“Eu já fiz tudo aquilo que dizem que deveria abrir portas. Lancei música, entrei em agência, toquei em grandes palcos, alcancei resultados claros. Mas a sensação é de que a virada nunca chega.” O relato é de Ella De Vuono, DJ e produtora queer com duas décadas de atuação na música eletrônica brasileira. A constatação, embora pessoal, ecoa entre artistas LGBTQIAPN+ que acumulam trajetórias extensas e ainda assim enfrentam barreiras difíceis de nomear.
Em um recente conversa para preparação deste texto, Ella compartilhou com o Alataj essa inquietação que, ainda que seja recorrente, raramente é discutida de forma aberta: o que realmente determina o reconhecimento de uma artista que já acumula história e resultados? A pergunta ganhou novas camadas nas últimas semanas, depois que Madonna publicou um vídeo de Ella De Vuono tocando sua faixa, intitulada Provoke, nos seus stories do Instagram — movimento raro e significativo vindo de uma artista alcance global, que suscitou expectativas e também expôs um paradoxo.
Ao observar o movimento de artistas de diferentes gerações, surge uma percepção comum: cumprir as etapas consideradas essenciais para consolidar uma carreira não garante acesso às oportunidades que, no discurso, parecem disponíveis para todos. No caso de Ella, o caminho é conhecido. Em 2005, em um período em que quase não havia DJs mulheres assumidamente LGBTQIAPN+ nas cabines, ela iniciou sua trajetória ao lado da então namorada (e atual mulher) com quem tinha um duo. Durante a trajetória, venceu dois campeonatos nacionais — o Desafio DJ Brasil 2012 e o Burn Residency 2019. Ella se tornou a primeira mulher DJ residente da Carlos Capslock, apresentou-se no Rock in Rio 2022 e tocou na Sisyphos, em Berlim, em 2024.
Além disso, recebeu reconhecimento de artistas como The Blessed Madonna, Fatboy Slim e, mais recentemente, Madonna. Esses feitos se somam à sua atuação como professora ao longo de onze anos, formando profissionais que hoje circulam em diferentes cenas. A junção desses elementos sugere uma trajetória de sucesso. Ainda assim, a percepção que a acompanha é a de que esse conjunto não se converte, de maneira proporcional, em acesso às oportunidades estruturais da indústria, como uma agenda estável e segurança financeira para poder concretizar novas etapas.
Nas palavras da própria artista, existe uma barreira menos visível do que a do machismo explícito que enfrenta desde o início da carreira — como quando não pôde entrar na cabine de um club e precisou provar, no computador da recepção, que era a DJ anunciada na noite. Hoje, o que Ella identifica é que os caminhos que realmente mudariam sua trajetória continuam restritos a grupos seletos de artistas. Para ela, o problema aparece, principalmente, quando a experiência acumulada não interfere nas decisões de contratação. É um ponto que muitos artistas queer relatam de forma semelhante, porque sabem que, na hora em que as oportunidades mais estruturais são distribuídas, seus nomes raramente são considerados na mesma medida.
A postagem feita por Madonna ilustra esse contraste. Para Ella, o momento foi vivido entre choque e euforia. As mensagens vieram de diferentes países, o engajamento aumentou, o público internacional passou a procurá-la e seus fãs mais antigos reagiram com comentários como: “eu já sabia”. Mesmo assim, ainda não existe a garantia de qualquer estabilidade. O episódio, que em muitos mercados funcionaria como gatilho imediato de novas oportunidades, revelou uma fricção típica da indústria. Se a validação precisa vir de fora — e, nesse caso, do maior ícone pop de alcance global — para que parte da cena volte os olhos para um talento que sempre esteve disponível, há algo desalinhado na forma como esse sistema reconhece quem sustenta sua história. “Enquanto quem estiver lá no topo, tomando decisões, não considerar representatividade e competência artística de forma integrada, nada vai mudar”, comenta Ella.
Apesar de a música eletrônica ter sido originada pelas comunidades queer, negra e latina, a integração plena desses artistas na cadeia contemporânea ainda é irregular. É como se grupos historicamente marginalizados, que criaram um espaço próprio para expressão, voltassem ao banco de reserva à medida que a cena se expande. O discurso da diversidade avança com mais rapidez do que as práticas de fato. E a consequência é clara: histórias como a de Ella, que deveriam ser vistas com olhar de valorização pelo público e pelo mercado, continuam dependendo de acontecimentos extraordinários para ganhar visibilidade proporcional ao impacto real do trabalho.
Neste sentido, surge uma indagação importante por parte da artista: “Eu sempre acredito, mas com os pés no chão, afinal de contas são 20 anos com muitos ‘quases’. Já quebrei muito a cara achando que ‘agora vai’ […] Às vezes eu penso no que mais falta eu fazer, conquistar, provar, para que o momento da virada aconteça.”
Apesar desse cenário, Ella se apega a uma ideia que passou a orientar sua relação com a própria trajetória: sucesso é permanência. Ela mesma reconhece que os “quases” fazem parte do caminho, mas não determinam seu fôlego. Ao longo de duas décadas, viu artistas aparecerem com força, ocuparem posições centrais e desaparecerem completamente pouco depois. Permanecer, para ela, é o verdadeiro indicador de consistência. “Talvez, uma das coisas mais audaciosas que eu fiz foi permanecer”, comenta, reforçando uma leitura madura de quem construiu uma carreira longa com base na própria consistência e determinação.
Essa percepção convive com um movimento constante de criação. No dia 19 de dezembro, por exemplo, Ella lançará o EP Affair pela Tropicana Records, de Portugal, com duas faixas originais — Rhodes Affair e Prophet Affair — que exploram uma estética de Disco House, com elementos brasileiros e solos gravados pelo músico Daniel Raizer. Paralelamente, sua atuação como curadora do palco de eletrônica do festival TUSCA, segue crescendo. No ano passado, foi responsável por uma noite que reuniu nomes como Etcetera, Valentina Luz, Paulete Lindacelva e Monic, além da inclusão inédita de performers no festival. O resultado a levou a integrar oficialmente o time de curadoria, que este ano recebe artistas como DJ Marky, Badsista e Clementaum. Esses projetos mostram que, independentemente da velocidade com que o mercado responde, o trabalho segue avançando.
A fala que abre este texto, portanto, é um convite à reflexão. Não basta somar conquistas ou circular por grandes palcos. Se a cena brasileira deseja se apresentar como diversa, consistente e comprometida com sua própria origem, será necessário enfrentar com seriedade a distância entre o manifesto que se carrega e a prática do que se consome. Isso vai desde o funcionamento cotidiano da indústria — nas curadorias e nas equipes que decidem e projetam o futuro da música — até a disposição do público em aceitar novas experiências, para além daquilo que já é conhecido, para que essas novas oportunidades possam se movimentar. Só assim histórias como a de Ella De Vuono deixam de aparecer como exceção e a cena avança com a profundidade que afirma possuir.