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A música conecta

Depeche Mode: moldando arte e memória através dos sentimentos

Por Elena Beatriz em Storytelling 27.06.2025

É muito provável que o Depeche Mode tenha sido, para muita gente, a porta de entrada para a música eletrônica. Antes mesmo de saber o que era um sintetizador, de ouvir falar em Kraftwerk ou entender que uma música poderia ser produzida quase inteiramente sem a presença de instrumentos orgânicos, muitos já haviam dançado ao som de faixas como Enjoy The Silence ou Strangelove, que tocavam sem parar nas rádios e embalavam tanto as pistas mais alternativas quanto às festas mais populares. Todavia, a importância do Depeche Mode vai muito além dos seus maiores hits. A trajetória da banda também se entrelaça com o avanço do alcance da música eletrônica, que passou a ocupar o centro da cultura popular. Uma verdadeira amálgama entre o underground e o mainstream. 

Se o caminho da música eletrônica até atingir as grandes massas fosse representado por um jogo, Depeche Mode definitivamente seria um importante checkpoint: o progresso está salvo. Não há mais como retroceder. 

Depeche Mode foi fundado em Essex, em meio a um Reino Unido assolado pelo desemprego, greves, uma recessão econômica e pela efervescência do pós-punk, o pano de fundo ideal para o levantamento de alguma forma de insurreição, mesmo que através da arte. O mais interessante é que a banda atingiu grandes feitos sem abrir mão de sua estética sombria e até mesmo melancólica, sua postura outsider e uma sonoridade que parecia vir do futuro, que ia na contramão da aura colorida que pairava sobre as produções artísticas dos anos 80. Talvez seja por isso mesmo. Essa carga subversiva, atrelada à potência emocional, gerou identificação e trouxe o ouvinte para ainda mais perto de suas próprias divergências internas e de um lado humano menos exposto na indústria musical até então. 

Diante desta menção à um projeto tão potente para o desenvolvimento da história do que é consumido até hoje, em diversas esferas artísticas, especialmente no circuito que engloba a cultura clubber, nada mais justo do que aprofundar o conhecimento sobre a sua trajetória.

Em meados dos anos 70, dois amigos de escola, Vince Clarke e Andy Fletcher, resolveram montar seu primeiro projeto musical: o No Romance in China. A banda não durou muito, mas Clarke seguiu envolvido com outras criações. Alguns anos depois, mais precisamente em 1980, Clarke fundou a banda Compositions of Sound, que priorizava o uso de sintetizadores em suas produções, seguindo os passos de artistas e bandas como Orchestral Manoeuvres in The Dark e Fad Gadget.

A formação inicial da Compositions era composta por Fletcher, Clarke e Martin Gore. Pouco tempo depois, Dave Gahan foi convidado a participar do grupo, após Vince Clark ter ouvido ele cantar uma versão de Heroes, de David Bowie, em uma jam session. Logo após a entrada de Gahan, que trouxe ainda mais personalidade à banda, levando em consideração suas ideias e sua postura carismática, o grupo ganhou uma nova nominação: Depeche Mode. O nome, sugerido por Gahan, veio de uma revista francesa de moda, Dépêche‑Mode que, em uma tradução mais informal, pode significar “a última moda”. Essa escolha não poderia soar melhor em relação ao legado que ficaria marcado pela produção artística e movimento que o grupo iria impulsionar. 

Em 1980, duas fitas demo foram gravadas — uma antes da entrada de Gahan e outra já com a sua participação. A segunda demo contava com três faixas: Ice Machine, uma faixa synthpop composta por Vince Clarke, que foi lançada como lado B de Dreaming of Me e já mostrava o estilo eletrônico melódico do Depeche Mode; Radio News, que nunca chegou a ser lançada, mas revela influências de Fad Gadget e OMD, refletindo a fase experimental da banda no início dos anos 80, e Photographic, que se tornou a primeira faixa lançada do grupo.

