O duo Slam dispensa apresentações. Pioneiros, com mais de três décadas de trajetória, à frente de iniciativas lendárias como a fundação da Soma Records e da emblemática festa Maximum Pressure, em Glasgow. Stuart McMillan e Orde Meikle mantêm a sua posição de vanguarda, moldando e redefinindo a cena, se conectando com as mudanças de cada nova geração, ao passo em que mantém fidelidade à sua essência.
Sete anos após o lançamento de seu último álbum, o duo retorna com Dark Channel, um disco que é uma reafirmação da importância da pista de como espaço de conexão, instinto e catarse — em uma época de polarização, desinformação e caos coletivo, a música serve como um convite à presença, não como alternativa de fuga. O resultado é um Techno afiado, sem adornos, projetado para cutucar a percepção e trazer a urgência do agora para o centro da pista.
Nesta que é a nossa segunda entrevista com eles (relembre a primeira aqui), conversamos com o duo sobre o novo trabalho, sua percepção sobre a cena contemporânea, processo criativo e a forma como o Slam mantém sua singularidade, mesmo em um mercado saturado de efemeridades. Confira a entrevista completa:
Olá! Agradecemos por, mais uma vez, se disponibilizarem a conversar com a gente. É sempre muito interessante observar a visão de vocês sobre a cena como um todo. Vamos começar falando sobre seu novo lançamento, Dark Channel, que é o primeiro álbum de vocês em sete anos. Ele nasceu de um Slam que busca olhar para as origens do Techno ou de um Slam que está respondendo aos acontecimentos do presente?
Foi, de fato, um pouco dos dois. Embora não estivéssemos tentando retornar às raízes do Techno de forma nostálgica, certamente fomos atraídos pela ideia de trabalhar dentro de limitações criativas — reduzindo tudo à forma mais crua e vendo o que surgiria a partir disso. Essa sensação de limitação acabou se tornando uma espécie de estrutura para experimentação, que é como a maioria dos nossos projetos começa hoje em dia. Exploramos diferentes processos e ideias e, se algo ressoa com a gente, desenvolvemos mais a fundo e, eventualmente, lançamos.
Com Dark Channel, nossa intenção era criar um corpo de trabalho completamente dedicado ao espaço sagrado da pista de dança. Curiosamente, nunca havíamos adotado essa abordagem em um álbum antes. Sentimos que era o momento certo. No cenário atual, em que grande parte do mundo parece fragmentado e dividido, a pista de dança continua sendo um dos poucos espaços onde pessoas de todas as origens se reúnem. É uma forma rara de experiência coletiva, e esse tipo de união parece mais importante do que nunca — é algo que queríamos honrar e amplificar através da música deste disco.
O álbum foi composto em três semanas e foi desenvolvido com um live setup, incluindo synths modulares, um Roland 909, Ableton… Este processo criativo concentrado em tão pouco tempo foi algo planejado ou foi um tempo de desenvolvimento natural?
Aconteceu de forma bastante natural. Pela nossa experiência, o fluxo criativo muitas vezes resiste a planejamentos rígidos – e isso vale não só para a música, mas para qualquer forma de arte. Às vezes, o trabalho mais honesto e envolvente surge justamente quando você permite que o processo se desenrole organicamente, sem superanalisar cada detalhe. E foi exatamente esse o caso com Dark Channel.
Olhando para os nossos álbuns anteriores, os que mais ressoam com a gente – tanto em termos de sensação, quanto de sonoridade – geralmente foram criados de forma rápida, quase instintiva. Existe algo muito potente em trabalhar nesse ritmo, deixando a intuição conduzir o processo, em vez de se prender a deliberações intermináveis.
Com esse disco, tudo simplesmente pareceu se encaixar. O uso do nosso setup ao vivo, mais enxuto, definitivamente nos deu uma maneira mais fluida e prática de trabalhar, o que reforçou essa sensação de imediatismo. Não houve uma luta real, nem aquele processo prolongado de ficar duvidando de cada escolha. E essa energia, essa espontaneidade, está profundamente presente no som final do álbum. Dito isso, a parte mais trabalhosa veio nas etapas finais da produção, quando começamos a focar de fato na sonoridade geral. Ter ideias é a parte divertida, produzir a música exige bem mais foco.
Dark Channel possui uma clara diferença com um de seus últimos lançamentos, Athenæum 101, que carrega sons mais experimentais. Esse contraste reflete momentos distintos de vocês como artistas ou são apenas facetas diferentes de uma mesma narrativa que vocês vêm desenvolvendo durante todos esses anos?
Como mencionado anteriormente, essa foi uma decisão consciente: queríamos fazer um LP que soasse como nossos DJ sets. Nunca havíamos feito um álbum composto apenas por faixas voltadas diretamente para a pista de dança. Então, isso se tornou um desafio! Queríamos que ele se encaixasse no conceito inicial – que veio antes mesmo da música – e isso por si só já era algo inédito pra gente, o que tornava o processo ainda mais atraente. Criativamente, no passado, sempre gostamos da vibe de improvisar com nosso equipamento ao vivo, e embora Dark Channel não seja um álbum ao vivo, ele soa como algo que poderíamos tocar num live ou num set.
