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A música conecta

Marginália Metropolitana – Mas afinal, que “cena” é essa?

Por Redação Alataj em Socials 15.05.2025

O conteúdo que você irá ler a seguir é um trecho que faz parte do livro Marginália Metropolitana — projeto que começou a ser idealizado em 2022 e foi colocado em prática com o apoio da Lei Paulo Gustavo. Marginália Metropolitana é um esforço coletivo para documentar, provocar e refletir sobre a cena de música eletrônica da Grande Porto Alegre, com foco especial nas vivências de artistas que atuam a partir das margens — geográficas, sociais e simbólicas.

O livro reúne textos de seis autores e autoras, além de estar conectado a uma coletânea com 14 faixas, um audiolivro, visualizers, festas de rua e outras ações que ampliam sua potência para além do papel. O objetivo é mostrar que a cena é feita de corpos diversos, experiências complexas e narrativas que resistem, sonham e transformam.

Boa leitura.


Como um manifesto que instaura um marco importante no cenário da música eletrônica em Porto Alegre, revelamos um grande percurso que leva artistas a circular e descolonizar o olhar das pessoas sobre o que é fazer arte. As tensões presentes na construção e na mobilização de uma cena noturna ganham notas de melancolia e tons de radicalidade que aceleram entusiastas das batidas eletrônicas e sintéticas. A onipresença dos artistas possibilita a criação de territórios marcados pela prática do sentir, pensar, vivenciar e experienciar pistas, sejam elas em clubs, inferninhos, afters, bares ou pelas ruas. Mas, afinal de contas, o que é uma cena? Como construímos uma cena? De que cena estamos falando? Quais corpos compõem essa cena? Quais lugares?

Marginália Metropolitana suscita ideias, mobiliza sensações e nos transporta para lugares criados a partir de experiências sonoras. As inúmeras identidades presentes no conjunto da obra expressam as vozes oriundas de complexas vivências a partir de diferentes perspectivas, lugares e contextos. Estar à margem por vezes pode suscitar o desejo de deslocar-se do ponto de invisibilidade corriqueira para corpos marginalizados, trazendo esses corpos para o centro da atenção do cenário criado pelo ecossistema da cultura de um lugar.

Evidentemente, ser artista na contemporaneidade requer passos ousados e movimentos anárquicos, que possibilitem romper padrões estabelecidos sobre o mundo da arte, a indústria cultural e seus costumes. Ser artista marginal, oriundo de classes populares, define posições e provoca tensões que dizem muito sobre seus territórios de origem e suas relações com as lutas travadas no cotidiano. A percepção sobre o que é a arte ou o que é ser artista não deveria ser algo interpretado a partir da premissa da universalidade. Ao contrário, a pluralidade e a diversidade das narrativas presentes em cada performance, lugar, tempo e espaço dá sentido ao que podemos nomear como cena, ou seja, a heterogeneidade de uma cena cultural é algo que deve ser entendido como um campo fértil de criação e múltiplas potencialidades artísticas.

“cena 1”

O relógio marca 23h50 quando o celular bipa uma mensagem recebida pela notificação do facebook: “seu evento inicia em 10 minutos”. Na sala, cerca de seis amigos estão bebendo e conversando sobre a festa que entraria madrugada adentro. O local ainda não havia sido revelado e a dúvida entre os presentes era sobre as possibilidades de chegada e o percurso a ser feito até lá. Luiza estava sentada no braço do sofá, usando um vestido preto com alguns detalhes em branco. Gesticulava com os braços abertos compartilhando sua indignação sobre as falhas da produção, que ainda não havia publicado o local da festa, dizendo ser falta de organização e responsabilidade com o público que aguardava pelo anúncio. Zé, fumando um cigarro na janela, relativiza a fala de Luiza e indaga sobre os motivos daquele alvoroço todo, dizendo que provavelmente o local seria acessível e haveria a possibilidade de ir caminhando até o rolê.

