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A música conecta

Alataj entrevista Joyce Muniz

Por Lau Ferreira em Entrevistas 21.05.2021

Ela é brasileira, mas mudou para Viena, capital da Áustria, aos 12 anos, o que lhe deu a oportunidade de se criar em meio a uma super efervescente cena eletrônica nos anos 90. A paixão pela música não demorou a aflorar, e assim, aos poucos, com seu talento para cantar, foi se construindo um caminho natural entre discotecagem, voz e, um pouco mais tarde, produção musical.

Hoje, Joyce Muniz é um nome aclamadíssimo na cena House/Techno da Europa, onde se reveza morando entre Viena e Berlim. No Brasil, que sempre curtiu visitar, não chega a ser tão conhecida, embora seu nome dificilmente seja estranho para qualquer fã do underground.

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Agora, em sua segunda entrevista ao Alataj, Joyce fala sobre suas origens, compara as cenas brasileira e europeia, relembra suas músicas e parcerias mais notáveis (com direito a bênção do Kraftwerk e amizade com ANNA) e conta como está sendo sua vida em meio à pandemia.

Alataj: Joyce, difícil não começar falando do seu passado, afinal, sua mudança para uma Viena, que vinha vivendo uma efervescência gigante em termos de cena eletrônica, provavelmente moldou quem você é hoje. Como você imagina que teria sido sua vida e carreira se tivesse ficado no Brasil? E o que levou sua família a fazer essa mudança?

Joyce Muniz: Quando meus pais se mudaram em 1995, Viena já tinha um nome forte na cena eletrônica através de artistas como Kruder & Dorfmeister, Patrick Pulsinger e muitos outros artistas e selos maravilhosos. Na época eu tinha apenas 12 anos, e ainda não  me interessava por música eletrônica — mas ela estava muito presente e eu não precisei de muito tempo para entrar na onda. Aos meus 16 anos eu comecei a colecionar vinil e logo depois eu ganhei uma residência no clube Flex, que me ajudou muito a crescer como artista. 

Meus pais se mudaram para Áustria por motivo de segurança e ares novos, pois já tínhamos família no país e naquela época, com o novo Plano Real, muitas coisas estavam difíceis. Até hoje eu acho que foi a decisão certa. Eu acho que provavelmente eu não teria seguido esse caminho se tivéssemos ficado. O acesso à música eletrônica era bem mais fácil do que no Brasil, apesar de que já existiam clubes underground que tocavam música eletrônica em São Paulo. Mas não era um estilo de música que você ouvia em qualquer lugar.

E hoje, como é morar na Áustria? Como a cena evoluiu nessas duas décadas e meia? Você também passa parte do seu tempo em Berlim, certo?

Eu amo morar em Viena. Apesar de ser uma metrópole pequena, tem uma cena cultural bem forte, não só para música eletrônica, mas também para arte. Mesmo sendo uma cidade pequena, você consegue achar festas, artistas de todas as tribos. É bem interessante, pois todo mundo se conhece e se respeita, mesmo tocando estilos diferentes. Hoje tem muito mais clubes do que antigamente. 

Mesmo amando Viena, chegou uma época na minha vida em que eu precisava de mais conexões, e óbvio, falando alemão e com todos meus contatos, eu resolvi dividir minha moradia em Berlim — para onde venho desde 2002. Meu management e muitos dos selos em que lancei residem aqui.

Foi muito importante esse passo para minha carreira, apesar de nunca ter ido morar (integralmente) em Berlim. Mas ela mudou muito de 2009 pra cá, virou muito mais internacional. Hoje em dia, você não tem só o Techno, mas também muitos outros estilos que vieram através de artistas internacionais, que chegaram para começar uma cena nova e fortaleceram muito a imagem da cidade. Hoje, Berlim com certeza é a capital da música eletrônica, não só pelos artistas, mas também por selos e companhias como Beatport, Natives Instruments, Pioneer, Denon, Akai e muitas outras que têm seus escritórios aqui.

E o Brasil? Você chegou a se tornar uma visita constante na sua terra natal? Você se considera uma representante brasileira ou é mais assimilada com a Áustria? 

Sim, eu adoro estar no Brasil, não por ter família, mas por trabalho. Através da música eletrônica eu tenho uma ligação muito mais forte com o país do que antigamente. Minhas raízes são brasileiras, e isso nunca vou negar. Eu comecei minha carreira como DJ/produtora na Áustria. Posso falar que represento os dois países. É o que eu sinto.

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Como observador e também entrevistador de vários DJs brasileiros que moram fora, a impressão que fica é que, por mais que a cena no Brasil tenha se desenvolvido demais nos últimos dez anos, ainda é um país de ondas. Mainstream é muito o som do momento, underground só se fala em duas ou três vertentes de House e Techno. Você concorda que na Europa e outros países, o cardápio costuma ser maior?

Realmente, os clubes e festivais grandes no Brasil têm line ups muito mais ligados ao mainstream da música eletrônica. Mesmo assim, eu acho que hoje em dia tem muitos novos coletivos que estão desenvolvendo um trabalho muito legal na cena underground. Existe até uma cena queer de eletrônico aí que está chamando bastante a atenção na Europa. Isso eu acho importante. 

Apesar de a população brasileira ser grande, a música eletrônica ainda não é tão ouvida como aqui. E quando é tocada nas rádios é sempre bem comercial. Obviamente que (na Europa) o cardápio é bem maior, pois o histórico é bem mais longo. A grande diferença é que muitos representantes vivem aqui e já estão nessa linha há décadas. Por isso, existem muito mais estilos como Electro, Indie Dance, Acid, Minimal, que apesar de não serem mainstream, nunca morrem, pois a cena vive através dos artistas e selos que nunca param de promovê-los.