Nossos álbuns anteriores sempre foram mais variados em estilos e atmosferas. Dark Channel também é, de certo modo, uma provocação ao encolhimento coletivo da atenção das pessoas. À primeira vista, esse conceito pode não soar tão empolgante do ponto de vista criativo, mas ao optar por não incluir outros elementos considerados “esperados”, somos forçados a contar uma história por meio de diferentes sensações dentro de um mesmo recorte. O que percebemos é que, ao restringir o foco estilístico de um projeto – em vez de tentar cobrir todos os tons emocionais e musicais possíveis -, acabamos criando algo que nos parece mais coeso e satisfatório. Embora ainda gostemos muito da diversidade de tom e estrutura dos trabalhos anteriores, existe algo especialmente gratificante em se comprometer totalmente com uma estética de cada vez. Isso nos faz gostar mais do resultado final. Aliás, por esse motivo, Dark Channel e Athenæum 101 são, até agora, nossos álbuns preferidos – os mais coesos.
A capa do álbum é realmente intrigante: blocos de concreto inspirados no Brutalismo, a impressão de uma atmosfera opressiva e ao mesmo tempo solene, que lembram paisagens de filmes como Blade Runner ou Duna. Há também as figuras encapuzadas, que lembram até um pouco do expressionismo alemão. É a visualização da distopia que vocês comentam observar no cenário atual?
Que bom que você percebeu essas referências — o Brutalismo, com certeza, mas reimaginado sob uma ótica mais linear e angular. A arquitetura sempre nos fascinou, especialmente os extremos do modernismo. Existe um paralelo com a forma como abordamos o Techno: trata-se de precisão e intenção, algo funcional, mas expressivo — sem pender demais nem para o excesso, nem para o minimalismo.
Blade Runner sempre foi um dos nossos filmes favoritos. Há algo de fascinante no modo como visões passadas do futuro muitas vezes dizem mais sobre a época em que foram criadas do que sobre o que viria depois. Nesse sentido, essa arte talvez seja a nossa própria visão de futuro — não exatamente distópica, mas um tipo de “pós-utopia”. Um otimismo especulativo enraizado nas ruínas.
A capa transmite um mundo moldado pelo colapso, mas não desprovido de esperança. As figuras encapuzadas representam os últimos guardiões da compaixão humana, posicionados no limiar de um novo começo. Um mundo pós-fronteiras, pós-conflito. No rastro dos nossos fracassos, são elas que estão prontas para reconstruir o que vem depois.

Atualmente, em um cenário tão saturado e hiperconectado, vocês sentem que a potência da cultura clubber está se apagando ou ainda pode reacender da mesma forma que conhecemos ou até de maneira mais evoluída?
A economia, sem dúvida, desempenha um papel importante na configuração atual da cultura clubber. O que estamos presenciando é uma tendência mais ampla: a sanitização e comercialização de praticamente todas as plataformas artísticas em escala global. Isso muitas vezes dilui a necessidade ou o desejo por uma verdadeira individualidade; muitos parecem satisfeitos em se conformar com a narrativa cultural dominante. O crescimento de megafestivais e plataformas comerciais como o Spotify são exemplos disso – prosperam com a homogeneização comercial, muitas vezes às custas de artistas que são únicos e criativos.
Dito isso, nem todos estão dispostos a seguir essa lógica dominante. Ainda existem focos de resistência natural – artistas e comunidades que rejeitam a agenda mais populista e se movem por uma vontade genuína de cultivar algo novo e interessante. São justamente esses espaços que frequentemente geram a maior parte da criatividade. A própria saturação do cenário cria uma espécie de panela de pressão para a inovação.
As redes sociais representam um paradoxo curioso. Embora muitas vezes sejam celebradas como ferramentas igualitárias, que dão voz a todos, sua escala gigantesca e os algoritmos envolvidos podem dificultar a visibilidade de expressões autênticas e individuais. De certa forma, a mídia tradicional – apesar do conhecido papel de “porteira” – tinha um histórico melhor de inserir formas de arte mais esotéricas ou experimentais na conversa cultural mais ampla.
Hoje em dia, às vezes parece haver mais aspirantes a DJs e artistas do que pessoas que simplesmente querem se perder na pista de dança. Mas esse desequilíbrio pode, na verdade, ser o gatilho para uma nova evolução. A cultura clubber não está morta — está em transformação. E sua próxima fase provavelmente virá das margens, de quem ainda tem fome de algo mais autêntico.
Nos últimos anos, o Techno parece ter entrado em um ritmo mais acelerado, seja nos BPMs ou nas performances. Como vocês enxergam esse fenômeno do Hard Techno comercial, que vem ganhando pistas e redes, especialmente entre o público mais jovem?
