANNA é quase que chover no molhado — se você acompanha a música eletrônica, é impossível não saber quem é essa grande DJ e produtora. Inserida no radar global há bons anos, ela se estabeleceu como uma referência do techno, já passou por alguns dos maiores labels, eventos e festivais do mercado musical e mais recentemente remixou o lendário Depeche Mode. Se fossemos falar sobre todos os marcos de ANNA o texto se estenderia por parágrafos e parágrafos e não à toa, mesmo em um mercado (e principalmente nicho musical) liderado por homens, ANNA está entre os titãs.
Em um papo que percorre o passado (motivo de curiosidade para muitos fãs), mas também aborda o presente e futuro — como sua preparação sendo a única artista a se apresentar nos três dias do Tomorrowland Brasil —, tivemos uma boa conversa com a artista. No papo, além da construção que gerou o fenômeno ANNA, Ana Lídia Miranda também dá as caras nos contando aspectos para muito além da vida profissional — uma entrevista realmente especial e que cai como uma luva em mais um extraordinário ano para ela.
Essa é, sem dúvidas, uma das entrevistas mais incríveis que já fiz e espero de coração que vocês curtam tanto quanto eu! Sem mais delongas, com vocês, ANNA:
Olá Ana, seja bem-vinda de volta ao Alataj! São cinco anos desde o seu último papo conosco e é gratificante receber você aqui novamente, sinta-se em casa! Acho que nada mais justo do que começarmos o papo falando sobre o início da carreira da ANNA — acredito que esse seja um ponto de curiosidade para muita gente. É muito potente a forma que você despertou para a profissão, principalmente porque você foi instigada pelo seu próprio pai, mas o que mais me surpreendeu foi a idade que você tinha quando tudo começou (apenas 14 anos). Como você entende esse ponto de ignição na construção da mulher sábia, segura e influente que você é?
Ana Lídia Miranda (ANNA): Oi, Isabela! É um prazer estar de volta! Pois é, comecei muito jovem mesmo, meu pai trabalhou como DJ desde que eu era muito pequena, então isso sempre fez parte da minha vida. Eu lembro que eu amava ajudar a preparar a discoteca para a noite de ano novo, passamos o dia todo enchendo bexiga, arrumando frutas e eu tinha por volta de 10 anos de idade. Nessa época também acompanhava meu pai toda semana nas idas a São Paulo para comprar discos, ele sempre voltava com dois cases cheios de discos novos, eram horas e horas ouvindo centenas de discos na Galeria do Rock em São Paulo, onde o DJ Marky era um dos vendedores, enfim muita história.
+++ Relembre nossa primeira entrevista com ANNA
Por volta dos meus 14 anos, meu pai e minha mãe me deixaram começar a frequentar o clube à noite. Nunca me passou pela cabeça ser DJ, mas com esse empurrão do meu pai eu descobri, aos 14 anos, um amor por essa profissão que durou até hoje. Acho que esse começo foi o que construiu essa base sólida que tenho, foi muito amor, muita dedicação, muita admiração pela profissão. Por muitos anos eu praticava quase 10 horas por dia, e quando não estava praticando mixagem eu estava pesquisando sobre música ou sonhando acordada com todas as possibilidades que poderia experimentar na minha carreira de DJ. E na época sinceramente meu maior objetivo era apenas ter dinheiro o suficiente para conseguir pagar o aluguel e poder viver da minha música. Sinto que eu entrei nessa atividade pelos motivos “corretos”: amor, admiração, e em uma época que ser DJ não era tão “cool” e isso me fez perseverar mesmo nos momentos mais difíceis e agora posso experimentar todas as coisas boas que minha música e todos esses anos de dedicação à minha arte, vem me proporcionando.
Como falamos, você era muito nova quando começou a tocar. Imagino que a sua adolescência tenha sido um momento muito pontual (e instigante) da sua vida. Quando você começou como DJ, imaginava que de fato trilharia o seu rumo profissional por esse caminho? E como foi o seu processo de desenvolvimento? Passar no vestibular, por exemplo, foi uma preocupação da jovem Ana?
