Um festival colaborativo, onde as pessoas voluntariamente constroem uma cidade no meio do deserto todo ano, levam o que consomem e a moeda é boa conversa e a troca de conhecimentos. Parecia utopia, não é mesmo? Mas é real, esse é o Festival Burning Man, que acontece na cidade de Black Rock em Nevada, nos Estados Unidos. Depois dos últimos acontecimentos do evento – que vamos aprofundar a frente –, você já deve, pelo menos, ter escutado falar sobre ele, mas te mostramos com mais detalhes e sob a visão de quem já participou, como é esta experiência e porque ela é tão única.
O Burning Man acontece desde 1986, quando foi criado pelos amigos Jerry James e Larry Harvey ao incendiarem o primeiro “man”, um boneco de madeira, em Baker Beach, em São Francisco. Algumas pessoas participaram da ocasião, e desde o acontecimento, o festival se expandiu se tornando um dos maiores da cena eletrônica mundial. Para se ter uma ideia, o festival reuniu neste ano mais de 80 mil pessoas, que passaram pelo local entre os sete dias de evento.
+++ Around The World | Burning Man, Black Rock City
O conceito é ser uma experiência de contracultura, onde a comunidade se reúne para criar toda a cidade, a estrutura e os line-ups. Ou seja, tudo acontece de forma conjunta, e a premissa de ser colaborativo é um dos principais fundamentos, junto à autossuficiência, já que cada participante é responsável por levar o que vai consumir, até a água. Dessa forma, o Burning Man se apresenta como mais do que apenas um festival de música, mas uma vivência verdadeiramente utópica, de uma pseudo sociedade que vive ali pela troca de boas experiências e celebrando o que realmente importa; sem leis, governantes ou regras, apenas princípios que ditam o momento e a sobrevivência – afinal, você estará no meio do deserto e como a própria organização afirma: este ambiente tentará te matar.
Esse aviso sobre o local é porque, independente do tempo, as condições são extremas, seja sol e calor de mais de 40º ou de chuvas e tempestades que te deixarão ilhado por lá, como aconteceu neste ano. Mas, apesar de muitas notícias sobre o caos instalado nesta última edição, nem tudo foi ruim assim, já que com o senso de comunidade e prezando pelo bem-estar de todos, os participantes se ajudaram nas dificuldades, amizades floresceram e bons momentos foram vividos, com a união pautando cada detalhe, como Lucas Eroles narra em sua experiência no evento.
O brasileiro mora em São Francisco – a terra natal do Burning Man – há alguns anos e tem uma visão especial do evento e de como ele movimenta a cena eletrônica da região. “São Francisco é a cidade que mais respira Burning Man. A primeira edição foi em um das praias mais frequentadas da cidade em Baker Beach, em 1986, ou seja o Burning Man não é um hype ou festa do momento pra quem cresceu aqui; faz parte da vida de muitas pessoas, tenho amigos aqui da minha idade que os pais levavam eles quando criança. Trata-se muito mais da experiência de viver por uma semana em uma cidade criada e construída pelos próprios participantes seguindo os 10 princípios”, conta.
Além disso, Eroles compartilha que a formação dos camps é bem única, já que a maioria dos participantes constroem os próprios, com propostas inimagináveis e autênticas, transparecendo este ambiente de fantasia e utopia – inclusive, se assemelhando ao carnaval. Isso porque há os grandes grupos que idealizam grandes camps e art cars, juntando fundo, organização, ensaios e mais, e também há os pequenos camps com amigos e familiares que criam suas próprias tradições, fantasias e folclores sobre o evento.
Outra perspectiva relevante é a categoria de artistas que o festival envolve. Lucas aponta que alguns do DJs que tocam por lá, não fazem tour ou grandes exposições em redes sociais, agências, management ou sequer têm releases nas plataformas, mas são curadores e colecionadores de música que vivem do movimento underground eletrônica, idolatrados na comunidade como lendas vivas, que você só consegue ter a oportunidade de vê-los no evento ou em festas do movimento em São Francisco.
“Aqui em São Francisco tem um núcleo chamado Sunset Soundsystem que foram considerados os primeiros do mundo a fazer festas eletrônicas durante o dia nas praias conhecido no mundo inteiro como sunset parties há mais de 30 anos atrás em Berkeley. Eles ainda são muito ativos, fazem um festival anual no estilo camp out que sempre dá sold out em poucos dias com o público super OG da noite, na faixa de 40-60 anos. A maioria desses djs podem até ser pouco conhecidos nas redes sociais, mas tocam em horários prime nesses art cars milionários”, explica.
Neste ano, Lucas nem planejava ir ao Burning Man, já que tinha outra gig próxima a data, no Dirtybird Showcase, uma parceria com o Club Halcyon, onde é residente e já fez direct support para Prok & Fitch, Victor Ruiz, Andreas Henneberg, Camea, Gettoblaster, Cour T e idealizou e promoveu uma festa com Classmatic e Teklow. A propósito, o artista tem uma atuação bem forte na cena da região, principalmente com sua festa Sonique After Hours, festa underground promovida às sexta-feiras. O projeto surgiu em 2021, após Eroles perceber a falta de eventos dedicados ao Minimal em São Francisco, estilo que ele vem tocando há muitos anos e possui uma bagagem ampla; desde então, a festa tem se destacado na cena, conquistando grandes artistas que frequentemente aparecem nos afters e alguns até chegaram a tocar como Solardo, PartiBoi 69, Acraze e Gettoblaster.
