“There is history to contend with here, but surely no path dependence. The economy is not exogenous; it does not exist in a state of nature. Our ability to transform patterns of human energy use is coterminous with our ability to imagine a different economy, a different model of human enterprise and togetherness.” Aaron Timms, Making Life Cheap: Population control, herd immunity, and other anti-humanist fables. The New Republic, Maio de 2020.
Caso ainda se recordem, iniciamos este ensaio com a menção de uma fábula bastante conhecida cujo principal esforço didático é procurar mostrar o quanto o planejamento na condução de nossas vidas pode ser crucial em momentos de incerteza ou perigo. A ‘lição de moral’ ali contida é usualmente interpretada como uma espécie de condenação ao descaso e à falta de preparo que dele decorre, ambos fatores decisivos no destino quase fatal dos irmãos mais descuidados.
Entretanto, se nos concentrarmos naquilo que os salva e no destino comum que provavelmente compartilharão, a narrativa também possui outras nuanças que remetem diretamente à importância dos laços mais essenciais entre as personagens e, consequentemente, entre todos nós. Lembremos que é a generosidade do mais astuto que sela seu futuro juntos, protegidos e felizes. Uma iniciativa guiada por profundo um senso de responsabilidade nele imbuído e tornada possível por uma conscientização dos deveres por parte deles.
Agora é provável que tenha ficado mais evidente o porquê dessa alegoria aparentemente tão infantil para tratar de um tema claramente tão urgente. Essas fábulas apoiam sua importância justamente na perenidade de suas temáticas e na validade de suas mensagens como algo atemporal. E, convenhamos, ela se mostra bastante compatível com o que fizemos e deixamos de fazer para nos proteger neste longo inverno que nos espera, mas ela também aponta para muito do que podemos fazer e de como devemos fazê-lo a fim de sobrevivermos.
Claro também deve ter ficado o fato de que esta é uma tarefa a ser desempenhada coletivamente, caso algum sucesso longevo esteja em nosso horizonte, pois é através de esforços conjuntos que algo realmente duradouro normalmente é criado. Por outro lado, não tão cristalinos assim devem parecer os caminhos a serem seguidos ou mesmo as formas pelas quais um panorama já profundamente fragmentado antes desta crise – e extensamente prejudicado por ela – vai se tornar algo melhor do que já conseguiu ser. Bom, é justamente aqui que cabe aplicar todos aqueles conselhos de auto-ajuda e dicas de coaching, por mais inócuos e inúteis que possam parecer ainda mais neste momento, para ajudar-nos a ver nisto uma oportunidade.
Mudança é algo constantemente colocado como meta num universo artístico cuja dinâmica interna é tão pautada num senso meio inocente e superficial de evolução, em muito inspirado pela sua profunda dependência estética nos avanço tecnológicos disponibilizados e popularizados em determinados momentos. E, não obstante todo esse progresso, desenvolvemos pouco os modos e meios de interação que nos conectam já há um século no âmbito do usufruto musical coletivo, ou sequer os fortalecemos.
Ninguém nega o fato de que tais laços se esgarçam assim que a escala aumenta, estirados e tensionados de acordo com os limites que a popularização impõe, levando a rearranjos internos que podem ou não pôr a perder a identidade de qualquer comunidade. Estes efeitos se fazem ainda mais presentes naqueles grupos cujos códigos são sensíveis a interferências externas e os recursos disponíveis para seus membros relativamente mais escassos. E mesmo que os tenhamos considerado frágeis a ponto de tentar substituí-los com conexões mais amplas ou reforçá-los por meio de estruturas de reprodução mais robustas, é justamente a eles que recorremos agora, mais que nunca, para sustentar o pouco que resta daquilo que prezamos.
Em meio à impossibilidade de materializarmos nosso desejo, dançando e vibrando em frente a um sistema de som e interagindo com o artista, nos voltamos para aquilo que sempre tivemos, que é o artefato musical e tudo que ele nos proporciona de mais elementar, sensorial e emocionalmente. Contudo, ainda assim uma questão crucial permanece e faz-se ainda mais premente neste momento de reflexão: o que é o fruir musical afinal? Sabemos que ele está atrelado a contextos e define circunstâncias. Mas ele está atrelado a lugares que determinam sua fruição?
