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A música conecta

A higienização e a comercialização das plataformas artísticas em escala global

Por Alan Medeiros em Editorial 30.06.2025

Nas últimas duas décadas, o papel das plataformas digitais na mediação cultural deixou de ser coadjuvante para se tornar determinante. Spotify, YouTube, TikTok e Instagram passaram a ditar não só a forma como consumimos arte, mas como ela é produzida, distribuída e valorizada. Nesse processo de plataformização da cultura, como definem estudiosos como Thomas Poell, David Nieborg, Brooke Erin Duffy, a lógica algorítmica substituiu a curadoria, e os sistemas de recomendação tomaram o lugar do pensamento crítico. O resultado é um ecossistema onde a visibilidade cultural está atrelada a métricas previsíveis e à rentabilidade imediata.

Exemplo disso é o Spotify, que nos últimos anos abandonou progressivamente suas playlists editoriais consideradas mais nichadas (muitas vezes comandadas por curadores reais e especializados) para focar em gêneros de massa e algoritmos de popularidade. A extinção da playlist Front BR, que se propunha a mapear novidades da cena eletrônica nacional underground, evidencia esse retrocesso. Sem fôlego de engajamento, perdeu espaço rapidamente. Não por falta de qualidade disponível, mas porque a estrutura atual das plataformas exige um elemento viral que nem todas as culturas e ritmos conseguem proporcionar. 

O que emerge, então, é uma compressão da diversidade cultural. Quanto mais experimental, ambíguo ou reflexivo é um conteúdo, menor a chance de ele prosperar. A arte passa a ser tratada como um produto de atenção, moldada para prender o olhar por segundos e desaparecer em seguida. Um exemplo recente veio da DJ e produtora Perel, que compartilhou publicamente sua frustração ao hesitar em postar um vídeo relacionado ao lançamento de um novo single por saber que o material, embora genuíno, não atendia aos critérios de performance das plataformas. A própria estrutura algorítmica, nesse caso, atuava como um filtro estético e emocional, coibindo a expressão autêntica em nome de uma previsibilidade performática. Aquilo que exige tempo, como certos tipos de música ou textos, acaba invisível, deslocado para as margens.

Mesmo as margens da cultura hoje vivem sob tensão. Ainda nos anos 1990, Gilles Deleuze propôs que o controle na sociedade contemporânea deixava de ser exercido por instituições rígidas, como escolas ou fábricas, e passava a acontecer por meio de modulações contínuas. As redes sociais são um reflexo claro disso: ao mesmo tempo que oferecem visibilidade, impõem regras invisíveis sobre como se deve criar, falar, parecer. Para muitos artistas, resta ajustar o tom, o estilo e o tempo da sua produção para que ela continue aparecendo e performando nos feeds alheios.

Essa normalização estética e discursiva está no centro da chamada indústria cultural, conceito que embora criado no século XX, parece mais atual do que nunca. A cultura é moldada para o consumo fácil e constante. Tudo que escapa a essa lógica, como expressões politicamente dissidentes, experiências espirituais ou psicodélicas, é diluído, convertido em produto ou simplesmente removido da vitrine.

A presença de artistas gerados por inteligência artificial em playlists editoriais do Spotify é um sinal nítido do esvaziamento simbólico da arte. Não se trata mais de substituir um músico por outro. Trata-se de suprimir o custo (emocional, criativo, social) da arte feita por pessoas. E isso acontece não apenas nas margens, mas no coração das estruturas mais visíveis da indústria.

Ao mesmo tempo, a imprensa especializada, que historicamente atuava como contrapeso a essas tendências, atravessa um processo profundo de precarização, com as plataformas que restaram, lutando pela sobrevivência, sem grandes garantias no longo prazo. O esvaziamento de veículos e equipes editoriais reduziu o espaço para análises críticas, para a valorização de artistas fora do circuito dominante e para a documentação consistente das transformações culturais. Isso tem um impacto direto sobre a memória e a densidade da cena, já que sem crítica, não há profundidade; sem profundidade, tudo vira superficial.

Ainda assim, nem tudo se dilui. Há zonas de fricção onde coletivos, selos e artistas operam sob seus próprios valores, quase sempre à margem da indústria formalizada. Pequenos clubes, festas independentes, bares locais, revistas digitais, selos regionais e espaços autogeridos seguem funcionando como ecossistemas vivos da cultura clubber. Ali, longe dos algoritmos e da lógica da alta performance, há espaço para risco, contradição e experimentação, elementos que sempre fizeram parte da gênese da música eletrônica.

Em entrevista recente ao Alataj, o duo escocês Slam refletiu sobre esse paradoxo, o que nos trouxe a escrita desse editorial. Para eles, a saturação de estímulos e a homogeneização das plataformas criam uma espécie de “panela de pressão para a inovação”. “Nem todos estão dispostos a seguir o ethos dominante”, apontaram. “Ainda existem bolsões de resistência natural, artistas e comunidades que rejeitam a agenda mais populista e são impelidos a cultivar algo interessante e novo.” Nessas brechas, a cultura não apenas resiste: ela muda de endereço, transforma seu idioma e, muitas vezes, reencontra sua potência.

Cabe, então, não apenas criticar, mas também propor. Se as plataformas operam por eficiência e homogeneidade, cabe ao ecossistema alternativo oferecer atrito, resistência e complexidade. Isso significa defender a importância da curadoria humana, da crítica especializada, das plataformas comprometidas com a cultura, e, acima de tudo, garantir que existam espaços onde a música, a arte e o pensamento possam ser mais do que apenas conteúdo de rápido consumo.

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