Quando eu experimentei discotecar pela primeira vez eu me senti “em casa” eu realmente encontrei uma paixão, e eu sabia que isso era algo que eu me dedicaria por toda a vida, especialmente quando eu descobri a música eletrônica.
Mas realmente, 14 anos é o começo da adolescência, onde a gente já passa por tantas mudanças, e eu naquela época antes mesmo de sair do colegial já estava trabalhando como DJ. Não participei da minha formatura, por exemplo. Minha formatura da oitava série foi no mesmo dia da inauguração de um novo clube que meu tio e meu pai estavam abrindo. E eu tive que tocar então não pude estar presente para minha formatura. O que hoje em dia vejo como loucura, mas foi a minha trajetória.
Eu não fiz faculdade, nunca prestei vestibular, não achei necessário para o caminho que queria seguir. Mas fiz e até hoje faço cursos especializados para me ajudar na minha carreira, como cursos de produção, aulas de teoria musical, instrumentos…
Você é nascida e criada em Amparo, no interior de São Paulo, e apesar do contexto universitário movimentar a cidade, Amparo não tem uma cena alternativa estabelecida, correto? Como se deu o seu envolvimento com a música eletrônica underground especificamente?
Hoje em dia o interior de São Paulo tem vários núcleos e clubes onde podemos ouvir música underground de qualidade, mas quando comecei realmente tinha zero e meu pai sofreu por querer manter a visão que ele tinha e trazer os DJs e a música que ele gostava, que era a música eletrônica underground. Muitas vezes o clube estava vazio e a pressão para trazer algo mais comercial era forte, mas ele é teimoso e sempre manteve a música underground presente nos clubes que ele teve.
Quando comecei, o clube que eles tinham se chamava SIX, em Amparo, haviam ambientes diferentes e um deles era só de música eletrônica, a pista “TECHNO”, mas tocava de tudo: house, techno, drum’n’bass. Foi lá que descobri a música eletrônica. Minha maior referência no começo da carreira foi o DJ Marky, ele tocava bastante na Six. Meu pai descobriu a música eletrônica, indo para São Paulo semanalmente comprar discos na Galeria do Rock, lá ele conheceu DJs como DJ Marky, Ricardo Guedes, Patife, Cezar Peralta, Mau Mau e todos vinham tocar no clube, na Six em Amparo. Essa foi minha base, minhas referências quando comecei a tocar.
Tempo depois minha mãe me deu um computador com internet e aí o mundo da música realmente se abriu pra mim. Com 16, 17 anos comecei a ir para São Paulo, nos festivais, clubes e foi onde comecei a ter mais contato com a cena eletrônica do Brasil, ouvir os DJs nacionais e internacionais que tocaram no Love, Loca, Skol Beats, etc…
Ainda sobre seu background, você acredita que o fato de não estar cercada por influências constantes de uma cena já estabelecida foi favorável para que você criasse esse cosmos musical único, e de certa forma, “preservar” suas influências e características individuais?
Eu acredito que sim um pouco, até a maneira como aprendi mixagem, meu pai era DJ, mas nunca me ensinou nada, eu aprendi completamente sozinha no começo, desenvolvi minha técnica do zero, não sabia nem como colocar a agulha no toca disco, quando olhava para os discos não sabia o que era nome do artista, nome da musica, do selo… foi um aprendizado lento e por isso acredito que seja tão sólido e tenha durado tanto…
Minhas referências, no começo, vieram 100% de artistas nacionais, Renato Cohen, Mau Mau, Marky, Anderson Noise, Patife, como mencionei. Eu experimentei muitos estilos antes de realmente desenvolver uma identidade musical. Comecei tocando axé, música brasileira por 2 anos, então me achei na música eletrônica. Transitei por house, drum’n’bass, techno, tech house. Então sim, não ter tido tanta facilidade e acesso a cena, me fez ir mais profundo na minha busca, experimentar mais e isso fez com que eu desenvolvesse uma identidade musical, que eu acreditei mesmo quando foi questionada por donos de agência e etc… Me fez acreditar e entender o que eu realmente amo e porque eu faço música.