Nossa experiência online tanto sustenta quanto refuta qualquer tipo de respostas a estes questionamentos, mas eles são importantes para sabermos primeiramente o quê exatamente podemos procurar preservar neste novo período que se descortina para daí entendermos como deveremos fazê-lo. “Curtir musica”, afinal, é algo passivo ou ativo? E, independente da conclusão que saia daqui, ainda há mais camadas para descobrirmos melhor qual nossa relação com o fazer e o fruir musicais, e elas se referem ao fato de estarmos ou não satisfeitos em desempenhar qualquer atividade a eles ligada em isolamento, seja ele virtual (tocando apenas online), real (tocando apenas offline) ou total (apenas gravando e lançando obras).
Hoje em dia praticamente toda plataforma que comporta algum tipo de experiência online de interação humana se viu às voltas com um crescimento vertiginoso de usuários. As que souberam lidar com o desafio imposto pela mudança escala conseguiram não apenas sobreviver, mas especialmente prosperar. Não obstante essa oferta praticamente ilimitada de meios que nos mantêm ainda ligados à experiência da performance a que estamos acostumados, ela é materialmente muito tênue para nos satisfazer. Melhor que nada? Sem dúvida alguma. Para todos os envolvidos essas interações são vitais, conquanto carentes de intensidade.
Aqui, bem nesse vácuo presencial desprovido daquela energia vital que reside na própria carnalidade do nosso estar na pista e de todos os impulsos sensoriais envolvidos nessa imersão, que o fundamental se faz mais aparente. Nossa comunidade festiva e criativa é formada por muito mais que meras conexões, pois cada um dos elos que a sustentam também implica um ponto de união que é fruto de um compromisso coletivo tacitamente aceito e, portanto, diretamente ligado à comunhão que ocorre nesses locais.
Todas estas realidades imateriais são justamente as que se manifestam através dessas improvisações às quais recorremos hoje em dia face ao distanciamento. É alentador que tenham nos mostrado de que maneiras essas tecnologias que tanto colaboram para cimentar dissensos entre nós também nos ajudam a encontrar proximidade. Tudo isto também nos levou a ressignificar o que este conceito vem a definir, pois estando o componente físico ausente, isto nos leva a reconsiderar profundamente seu lugar em nosso entretenimento coletivo.
“But we just felt we must send a signal, or a reminder if you like, that even in times of crisis, the arts and music are desperately important, and if our audience can’t come to us then we must reach our audience in any way we can. And frankly, if we’re all going to get used to living more separately than we have for a while, then we’re going to need music more than ever.” Coronavirus Might Kill The Music Industry. Maybe It Needed To Die. William Ralston
Discorremos até aqui sobre muito do que compõe essa relação sagrada entre artista e público, mas ainda cabe analisarmos outra dimensão fundamental à existência de todos esses momentos místico-extáticos. E agora que chegamos a esta parcela do nosso mundinho, torna-se inevitável lembrar que a indiferença a suas necessidades alimenta muito da problemática de que falamos anteriormente e a relativa ignorância à sua existência é algo que marca todo o discurso de igualdade e emancipação com o qual gostamos tanto de revestir nossas empreitadas.
O contingente de pessoas semi-visíveis que se dedicam e sacrificam, tanto física como mentalmente, de modo constante para que esses momentos mágicos ocorram são as mas oneradas pelas atuais circunstâncias e também as que primeiro estão abandonando esta nau onírica e utópica. As vidas destas pessoas que sempre estiveram lá conosco raramente foram (re)conhecidas, mas inevitavelmente continuam para além dos nossos dilemas existenciais como sempre o fizeram. Afinal, para elas, existe vida após a cena, mesmo porque existem eventos sem música da mesma forma que esta pode existir sem aqueles, como acabamos de ver.