Assim como muitos dos anos 90, você começou tocando Drum’n’Bass. Quando e o que levou você para a House? E como foi que você estabeleceu a sua identidade sonora?

Bem, quando eu me tornei residente no Flex, eu tinha que tocar todos estilos dependendo do headliner da noite. Na época, meu predileto era realmente o Drum’n’Bass. Tendo essa oportunidade, eu aprendi a gostar de vários outros, como House, Techno, Electro, Breakbeat. Isso abriu meu horizonte musical, que até hoje me ajuda muito nas minhas produções. No início da minha carreira, eu só tocava e às vezes fazia MC. Meus primeiros lançamentos, em 2003, foram na maioria colaborações como vocalista. 

Ao passar do tempo trabalhando com vários produtores como Stereotyp, Wolfgang Schlögl, Shanti Roots e Dorfmeister, eu senti a vontade de me dedicar nas minhas próprias produções. Eu tive ótimos professores que me ajudaram muito, e na época eu tinha 22 e já estava mais na pegada House. Foi o estilo que bateu no meu coração como produtora porque é muito universal. Você consegue trazer várias influências, independentemente se é Deep, Soul, Jazz, Tech, Electro ou Acid; é sempre House.    

Virar uma DJ e produtora de sucesso permitiu que você trabalhasse com vários artistas gigantes. Você inclusive recebeu bênção do Ralf Hütter para lançar música com sample do Kraftwerk. Quem são os artistas mais foda com quem você já colaborou? E quem falta na sua lista?

Ter tido a chance de usar um sample oficial do Kraftwerk, que pra mim são os pais da música eletrônica, foi muito gratificante. Além de tudo, ter gravando o vocal de um dos rappers (MC Bam) de uma banda de Hip Hop foda dos anos 90, Jungle Brothers, já diz como esse projeto é e foi importante pra mim. Back In The Days foi um lançamento muito importante pra minha carreira, e isso ajudou muito a me estabelecer como produtora mulher na cena. Eu sou feliz por isso e por ter ganhado esse respeito diretamente deles.

Também sou muito grata de ter trabalhado com Paul Simon (do Simon & Garfunkel) ou Stereo MCs, que são artistas muito especiais — são nomes que quem não conhece, vai lembrar só de ouvir. Ter remixado minha amiga Maya Jane Coles, Steve Bug e Claptone foram projetos que eu amei ter feito. Uma das últimas colaborações que marcou pra mim foi ter remixado a fabulosa Bebel Gilberto, que é umas das artistas brasileiras que eu sempre amei e respeitei muito. Nos conhecemos há alguns anos na Sicília, quando eu estava tocando por lá, através de um amigo em comum, e ficamos amigas. 

Quando ela recebeu a nomeação do Grammy para o álbum Agora, ela logo me ligou: “Joyce você topa de fazer um remix pra mim?”; topei na hora. Ela me deu toda a liberdade de escolher a música que eu queria. Eu escolhi Deixa. Foi especial pelo fato de ter sido a primeira produtora a remixar umas das faixas do seu álbum novo, e também ter conseguido fazer um remix totalmente chegado à original. É o remix mais lento que já fiz, 87 BPM. A Bebel amou e a minha mãe também 😉 

Existem vários artistas com que eu adoraria trabalhar: Massive Attack, Björk ou Beth Gibbsons, vocalista da banda Portishead. Uma colaboração com a maravilhosa Róisín Murphy (Moloko) também cairia bem. Na verdade, a lista é bem grande.

Um nome que tem uma trajetória similar a sua é ANNA, que saiu cedo do Brasil e virou estrela do Techno na Europa. Vocês inclusive são amigas, não é mesmo? Alguma dica para artistas brasileiros que queiram seguir um roteiro parecido ao que vocês seguiram?

Eu conheci a querida ANNA alguns anos antes de ela se mudar para a Europa. Ela já estava lançando músicas em selo internacionais. Apesar de nós não estarmos na mesma cena, nós sempre ficamos em contato. Em 2016, ela fez um remix de Cover Me Up, um dos singles do meu primeiro álbum, Made in Vienna. A gente sempre se encontrava quando ela tocava em Viena. 

Eu estou super feliz pelas conquistas dela, pois eu sei que não foi fácil. Ela tem o seu próprio estilo, e isso é uma das coisas mais importantes para um artista independente — morando na Europa ou não. Tem vários colegas e amigos brasileiros que vivem aqui e conseguiram se destacar, como TERR, Victor Ruiz, Wehbba e muitos outros. Eu acho isso muito legal porque mostra que se você tem sua própria identidade, tudo é possível. 

Como Joyce Muniz tem lidado com esse período difícil de pandemia que estamos vivendo? Você vê algo positivo a se tirar desse duro momento?

No começo foi bem estranho, mas eu acho que foi para todo mundo. Logo que começou a pandemia, eu decidi fazer um curso na faculdade. Apesar de trabalhar por muitos anos nas rádios FM4 e Rinse FM (UK), eu nunca estudei para ser apresentadora, pois com a vida que eu levava, sempre viajando, não tinha como. Já estou no segundo semestre e eu estou adorando. 

O lockdown também me deu a chance de dar um start para produzir o meu segundo álbum. Tive bastante tempo para trabalhar no estúdio e estar com a minha família. Eu tento fazer coisas positivas na medida do possível. Tem dia que você esquece, tem dia que você lembra e só quer entrar em um avião e viajar. 

Eu realmente não vejo a hora de poder ir ao Brasil e poder estar com meus amigos. Espero que em 2022 possamos estar todos juntos de novo. Até lá, é ser forte, tentar buscar novos interesses e dar continuidade às coisas que já começamos.

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