Em 1981, Depeche Mode lançou Photographic na coletânea Some Bizarre Album, do selo Some Bizarre Records, fundado por Stephen John Pearce. A coletânea contava com nomes como Soft Cell e The The.

A sonoridade do grupo começou a repercutir, o que fez com que eles começassem a ganhar notoriedade no meio artístico e não demorou muito para que assinassem com a sua primeira gravadora, a Mute Records. Por lá eles lançaram alguns singles como New Life, que catapultou a banda para o top 10 das paradas britânicas e, naturalmente, o direcionou para o lançamento de seu primeiro álbum, o Speak and Spell, com a assinatura pop e sintética que marcaria o início da trajetória do grupo. O sucesso do álbum, que trouxe ao mundo a lendária Just Can’t Get Enough, acabou se alastrando e não agradou as convicções de Vince Clarke, que passou a não se sentir confortável com a esfera pop para a qual o grupo estava caminhando. Foi assim que, após o lançamento do primeiro álbum, Clarke deixou o Depeche Mode e passou a dedicar-se a outros projetos, como o Yazoo e, posteriormente, o Erasure, ambos importantes na consolidação do Synthpop britânico.

A saída de Clarke marcou uma virada na identidade sonora da banda, já que Martin Gore assumiu o posto de compositor principal das faixas do grupo. Em 1982, o Depeche Mode lançou o single See You, que obteve boa recepção da crítica, e impulsionou o lançamento de outros dois singles: The Meaning of Love e Leave in Silence. O sucesso que estava envolvendo a banda resultou em sua primeira turnê mundial, a See You Tour e, consequentemente, no lançamento de seu segundo álbum, A Broken Frame, em 1982.

Durante as gravações do segundo álbum, o tecladista Alan Wilder foi incorporado à formação da banda, embora só tenha contribuído diretamente a partir do single Get The Balance Right e do terceiro álbum, Construction Time Again, em 1983. É nesse momento que a banda começa a experimentar sonoridades mais introspectivas, com maior uso de samplers, sintetizadores como o Emulator e Fairlight CMI, influências de nomes como Einstürzende Neubauten e letras mais voltadas a política, redenção, desejo e críticas sociais, o que fica evidenciado na lendária faixa Everything Counts. É aqui que a mágica começa: crítica social embalada por sintetizadores dançantes. Um paradoxo que só Depeche Mode soube moldar com tamanha precisão.

Essa estética mais densa e emocional caiu no gosto do público, principalmente na Inglaterra berço da banda e da esfervescência do pós-punk; na África do Sul onde, curiosamente, o som da banda ganhou força entre comunidades brancas durante o apartheid, com as letras que expressavam liberdade e igualdade; na Suécia, que já era receptiva à sonoridadeds como o Synthpop e já havia recebido Depeche Mode no programa de televisão, Måndagsbörsen, em 1982, e na Alemanha, que já recebia influências diretas de Kraftwerk e enxergou com apreço o flerte do Depeche Mode com o Industrial, o que se tornou um sucesso entre os jovens da Alemanha Ocidental.

Esse movimento abriu caminho para uma assinatura cada vez mais singular. Entretanto, apesar do sucesso, a banda ainda não havia conquistado completamente o mercado norte-americano, mas não demorou muito para que isso acontecesse. Em 1984, com o lançamento do álbum Some Great Reward, que trouxe a icônica track People Are People, um hino que remetia à diversidade, aceitação e direitos humanos, Depeche Mode finalmente viu seu sucesso avançando para um novo continente.

Concomitantemente, a estética da banda se tornava cada vez mais coesa, com arranjos robustos, atmosferas sombrias e letras cada vez mais pessoais, ora confessionais, ora políticas, sempre carregadas de ambiguidade. A essa altura, o Depeche Mode já flertava com a iconografia gótica e começava a atrair um público que orbitava as subculturas mais alternativas, principalmente nos EUA, onde o circuito underground passou a adotá-los.

