“Mote: música, informação e culturashhh“. Quem já ouviu qualquer edição do programa comandado por Paulete LindaCelva, na plataforma Cereal Melodia, certamente irá reconhecer a vinheta e vai escutar as palavras na voz sensual e debochada de mãinha, como ela se autodenomina e é chamada por suas convidadas. Se você se interessa por qualquer um destes temas e ainda não conhece o programa, eu recomendo “catar”, no Spotify ou SoundCloud, e aproximar-se das discussões conduzidas com inteligência e bom humor por Paulete, artista e curadora que aposta na rádio como linguagem de suas experimentações e na oralidade como ferramenta de produção de mundo.
De fato, o programa Mote vem sendo a expressão mais importante do trabalho de Paulete como curadora: são 30 episódios em 3 temporadas, além de um especial acompanhado de uma revista, dezenas de convidadas entre DJs, artistas visuais e acadêmicas – em sua maioria corpas dissidentes –, edições em São Paulo, Porto Alegre, Recife e Fortaleza. Mas, mesmo sendo um produto importante, os encontros transmitidos no programa de rádio são parte de um processo muito mais amplo de Paulete como artista e curadora, em seu esforço de ouvir e transmitir vozes, registrar o momento em que vivemos e compartilhar afetos através da fala. Por isso os encontros. Por isso a rádio.
Paulete LindaCelva nasceu e cresceu em Recife, no bairro periférico Guabiraba. É a mais velha de cinco irmãos, e supostamente seria a primeira a terminar os estudos. Abandonou o ensino médio, rompeu com a família e construiu vivências que passam pela militância em uma pastoral católica, pela noite da cidade e incursões como DJ, numa aproximação progressiva e não intencional com o campo das artes. Em 2013, ano em que o Brasil literalmente queimou – o que serviu de combustível para o surgimento de vários coletivos –, consolida parte desse percurso com a criação da coletiva Infecciosxs, junto de outras artistas ansiosas para escoar suas produções e afrontar o tédio da cis-hetero-norma.
Com as Infecciosxs, Paulete segue desenvolvendo seu trabalho como DJ, que incluía coisas cult bacaninhas, brega e noize, além de experimentar-se na produção audiovisual. Em 2016, a artista lançou o filme Aiyè 3016 (roteiro escrito com Sérgio Ferro), um curta afrofuturista que retrata a catástrofe ambiental repetidamente anunciada, mas com um desfecho alternativo. Enquanto as falésias desmoronam e o planeta acaba (nada mais atual), “as negonas dão o golpe e partem para AIYÈ, um plano ancestral invisível até o século XXX da era da supremacia branca”. Ao som de Grace Jones e da Banda Reflexus, Paulete propõe a criação de novos imaginários através da ancestralidade e da ficção visionária.
Assim como muitas e muitos jovens nascidos nos anos 1990 (ela é de 1994), Paulete cresceu ouvindo o rádio e frequentando as festas promovidas pelas estações em seu bairro. A paixão antiga transformou-se em produção artística e curatorial quando, em 2017, assumiu um programa na rádio comunitária Aconchego, em Recife, onde apresentou os programas Paulete e o Raio Globular e Ruído. Em 2018 assume a curadoria da Rádio Namíbia, iniciativa da coletividade de artistas pretxs lgbtqia+, que atuava na cidade de São Paulo. Esses projetos, de certa forma, amadureceram sua disposição de trabalhar com o formato rádio para externalizar suas reflexões e promover os debates que vieram a se desdobrar no Mote.
Diferente de um podcast, como Paulete gosta de frisar, o programa que iniciou em 2019, numa parceria com a plataforma Cereal Melodia, tem como mote os encontros entre as diferentes corpas – racializadas, dissidentes de sexo e/ou gênero – e a tentativa de traçar um plano comum na diferença. São artistas visuais, escritoras, acadêmicas, DJs, musicistas, performers, enfim, sujeitos políticos que discutem com suas obras questões contemporâneas e, ao mesmo tempo, muito antigas, como os processos de resistência ao poder colonial e a fabulação de outras possibilidades de futuro, menos predatórios e “carneirosos”, em suas próprias palavras.
Em um mosaico que une com informalidade e seriedade nas medidas certas, discussões acadêmicas, crítica de arte, processos criativos e lutas das mais diversas – tendo como trilha os “sounds” selecionados por DJs do calibre de BADSISTA, Valentina Luz e Eric Oliveira, só para citar alguns –, no Mote, Paulete materializa com sagacidade sua produção artística, na forma de programa de rádio. A mediação, as entrevistas e a própria curadoria se dão na interface entre arte e política defendida pelo filósofo argelino Jacques Rancière: o dissenso. É através da instauração de processos de interrogação que o programa se movimenta, permitindo enfrentar o monopólio da informação, funcionando como contrafeitiço, nas palavras de Ariana Nuala, uma de suas muitas convidadas. Por lá já passaram também Jota Mombaça, Micaela Cyrino, Jup do Bairro, Novíssimo Edgar e muitas outras.
Apesar do trabalho de Paulete no Mote estar centrado em sua voz, no programa ela também já apresentou suas qualidades como DJ: na série especial Outros Fins Que Não A Morte, lançada em conjunto com uma revista, no início da pandemia, ela ficou responsável pelas mixes, numa seleção de grooves internacionais e brasileiros. Nas festas do rolê independente, como ODD, Mamba Negra ou Sangra Muta, constrói sets baseados no House e no Techno. Além disso, é possível conferir seu amplo repertório nas playlists disponíveis em seu canal no Youtube, prática compartilhada por outros DJs famosos pela pesquisa, como OMOLOKO.
Agora, o mais impressionante ao escutar as muitas edições de Mote, para além da profundidade dos temas abordados, é a capacidade de Paulete, com sua voz, acolher cada ouvinte, tornar leve discussões complexas e promover encontros que são pura potência de vida. Como ela mesma defende, a curadoria é uma ação de cura, de zelo. A oralidade é veículo de saberes ancestrais. O encontro entre diferenças e as narrativas produzidas por corpos subalternizados, como pretos, indígenas e desobedientes de gênero – que já vivem o apocalipse há séculos –, são as únicas formas de imaginarmos futuros diferentes. Guiados pela voz de mãinha, a dura tarefa parece mais fácil e divertida.
A música conecta.