Enquanto isso, Carol, que preparava o drink na cozinha, dá um grito dizendo que, com certeza, tudo daria certo, só deveriam decidir qual o melhor meio de transporte. Leo avisa: “oh saiu, vai ser na prainha!”, todes se perguntam: “na prainha? por que? lá na puta que pariu?!” – a indignação de Luiza contagia todes e faz com que a reclamação tome conta da sala retangular, com um sofá encostado em uma parede, uma mesa de vidro na outra, um rack amarelo com uma televisão e alguns copos de drink e latas de cerveja espalhados por cima. A TV servia como caixa de som no momento, onde passava a gravação do set de um dos DJs do line up da festa. Os passos de um lado ao outro da grande sala começam a produzir sons estridentes, remetendo a agitação do momento, quando todes já estavam prontos para a noite, porém, incrédulos com o local proposto pela produção da festa.

Lucas sugere uma última rodada antes de decidirem qual o melhor meio para o deslocamento da galera, a ideia era dividir os dois comprimidos de ecstasy antes de sair de casa e dar tempo de “bater” quando chegassem na festa. Ananda confere o aplicativo de carro no celular e se espanta com o valor da corrida, que gira em torno de oitenta reais. Ela comunica a galera, mas o valor não é algo que pareça ser um problema. Luiza, que já estava indignada, lança: “o problema não é o preço, mas como vou com esse vestido para a prainha?”. A prainha é um lugar que passou por um processo de transformação radical após uma catástrofe climática que atingiu a cidade da ponte pra lá. Nesse lugar havia uma orla muito bem ornamentada em sua paisagem e cimentava a divisão entre o rio e a cidade. A orla ficou submersa depois da catástrofe e a cidade restou abandonada pela administração municipal, quando o prefeito fugiu com o valor doado por uma multinacional para sua reconstrução.

No lugar havia alguns galpões que abrigavam fábricas devastadas por uma enchente, deixando apenas ruínas em determinadas partes da região. Mesmo assim, o cenário era perfeito para uma festa, que utilizaria a estrutura coberta de um dos galpões como parte de sua infraestrutura. Os fundos do local tinham vista para o rio e produziriam uma visão do sol nascendo pela manhã, atrás das ilhas. Gika era uma das mais introspectivas da sala, pois estava sentindo algo dizer que não deveria ir à festa. Como uma intuição forte que insiste em soprar os ouvidos? Ou uma paranoia com efeitos que se expandem pelo corpo? Sentia seu corpo esquentando, suas bochechas queimando e as pernas frouxas. Gika respirou fundo, tentando afastar a sensação estranha que a envolvia. Enquanto seus amigos discutiam animadamente sobre a festa, ela se levantou e se afastou um pouco, buscando um canto mais tranquilo da sala. A música alta e as risadas pareciam distantes, como se estivesse em um mundo à parte. “Ei, Gika! tu tá bem?” Carol perguntou, percebendo que a amiga estava um pouco distante: “acho que bateu, amiga, me dá a mão”.

“cena 2”

Luiz se arruma em frente ao espelho de seu quarto, enquanto ouve funk mandelão na pequena caixa de som posicionada em cima da escrivaninha. Estava ansioso, pois iria encontrar Luiza, a gata com quem trocou uns beijos na última festa de rua, há cerca de um mês. A expectativa era grande para encontrar Luiza, e talvez receber um convite para conhecer seu apê no centro histórico. Luiz não se importava com o abismo social que separava os dois, só queria mesmo rever Luiza e sentir sua pequena boca novamente. O combinado era que encontrasse Rapha na estação à 0h45, pois pegaria o último trem às 23h30, já que seu turno de trabalho no supermercado terminava tarde. A casa de Luiz cheirava a umidade, após ter ficado submersa por 20 dias durante a enchente, e as roupas  novas que ganhou de doação estavam impregnadas com aquele odor desagradável. Ainda que já estivesse acostumado, borrifou perfume algumas vezes na tentativa de esconder o cheiro, para que não fosse notado.