A label party também trouxe holofotes para o artista, que apesar de ter um som mais underground e voltado aos subgêneros do Minimal, vem sendo convidado para eventos com artistas brasileiros que estão em tour por lá. Além disso, seu destaque se expande à própria cena regional, sendo chamado a tocar frequentemente em festas e afters, como o Breakfast Of The Champions, um festival que reúne exatamente a categoria de DJs explicada acima, os “local legends”. Na última edição, Eroles teve a oportunidade de tocar em um horário privilegiado, reunindo uma multidão em sua pista. Da mesma forma, surgiu o convite para tocar no Whomp Wagon, um dos art cars mais incríveis do Burning Man.
A princípio, o brasileiro recusou, mas logo viu que seria uma oportunidade única e que poderia abrir muitas portas para sua carreira, então, ele seguiu para a Black Rock City, sem imaginar que a experiência seria ainda mais surpreendente. Os primeiros dias foram incríveis – como de costume – trazendo a oportunidade de ver sets inusitados como o de Carl Cox e Vintage Culture, que explorou diferentes sonoridades em sua performance. “O Burning Man dá essa liberdade pro artista tocar um lado mais sensorial, mais trippy e uma sonoridade mais psychedelic, afinal a playa desperta um lado mais primata e natural do ser humano, quase como uma dança de uma tribo, onde pessoas ficam em transe dançando ao ritmo de um tambor”.
Até que veio a primeira tempestade, na sexta-feira, dia 01 de setembro, enquanto conversava e trocava experiências sobre o festival com veteranos. Com o aumento da intensidade da chuva, Eroles percebeu nos olhares dos mais experientes que ninguém esperava por aquilo e, então, começaram a cobrir e proteger os equipamentos do art car. Poucos minutos depois, a área já tinha virado lama e a chuva seguiu até o dia seguinte, transformando o espaço em uma cena de filme apocalíptico, como ele conta: “tava rolando uma vibe sinistra de um cuidar do outro. como num filme apocalíptico que todo mundo tá na merda junto e ninguém é mais que ninguém”.
A chuva só diminuiu no dia seguinte, mas ainda sim, não havia a possibilidade de ir embora, já que a lama impedia os carros de chegarem à estrada, que era o empecilho para Eroles chegar à festa da Dirtybird, onde iria tocar no dia seguinte. Preocupado e cansado de ficar em sua acomodação, ele decidiu caminhar pelo local e encontrou outros campistas que pareciam ter tido a mesma ideia. Na sequência, o que era um pequeno grupo de pessoas reunidas conversando se transformou em uma festa, com direito a art car tocando e o convite para Lucas ser um dos nomes a comandar a cabine.
“Imagina um silêncio e clima pós guerra e do nada um soundsystem daquele ligado com todas as funktion ones no talo. Começou a brotar gente, literalmente, virou como um ponto de abrigo para quem estava cansado de lamentar e criou-se um momento surreal da galera se abraçar e dançar na lama”, relembra. Nestes momentos, Lucas estava à frente da pista, sendo um dos agentes a proporcionar essa experiência; depois de algumas horas tocando, sentiu algumas pessoas o cutucar, era o momento de passar “a bola” para frente. Após encontrar os seus amigos, a ficha caiu, quem estava o cutucando era ninguém menos que o Rufus du Sol.
“Continuei ali em cima com os amigos, e eu percebi pela expressão na cara de todo mundo que alguma coisa estava rolando, foi quando o Bert falou ‘mano,sua primeira vez aqui no Whomp você já pro Rufus Du Sol sem querer’. Rufus Du Sol? Sim, os dois caras que entraram são o Rufus Du Sol, ou seja, os caras estavam ilhados ali por perto com a equipe, viram toda a situação e vieram aqui. Foi a coisa mais engraçada e surreal ao mesmo tempo!”.
Na sequência, a notícia que viria mais uma tempestade chegou e seus amigos decidiram tentar sair do camping e voltar para São Francisco. Uma estratégia arriscada, já que muitos não conseguiam, mas foi certeira para eles, trazendo a oportunidade de Eroles garantir sua performance no Boat Party da Dirtybird. “Cheguei a tempo pra gig que foi surreal também. Recebi muito carinho e muito apoio quando cheguei lá. Todo mundo tava mobilizado e óbvio que curiosos para saber, afinal eu era um dos primeiros a voltar. Mas, enfim, a festa foi linda no barco, pôr do sol maravilhoso, até afterparty improvisado e eu não conseguia entender como tudo aquilo rolou em 48h. Foi a parada mais intensa da minha vida. Três dias depois eu voltei pra Nevada para ajudar a limpar e pegar algumas coisas que eu deixei pra trás”, finaliza.
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