Nos anos seguintes, os lançamentos dos álbuns Black Celebration, em 1986, e Music for the Masses, em 1987, ampliaram ainda mais o alcance da banda. O primeiro trazia ambiências mais melancólicas, sintetizadores cadenciados e temas introspectivos, enquanto o segundo fez jus ao título que, embora tenha sido uma sátira, fez a banda dialogar com uma audiência cada vez maior. Faixas como Strangelove, Never Let Me Down Again e Behind The Wheel definitivamente marcaram época. 

Esse momento, sem sombra de dúvidas, foi um período-chave para a disseminação da música eletrônica, pois Strangelove, por exemplo, carregava uma batida mecânica sequenciada que flertava com o EBM, popularizado por bandas como Nitzer Ebb, e o Techno, com vocais e uma harmonia melódica que pareciam ser pensados tanto para as rádios, quanto para as pistas, servindo de inspiração para inúmeras gerações de produtores, especialmente aos que são relacionados ao Synthwave e ao Techno mais emocional. DJs e produtores olhavam para Strangelove e viam ali o potencial de pista, dando origem a remixes icônicos, como o Hijack Mix, aproximando Depeche Mode da cena dance underground.

A consolidação daquele momento de popularidade do Depeche Mode foi o show no Estádio Rose Bowl, na Califórnia, em 1988, para mais de 60 mil pessoas, o que foi uma conquista histórica para uma banda que, até então, não figurava entre os gigantes da música americana. O evento foi registrado no documentário Depeche Mode 101, dirigido por D. A. Pennebaker, e se tornou uma das maiores provas de que o Depeche Mode não era mais apenas uma banda Synthpop, mas sim um fenômeno cultural.

Em 1990, Depeche Mode lançou o álbum Violator. Com produção musical de Flood, artista que já produziu bandas como U2, New Order, Nine Inch Nails e The Killers, o álbum trouxe sucessos massivos como Personal Jesus, Policy of Truth, World in My Eyes e, claro, Enjoy the Silence. A última faixa, em especial, se tornou um dos maiores hinos da música eletrônica. A canção foi originalmente escrita por Martin Gore como balada ao piano, mas ganhou nova roupagem ao ganhar batidas eletrônicas, sintetizadores atmosféricos e harmonia melódica, criando um equilíbrio perfeito entre introspecção, emoção e pista de dança. Enjoy The Silence impactou a forma como produtores, a exemplo de Röyksopp até Gui Boratto, passariam a inserir sentimentos de contemplação em suas criações para a pista, caminhando por essa trilha emocional aberta pela banda, direta ou indiretamente.

A turnê mundial de Violator foi acompanhada de um crescimento meteórico da base de fãs, algo que se tornaria ainda mais evidente com o disco seguinte, Songs of Faith and Devotion. Aqui, o Depeche Mode incorporava guitarras distorcidas, mais marcadas, com uma pegada mais Indie Rock e um clima mais espiritual e emocionalmente carregado, com faixas como Walking in My Shoes e I Feel You demonstrando a versatilidade e maturidade da banda. A turnê do álbum, no entanto, foi marcada por tensões internas, o desgaste emocional da fama e problemas pessoais, especialmente de Dave Gahan, que enfrentava o abuso de substâncias. 

Em 1995, Alan Wilder, uma das peças mais fundamentais na construção do som do Depeche Mode, deixou a banda, insatisfeito com sua posição e carga de trabalho. Sua ausência foi sentida tanto criativamente quanto sonoramente. Ainda assim, o grupo seguiu adiante e, em 1997, lançou Ultra, um álbum que refletia as turbulências internas, mas também a capacidade de resiliência do trio remanescente. Soa como um diário de  recuperação, e mostra que o Depeche Mode não é uma banda de fórmulas, mas de processos. 