Luiz segue caminhando em direção a estação Mathias Velho, compra o cartão SIM, passa a catraca e aguarda o trem chegar. A viagem dura cerca de 45 minutos, onde Luiz observa as luzes da cidade passando rapidamente pelas janelas do vagão. Ainda se viam resquícios da devastação causada pela catástrofe climática do ano anterior, e tudo ainda estava muito latente na memória das pessoas que habitam os lugares atingidos. Luiz estava começando a produzir algumas tracks despretensiosamente, mas seu notebook e o par de monitores de áudio foram levados pela água, logo depois que os adquiriu. Este era um segredo que guardava entre ele e seu melhor amigo Rapha, que foi DJ por um tempo, mas desistiu do ofício, pois sua mãe adoeceu e precisava de cuidados específicos de saúde. Quando Luiz perdeu seus equipamentos, Rapha cedeu os dele para que retomasse às produções e se aventurasse como DJ.

Por um tempo, a dupla se encontrava pelo menos uma vez por mês para produzirem e tocarem juntos, no apartamento que Rapha morava com a mãe, onde entravam as madrugadas selecionando tracks, samples, beats e criando sonoridades que contassem narrativas criadas por eles naquele momento. Um dia resolveram que iriam lançar um EP, não sabiam como nem quando, mas tinham esse objetivo, e por isso circulavam pelas festas de música eletrônica na cidade e na região, para entender o que a pista mais curte ouvir, sentir e transar. Ao chegar na estação Mercado, Luiz confere o celular e percebe que recebeu uma mensagem de Rapha: “cara, fudeo! toque de recolher aqui no Morro, mataram um cara no Central. o bicho tá pegando, não vai rolar sair de casa…”


Dentro da mesma cidade e nos múltiplos territórios, que são produzidos pelos corpos que nela habitam, diferentes lugares, narrativas e propósitos se apresentam. Por exemplo, uma festa pode se configurar como um território de tensionamentos colocados frente a frente, na medida em que seu público se mescla, se choca, acessa ou não determinados espaços. Sem a pretensão de romantizar relações que se estabelecem em determinados nichos sociais, historicamente excludentes, há um processo de resistência exercido por corpos dissidentes, que resgatam seu protagonismo como mote ancestral da criação de “cenas de música eletrônica pelo mundo” – mais tarde apropriada cabalisticamente pelo Capital e pela branquitude. Os personagens acima e seus contextos nos fazem refletir sobre esses tensionamentos, conflitos sociais, raciais, econômicos, presentes nesses espaços. 

Em Porto Alegre e na região metropolitana, existe uma cena consolidada e cada vez mais protagonizada por corpos não brancos e de origens periféricas, o que oferece para o cenário cultural local uma gama de possibilidades de acesso e um senso de resgate de narrativas historicamente ofuscadas pelo processo de elitização da música eletrônica. Ao longo dos anos, a conscientização do público e das pistas de dança a respeito de pautas antirracistas, antissexistas, anticolonialistas etc. vem tomando um espaço importante e modificando a paisagem dos espaços antes inabitáveis para determinadas pessoas. Não é mais só sobre o som, mas avançamos para um entendimento sobre as raízes, origens e conflitos que se apresentam, buscando democratizar o acesso a lugares, recursos e ideias, de modo a criar estratégias de resistência que confluem para uma encruzilhada de troca de saberes.

Mesmo que haja muitos elementos presentes no que se escuta e se dança nas pistas, os ritmos e as sonoridades se curvam para o novo, e assim a cena vai se atualizando, contando novas narrativas, o público vai se libertando de determinados padrões e vamos deixando nossos rastros pelos lugares que influenciamos através da arte. 



Mariana Gonçalves da Silva, DJ Marigdas, é socióloga, DJ, agitadora cultural, mestra e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Gosta de pesquisar as ruas, as pistas, as juventudes e suas artes em movimento. Adepta ao pensamento negro radical, entende que as expressões artísticas negras pelo mundo criam rotas de fuga e  enfrentamento ao colonialismo, ao utilizar o corpo como transmissor principal de conhecimento ancestral.

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