Conta pra gente um pouco mais sobre o club do seu pai, esse lugar tão específico na sua trajetória… do axé até a música eletrônica são quilometros e quilometros percorridos, não? [risos]
Eles tiveram vários clubes em Amparo e o mesmo clube mudou de nome várias vezes, mas o que eu comecei e onde tudo aconteceu, chamava Six. Era um clube para mais ou menos 2.000 pessoas e foi um marco na região. As pessoas viajavam de toda a região, inclusive vinham de São Paulo, que fica a 2 horas de Amparo, para frequentar a Six. Meu pai é muito criativo e fazia umas noites temáticas inesquecíveis. O clube tinha 7 ambientes, música nacional, música eletrônica underground, banda de blues, chill out. Realmente foi um marco, era muito muuuuuito bom.
Eu comecei tocando axé e música de bandas brasileiras, mas descobri a música eletrônica, vendo DJ Marky tocar na pista “Techno”, eu me lembro que eu pedia para alguém assumir a cabine pra eu ir ao banheiro e eu fugia para a pista de música eletrônica. Em um certo ponto eu comecei a tocar música eletrônica na pista de axé, e não deu muito certo [risos], foi aí que decidi parar e me dedicar 100% à música eletrônica.
Trazendo nosso papo para o presente, 2023 tem sido um ano e tanto! Seu belíssimo álbum, Intentions, foi lançado, agora, um remix para Depeche Mode! Como foi trabalhar com os stems de uma banda tão lendária e influente? Parabéns por mais esse marco!
Obrigada!! Realmente o álbum “Intentions” foi um presente. Esse álbum pra mim é um sinal de quando criamos por amor as portas se abrem e o impossível acontece! Nunca imaginei que esse projeto chegaria tão longe em tão pouco tempo. Desde as colaborações, o selo que foi lançado, o conceito… tudo aconteceu da maneira mais perfeita possível e o álbum nada mais é que minha comunhão com meu interior, com Deus, Universo, energia, cada um chama como quiser.
Trabalhar com Depeche Mode foi incrível, óbvio! Eu já tinha trabalhado com Martin Gore antes, fiz o remix para uma música solo dele, mas com Depeche Mode foi a primeira vez. E receber os stems, ouvir o vocal do Dave separado, ver como eles processam os elementos e como a mágica acontece, foi um presente.
Impossível falar sobre seu presente sem mencionar algumas apresentações recentes, como fechar o New Dance Order, do RiR e também seu retorno ao Coachella. Como é conduzir essas grandes multidões, Ana? Ainda rola aquele frio na barriga?
Olha, uma coisa que ainda me surpreende muito é que eu não fico nervosa antes dos meus shows, às vezes um pouco insegura, mas passa rápido. Mas eu me sinto tão “em casa” no palco, não importa se para 10.000 ou pra 100 pessoas, para mim é a mesma coisa. Algo que me marcou recentemente, é que eu estava experimentando uns meses de agitação e ansiedade durante o festival Sónar em Barcelona em 2022.
Naquela semana tive um ataque forte de ansiedade, não devido a minha apresentação, mas estava passando por um momento difícil. Um pouco antes da minha apresentação eu estava me sentindo inquieta e ansiosa, mas quando subi no palco minha ansiedade sumiu completamente e senti uma sensação de paz e acolhimento, até me emocionei. Então não, a verdade é que me sinto empolgada sempre e feliz por estar ali.
Você se apresentou na última edição do Tomorrowland no Brasil, em 2016, no palco do Diynamic e agora, sete anos depois, retorna como uma das principais atrações. Como você imagina que será esse momento tão esperado e encontro com o público?
