Quem conhece um pouco da história do Techno sabe que São Paulo sempre teve uma conexão especial com o gênero. Não é coincidência. Tanto São Paulo quanto Detroit são cidades industriais, com transformações urbanas constantes e uma diversidade cultural que cria um terreno muito promissor para movimentos oriundos do underground. Quando o Techno de Detroit começou a chegar por aqui no final dos anos 80 e início dos 90, podemos dizer que ele encontrou um ambiente “já preparado” para recebê-lo.
A cena paulistana se desenvolveu com características próprias desde o início. Nunca foi muito preocupada com purismo, sempre absorveu influências diferentes e criou sua própria identidade. Nos primeiros clubs e porões da cidade, vários DJs fizeram um trabalho fundamental que ia muito além de tocar música: eles apresentavam um universo sonoro completamente novo para o público brasileiro. Sem internet, a informação chegava devagar, então esses DJs funcionavam como ponte entre o que acontecia lá fora e o que poderia se consolidar aqui.
O Hell’s Club, que funcionou nos anos 90, por exemplo, virou referência porque conseguiu criar algo que era novidade até então. Um afterhours que abria às 4h30 da manhã e ia até meio-dia, frequentado por pessoas que realmente estavam ali pela música. Como relembra Renato Cohen, que fez ali sua primeira apresentação em 1996: “Só dava pra conversar no banheiro. As pessoas iam pra dançar e enlouquecer até o meio-dia”. Foi esse tipo de experiência que criou uma comunidade sólida, estabeleceu padrões e deixou um legado que influencia a cena até hoje.
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Vários outros clubs fizeram parte dessa história e ajudaram o movimento a evoluir, a exemplo do próprio D-EDGE, que já está ativo desde os anos 2000 e segue firme até hoje; mas o que começou a acontecer aos poucos foi um movimento para além dos clubs. A partir dos anos 2010, surgiram os coletivos que ocupavam ruas, túneis e prédios abandonados. Uma forma de manter viva uma cultura que sempre teve esse aspecto de resistência. Essa migração representou uma resposta direta à gentrificação dos espaços de cultura eletrônica.
Basicamente, o movimento voltou às suas origens underground, mas com uma consciência política mais aguçada. Tinha mais experimentações de gêneros, a “montação” ganhou centralidade e a música eletrônica se conectou a uma resistência urbana mais ampla, ocupando espaços, questionando normas e criando territórios livres numa metrópole cada vez mais controlada. Festas como VOODOOHOP, Vampire Haus, Mamba Negra, Carlos Capslock, ODD, Blum, Selvagem e outros grupos mostraram que era possível fazer festa de qualidade em qualquer lugar, desde que o comprometimento estivesse lá. Outros coletivos como Hail The Light, Under Division, Sangramuta, Tantša, Vortex323, Clube dos Lenhadores, VOLT, Mixordia, Mind The Gap e tantos outros também seguiram e seguem até hoje colaborando com a cena à sua maneira.
Inclusive, há algo que conecta aquele movimento lá dos anos 90 a esses coletivos citados: todos eles compartilham dos princípios fundamentais que definem o DNA do Techno. Desde curadoria como forma de resistência à padronização comercial, passando pela criação de uma comunidade forte, escolha consciente do espaço como manifesto político e o uso da performance como território de libertação. Essa tradição se adapta aos tempos, absorve novas influências e encontra formas criativas de manter seus valores centrais.
Ainda em tempo, é importante reconhecer que o Techno vive um momento particularmente desafiador em São Paulo, principalmente quando comparado aos períodos mais efervescentes da história. O cenário atual não tem a mesma força de outrora e por isso que núcleos, festas e iniciativas independentes em prol do estilo representam uma verdadeira resistência para manter essa cultura tão importante viva na cidade. É por isso que se vê cada vez mais iniciativas colaborativas, coletivos se unindo e somando forças para fazer acontecer, já que nesses momentos a união é o melhor caminho para o fortalecimento.
Um ótimo exemplo é encontrado na parceria entre HAIL THE LIGHT e Under Division. Hail nasceu em 2019 trazendo uma proposta que dialoga diretamente com a tradição dos afterhours antigos. O coletivo recupera a dimensão ritualística que sempre foi central na cena underground da cidade, abrangendo do Raw ao Detroit Techno e priorizando sonoridades mais hipnóticas. Já o UD, criado em 2018, representa a energia política dos coletivos de rua adaptada para espaços maiores. Se consolidou como referência nacional em Techno e Hard Techno, atraindo uma nova geração de público para as pistas com uma abordagem sonora mais direta e agressiva.
Mas o momento mais simbólico dessa nova fase está para acontecer em alguns dias quando os dois coletivos somam forças no grandioso Festival Under+Hail, marcado para os dias 14 e 15 de novembro. Com dois palcos de curadoria independente, o festival preserva a identidade de cada coletivo enquanto demonstra que a colaboração amplifica a força das iniciativas. O lineup terá mais de 20 artistas, incluindo Rebekah, Marrøn, Vinicius Honorio, Cashu, Vermelho, DJ Marky, Ananda, Sanna Mun e Gioh Cecato, mostrando que o Techno paulistano atual consegue dialogar com diferentes gerações e estilos [confira aqui o post com o lineup completo]
Juntos, os coletivos carregam a mesma preocupação com a curadoria, a mesma energia política dos primeiros movimentos de rua e a mesma capacidade de criar comunidades fieis, encontrando novos caminhos para existir e dando continuidade a uma tradição que se reinventa constantemente para permanecer relevante.
Os ingressos antecipados para o festival estão disponíveis através deste link.