Para nós, essa onda emergente do Hard Techno comercial soa um tanto estranha. É um som hiperestilizado, avassalador, que toma emprestado muitos elementos do pop e do EDM – referências que, tradicionalmente, estiveram ausentes e, em muitos sentidos, são incompatíveis com a essência do Techno. Falta groove, falta balanço, falta sutileza – características que, para nós, definem o gênero. No fim das contas, isso tudo se aproxima mais do Gabber do que daquilo que consideramos ser o verdadeiro Techno. Nunca fomos atraídos pelo Gabber, por isso não encontramos muita conexão com essa tendência atual. Em vez de partir para críticas cegas, preferimos deixar que isso exista por conta própria, enquanto seguimos fiéis ao nosso caminho.
Na nossa visão, o Techno sempre funcionou melhor à margem – nunca foi feito para o palco principal, e estamos muito confortáveis com isso. Vimos alguns DJs expressando frustração com essa guinada nas redes sociais, mas achamos isso contraproducente. A última coisa que um jovem de 22 anos quer é ouvir alguém mais velho dizendo publicamente que a música dele é ruim — mesmo que, pessoalmente, a gente ache que falta substância. Não sentimos necessidade de “policiar” nada; preferimos focar no que amamos e deixar o resto seguir seu curso. Até porque, com o tempo, ninguém diz que Hair Metal é melhor que Jimi Hendrix ou que Green Day supera o Clash. O tempo mostra. A moda passa, o estilo permanece.
Agora, falando de um panorama geral, a Soma Records já lançou mais de 600 trabalhos e continua sendo um selo de referência na música eletrônica. Que tipo de abordagem técnica ou estética mais chama a atenção de vocês hoje ao avaliar demos ou projetos para a Soma?
Muitas vezes é difícil definir exatamente o que nos atrai em uma faixa, já que a curadoria musical para a Soma sempre foi um processo altamente intuitivo. Como DJs antes de tudo, naturalmente somos atraídos por músicas que complementam e elevam nossos sets. Dito isso, estamos constantemente em busca de obras que soem inovadoras – músicas que ultrapassem limites e tragam uma voz distinta.
O que faz uma faixa se destacar para nós é sua capacidade de surpreender, mesmo funcionando dentro do contexto mais amplo de um set. Isso pode ir desde peças ambientes profundas e introspectivas até faixas para o peak time, já que gostamos de explorar todo o espectro que os long sets e noturnos permitem. A versatilidade de uma música – seu impacto emocional, sua textura sonora e sua habilidade de provocar sem perder a funcionalidade na pista – é o que geralmente capta nossa atenção.
Ao longo dos anos, vocês assinaram remixes para diversas faixas e artistas, como Planetary Assault Systems, Clouds, Dax J e Damon Wild. Existe alguma faixa que vocês gostariam de ter remixado ou algum artista com quem gostariam de ter trabalhado e ainda não aconteceu?
Definitivamente existem faixas em que não faríamos mudanças – algumas obras são simplesmente tão icônicas que um remix não acrescentaria nada de realmente significativo. Dito isso, muitas vezes retrabalhamos faixas antigas para os nossos próprios sets, não necessariamente para melhorá-las, mas para adaptá-las levemente, ajustando a sonoridade e o arranjo para que se encaixem melhor ao lado de produções contemporâneas, sempre preservando a essência que as tornou especiais em primeiro lugar.
Quanto às colaborações dos sonhos, Kraftwerk sempre foi uma influência fundamental para nós – um modelo de música eletrônica moderna em sua forma mais pura. Estar no estúdio com eles seria uma experiência incrível, embora, honestamente, não saibamos o que poderíamos acrescentar ao trabalho deles. Provavelmente seria algo bastante intimidador – uma verdadeira síndrome do impostor. Também somos grandes admiradores do Suicide, de Alan Vega, especialmente pela maneira crua e intransigente com que fundiram eletrônica primitiva com a energia do proto-punk – algo que ainda hoje soa ousado e inovador.
Ambos também seguimos apaixonados pelo dub jamaicano dos anos 1970. Ter acesso às fitas master originais e reinterpretá-las de maneira moderna, com respeito e criatividade, seria um projeto dos sonhos – adoramos a entrega autoindulgente daquelas gravações. Elas eram interpretações mais esotéricas da faixa original – por isso as chamavam de “versions”. Nesse sentido, são protótipos de remixes, talvez mais próximos do que entendemos hoje como remix. O dub pode ser considerado o primeiro gênero a usar o estúdio como um instrumento completo.
Por fim, como fundadores de eventos como o Riverside Festival, como vocês avaliam a troca cultural entre a cena Techno de Glasgow e o restante da cena britânica? Existe uma influência mútua que vocês veem se intensificando ao longo dos anos?
Não há muita correlação entre o que acontece em Glasgow e o restante do Reino Unido. A cena Techno de Glasgow se desenvolveu, em grande parte, seguindo sua própria trajetória. A cidade sempre foi vista como um verdadeiro baluarte do Techno, com uma longa história em que o gênero ocupa o centro das atenções, não como algo periférico dentro da música eletrônica. À medida que o Techno se tornou mais mainstream em outras regiões, vimos um aumento da presença do gênero em line-ups de grandes palcos em outras cidades do Reino Unido.