Mesmo com a virada dos anos 2000 e as transformações drásticas na indústria musical, o Depeche Mode se manteve relevante. Após o turbulento Ultra, Exciter (2001) trouxe uma abordagem eletrônica minimalista e introspectiva, conduzido pelo guru do techno Mark Bell (LFO), famoso por seu trabalho com Björk. Nas pistas, a faixa I Feel Loved virou um clássico tardio, com remixes por Danny Tenaglia, Umek, Thomas Brinkmann e outros DJs renomados.

Em 2005, a banda lançou o álbum Playing The Angel, renovando a pegada industrial, considerado por muitos o melhor álbum pós-Wilder. Anos depois, em 2009, a banda se reconectou com suas origens, dando ênfase ao Synthpop e ao Synthwave com o álbum Sounds of the Universe. Em 2013,o álbum Delta Machine marcou uma era eletrônica mais densa do Depeche Mode. Produzido por Ben Hillier, o álbum combina sintetizadores analógicos e gates moduladas. A faixa de abertura Welcome to My World já entrega o tom: vozes e sintetizadores formam a experiência — como destacou The Guardian, as “máquinas estavam em evidência” e a guitarra foi para o fundo do mix. 

Quatro anos depois, veio o lançamento do álbum Spirit, produzido por James Ford (Simian Mobile Disco). Spirit era um claro  posicionamento de expressões políticas em formato música eletrônica, especialmente ligada ao Techno, com destaque para o uso de beats “krautrocky” e um Dave Gahan renovado em faixas como So Much Love. O contraste entre os tons ásperos e vocais impetuosos fez de Spirit um álbum polarizador: resistido por uns (por sua produção considerada “apagada”), enquanto outros o defendem como um paralelo sonoro relevante à crise política mundial. De toda forma, não restam dúvidas: o impacto cultural do Depeche Mode é unânime. 

Em 2019, o documentário Spirits in the Forest, revelou um retrato comovente de como a música do grupo atinge diversas regiões, credos e gerações. Contando as histórias de seis fãs em diferentes partes do mundo, o filme mostrou como o Depeche Mode é um catalisador de pertencimento e sensibilidade, um elo entre pessoas que talvez não tenham mais nada em comum além da música. 

Alguns anos depois, em 2022, Andrew Fletcher, veio a falecer. Embora tenha sido um momento triste, o acontecimento também funcionou como uma espécie de rito de passagem da banda. O álbum Memento Mori (2023), o primeiro disco sem Fletcher, foi lançado como uma carta de despedida e renascimento. Reflexivo e com momentos de profunda beleza, o álbum mostrou que o Depeche Mode continua sendo, mais do que nunca, um grupo que entende como transformar sentimentos em memória e arte.

Diante de tudo isso, é incontestável a afirmação de que, quando falamos de música eletrônica, estamos, de algum modo, falando do Depeche Mode. A identidade que o grupo aprofundou ao longo das décadas, que engloba gêneros que, assim como eles, habitam o espaço entre o pop e o underground: Dark Wave, Synthpop, New Wave e o Industrial Pop; o senso de comunidade criado por Depeche Mode, a ideologia libertária e sua insistência na própria arte se refletem diretamente na cultura de pista. Eles fizeram questão de deixar isso bem claro quando lançaram, em 2004, a compilação de remixes 81>04, posteriormente, o Remixes 2: 81-11, em 2011. Não é por acaso que tantos DJs, de tantas vertentes, ainda recorrem ao Depeche Mode como referência — seja nos samples, nos remixes, nos edits ou na construção de uma história em um set. 

O grupo furou diversas bolhas e moldou uma estética que influenciou desde a cultura Pop, as raves dos anos 90 até produções contemporâneas de artistas como Dixon, Recondite, The Hacker, Jennifer Cardini, Curses, Pablo Bozzi, Vermelho Wonder e Renato Cohen. Depeche Mode, embora seja o checkpoint da massificação da música eletrônica e sua simbiose com a cultura Pop, é o ponto de partida de um movimento cultural humano, introspectivo, dançante e emocional ao mesmo tempo. Essa combinação heterogênea é o que faz com que toda essa trajetória se torne tão singular e enaltecida. 

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