Então aqui, considerando que já resolvemos nossas questões mais prementes sobre nossa fruição estética pessoal ou grupal, a pergunta pertinente a se fazer é: quais as opções para que sobrevivam quando até quem devotou sonhos e esforços às promessas dessa profissão que se sustenta nessas celebrações aurais anda mostrando arrefecimento de ânimos? O que faz alguém cujos proventos dependem não somente de nossa bonança, mas principalmente de nossas boas-intenções, aquelas mesmas que pavimentam o caminho para o inferno?
Bom, para todos os efeitos, o inferno é aqui, mais beckettiano que dantesco, menos extramundano que dolorosamente tangível e corriqueiro, pois é totalmente desprovido de um horizonte de promessas concretas, apenas esperanças abstratas. Todos vivemos nele e, não obstante o fato de que gostemos de pensar que o “o inferno são os outros”, ele acaba sendo mais ou menos implacável de acordo com a vulnerabilidade da posição de cada um nesse amplo espectro de ocupações que forma nosso mercado.
Em suma, todos somos penalizados de diversas formas, mas elas têm uma materialidade muito mais imediata para uns do que para outros. O fato de notarmos isso com mais clareza apenas agora revela muito das rachaduras no nosso arcabouço comunitário que sempre existiram e apenas se tornaram inevitavelmente evidentes. Contudo, tudo isto também indica exatamente os pontos onde nossa visão do futuro pode suprir nossas carências do passado e orientar nossas ações do presente.
Esta complexidade aponta para o que já vínhamos delineando acima acerca dos laços que criamos e precisamos não apenas manter, mas expandir e reforçar, se quisermos criar algo diferente daquilo que nos trouxe até esta situação precária. Muito se fala em redes, que são mobilizadas por influência através de contatos e seguidores, como os fatores principais que dinamizam a competição na economia da atenção e determinam o êxito individual. Mas agora é o momento em que precisamos pensar nas formas pelas quais vamos transmutar essas forças em apoio e consciência através de pares e parceiros que serão os pilares a sustentar a comunidade, reforçando sua solidez e levando-nos ao sucesso compartilhado.
Tudo até aqui pode parecer abstrato, vago até, mas cada linha remete ao que entendemos como “cena” e pode ser aplicado a todos os níveis pelos quais ela se atrela ao restante de nossas vidas. A fruição de qualquer tipo de arte não precisa ser um ato passivo ou auto-indulgente, especialmente quando tudo que a torna real se dá pela força de grupos cuja existência é marginalizada e pelos esforços de profissionais cujas condições de trabalho são precarizadas.
Então, o que podemos fazer de modo efetivo para assegurar todas as vidas envolvidas nos nossos momentos? Enquanto membros desta comunidade, todos podemos contribuir para criar e manter condições de segurança para as diversas atividades que compõem nossa realidade profissional e isto, na atual conjuntura, demandará uma sensibilidade muito mais afinada com os riscos inerentes ao que fazemos, algo que deveria ser prioritário há muito tempo nos ambientes e sob as circunstâncias usualmente tão insalubres sob as quais o fazemos.
Porque se há uma coisa que esta crise sem precedentes tornou clara é o quanto um senso de responsabilidade coletiva deve ser acentuado entre todos nós e ele é central na tarefa de construir o futuro de uma cena mais coesa e diversa, além de mais sustentável e inclusiva. Não é uma empreitada simples ou fácil e deve ser operada em todas as dimensões se pretendemos que as mudanças por ela promovidas sejam duradouras e seus efeitos sejam profundos.
Os planos envolvidos são nós devemos começar a desenhar desde já, aproveitando essa inércia excessiva que é forçada sobre o campo de nossas atividades diárias e que não precisa se estender ao nosso universo criativo. Entretanto, a maior parte dos esforços mais transformativos se traduz em atitudes, pequenos atos corriqueiros que se dão no cotidiano, especialmente naqueles momentos em que vemos como um mundo de fantasia como o nosso pode ser excludente e decidimos fazer algo para mudá-lo.
Exemplos abundam, mas essencialmente tudo que fizermos deve levar em consideração a felicidade e saúde de todos os suínos que dançam, tocam, transam e criam sob o mesmo teto, independente da música.
A música conecta.