Pois é, uma honra!! Muito bom ver um artista nacional sendo valorizado dessa maneira nesta grande volta do festival ao Brasil! Fui convidada para tocar os 3 dias… serão 3 palcos diferentes, 3 sets completamente diferentes, estou mais do que empolgada! E poder estar lá presente e sentindo a energia dos 3 dias vai ser muito legal. O festival deu sold out mundial 3 horas. Imagina a energia que vai ser isso!
Algumas edições na Bélgica, lar do festival, também estão no seu currículo, mas como você interpreta o retorno do festival ao Brasil? “Jogar em casa”, nesse caso, é muito diferente?
Imagino que depois da Bélgica o país que mais ama o festival Tomorrowland é o Brasil, eu sempre vejo muito brasileiros nas edições que acontecem na Bélgica, então ver o festival voltando a acontecer no Brasil é muito legal, as pessoas esperavam muito por isso, eu imagino, pois o custo de viajar para Bélgica pra poder curtir o festival é inviável pra muita gente.
Tocar em casa é sempre bom, sempre recebo muitas mensagens de brasileiros dizendo do orgulho de ver representando o Brasil pelo mundo afora. Então voltar para tocar em casa é uma celebração!
Você é a única artista que vai tocar nos três dias de festival. Como é a preparação para uma sequência de apresentações seguidas assim em um único evento?
Eu vou tocar em três palcos diferentes, minha música é bem dinâmica, eu navego desde um som mais melódico e groove, até um techno mais energético e rápido, então esse convite é perfeito, pois vou poder me expressar de maneiras bem diferentes nos 3 dias.
A preparação para os shows é um trabalho diário, muitas horas no estúdio durante a semana, produzindo música novas, muitas horas de pesquisa musical, prática diária de algum instrumento. É um aperfeiçoamento diário e dedicação à minha arte. Então no dia dos shows é mais sentir a energia de onde vou tocar, sentir a energia do público e deixar acontecer naturalmente, eu não preparei um setlist, eu prefiro deixar espaço pra mágica acontecer ao vivo. Se eu preparo algo e fico presa, sinto que muito da mágica se perde.
Eu pesquei sinais de que você e o Tomorrowland ainda tem mais uma surpresa para o público e não posso perder a oportunidade de confirmar: é verdade? Rola algum spoiler? [risos]
Hahahaha. Sim, teremos mais surpresas, mas não posso contar ainda infelizmente!
+++ Relembre 7 músicas que reforçam o sucesso de ANNA
Claramente você é uma pessoa que não vive na superficialidade e isso é perceptível nos detalhes — seja usando seu trabalho como uma ferramenta de expressão (todo o processo de lançamento de Intentions, do minidoc ao encarte que acompanha o vinil evidencia isso) ou até mesmo na sua relação com os fãs (pelo que eu observei, você até reconhece seus fãs assíduos). Se jogar de cabeça e viver a vida em um contexto de conexões reais e dimensões profundas sempre foi um traço forte em você?
Eu sinto as coisas muito fortemente, sou muito emotiva, tenho respeito e reverência por tudo que vejo, isso desde criança e se intensificou muito com o meu processo de busca interior. Então a maneira como realizo o meu trabalho, a maneira como me comunico com os fãs ou com qualquer ser humano é um espelho desse estado interior, não poderia ser diferente.
Encerrando essa entrevista e o retorno muito esperado por nós, cinco anos depois, te fazemos novamente nossa pergunta clássica: o que a música representa na sua vida? Muitíssimo obrigada, Ana! Você é sempre bem-vinda <3
A música sempre foi minha maneira de me expressar, é como transmito o meu amor por tudo e por todos, é a minha conexão com meu interior, com minha alma! Enfim, a música é TUDO!!!!
Obrigada pelo espaço, foi um prazer!!!
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A música conecta.