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A música conecta

Uma geração que abriu portas

Por Elena Beatriz em Editorial 19.12.2025

Refletir sobre a cena eletrônica brasileira passa, inevitavelmente, por entender que ela não nasceu estruturada, conectada ou validada. Nos anos 90, DJs e produtores iniciaram suas trajetórias em um cenário marcado por precariedade técnica, pouca informação disponível e um forte estigma social em torno da música eletrônica. Este texto propõe um olhar sobre essa geração que ajudou a construir as bases culturais, sociais e profissionais da cena nacional — não apenas por ter vindo antes, mas por ter criado caminhos onde não havia referência, mercado ou suporte.

O pioneirismo dessa geração não se define apenas pelo tempo, mas pela capacidade de sustentar uma cultura praticamente do zero. Era preciso aprender fazendo: entender equipamentos sem assistência técnica, acessar música importada com dificuldade, adaptar sistemas de som, negociar espaços ainda pouco preparados e formar um público que não possuía repertório de pista. Nesse contexto, ser DJ ou produtor significava assumir riscos constantes e manter coerência artística em um ambiente instável. 

Alguns nomes como Andrea Gram, Sônia Abreu, Paula Chalup, DJ Mau Mau, DJ Marky, Renato Cohen, DJ Memê, XRS Land, Patife e Raul Aguilera representam diferentes frentes desse processo — clubs e festas como Lov.e, Sra. Krawitz, Hell’s Club, Toquio, Madame Satã, D-EDGE, além de festivais como Skol Beats e XXXperience também funcionaram como espaços fundamentais para essa formação coletiva. 

No caso de Sônia Abreu, Paula Chalup e Andrea Gram, de antemão, esse impacto ganha outra camada. Elas afirmaram autoridade em um ambiente majoritariamente masculino, que questionava a presença feminina, exigindo delas um nível de excelência constante para garantir permanência e reconhecimento, tornando-as símbolo de uma presença que contribuiu para ampliar horizontes, influenciando gerações posteriores de mulheres que passaram a se reconhecer como parte possível — e legítima — da cultura eletrônica nacional. Além do mais, suas atuações tiveram papel decisivo na proliferação do Techno e do House na cena paulistana, tanto na cabine quanto na formação de referências para um público em construção naquela época. 

DJ Mau Mau ocupa um lugar central na profissionalização do DJ como agente cultural no Brasil dos anos 1990. Em um período em que a função ainda era frequentemente reduzida à execução técnica ou ao entretenimento pontual, sua atuação ajudou a estabelecer parâmetros mais rigorosos para a condução de pista, o tempo de set e a construção de narrativa musical ao longo da noite. Além de também ter sido um dos grandes responsáveis pela introdução do Techno e do House no circuito clubber. 

A nível nacional, DJ Memê alcançou uma posição estratégica distinta, atuando como ponte entre pistas, rádios, novelas e dance music. Sua presença no Rio de Janeiro foi essencial para ampliar o alcance da música eletrônica junto ao grande público, contribuindo para a difusão dessas sonoridades em um momento em que o gênero ainda era visto como restrito a nichos específicos.

Em Belo Horizonte, nos anos 90, DJ Valéria se tornou a primeira mulher a atuar como disc jockey na cidade, rompendo barreiras de gênero e colaborando para a consolidação da cena local. No Sul, nomes como Gustavo Rassi, Gustavo Conti, DJ Handerson e Raul Aguilera contribuíram para estruturar circuitos locais e fortalecer cenas regionais, pavimentando as bases do que hoje é uma das cenas mais importantes do país, atuando da seguinte forma: Raul Aguilera ao fomentar a cena curitibana em espaços como o Clube Época, DJ Handerson como residente no Baturité e produtor dos programas de rádio Baturité Power Mix (Transamérica– antiga 99fm) e Rádio Baturité (Jovem Pan), em Balneário Camboriú, e Gustavo Rassi e Gustavo Conti à frente do que se consolidou como um dos maiores polos da música eletrônica nacional, o Warung Beach Club.

No campo da internacionalização, DJ Marky é um dos exemplos mais emblemáticos de projeção global com identidade brasileira. Sua atuação na BBC Radio 1 e a criação do selo Innerground Records, ao lado do XRS, foram fundamentais para inserir o nosso Drum’n’Bass no circuito internacional. Patife e o próprio XRS Land reforçaram esse movimento, evidenciando que o Brasil não apenas consumia tendências, mas também produzia com técnica, identidade e muita personalidade. Renato Cohen ampliou esse horizonte ao se tornar um dos primeiros produtores brasileiros a alcançar reconhecimento internacional consistente. Faixas como Pontapé e sua presença em selos estrangeiros como Intec começaram a moldar o olhar do mundo para a produção nacional.

Embora muitos desses nomes estejam associados aos grandes centros, falar de Brasil, exige olhar além do eixo dominante e reconhecer uma rede mais ampla, descentralizada e diversa dessa construção. Em Maceió, o coletivo Pragatecno foi fundamental para introduzir e sustentar a cultura da música eletrônica em um contexto distante dos grandes polos, criando festas, formando público e estabelecendo uma rede de troca, aprendizado e formação de comunidade. Em Fortaleza, Linhares Junior foi um dos idealizadores da Disco Voador, considerada a primeira House Party da cidade e uma das primeiras experiências dedicadas à música eletrônica no Nordeste. 

Essas iniciativas ajudam a reforçar a ideia de que a cena eletrônica brasileira se desenvolveu de forma autônoma. Ela se construiu por meio de esforços locais, muitas vezes isolados, que criaram referências próprias em contextos com pouco acesso à informação, equipamentos e circulação artística. Em comum, havia a necessidade de formar e educar público, criar hábitos de pista e sustentar uma cultura que ainda não contava com reconhecimento institucional ou apoio estruturado.

Antes da consolidação da internet e das plataformas digitais, lojas de discos e os primeiros coletivos cumpriram um papel decisivo nesse processo. Eram espaços onde a cultura circulava de forma direta: discos importados passavam de mão em mão, referências eram compartilhadas oralmente, parcerias surgiam a partir da convivência e de influências em comum. Esses pontos funcionavam como núcleos informais de formação, onde se aprendia sobre gêneros, artistas, técnicas e comportamentos, muito além do que qualquer manual poderia oferecer.

O acesso limitado à informação e à tecnologia também produzia um tipo específico de curadoria. Cada disco importado exigia investimento financeiro, tempo e pesquisa; cada set carregava uma intenção clara. Isso criava uma relação mais cuidadosa com o repertório e com o ato de tocar, em que escolhas tinham consequências diretas na pista e na formação de gosto do público, transmitindo exatamente quem você é. A música não era descartável, e o acervo pessoal de cada DJ se tornava parte central da sua identidade.

Esse cenário contrasta fortemente com a realidade atual, marcada por abundância de informação, acesso imediato a catálogos globais e circulação digital acelerada. Se hoje a cena é hiperconectada e internacionalizada, isso só foi possível porque houve uma base construída em condições adversas. A geração dos anos 90/2000 sustentou a cultura quando ainda não havia visibilidade, métricas ou validação externa, criando referências que seguem sendo reproduzidas, mesmo que muitas vezes sem consciência de sua origem.

Também é importante lembrar que a cena eletrônica brasileira dos anos 90 não surgiu isolada. Movimentos como os bailes black das décadas de 70 e 80, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, já haviam estabelecido experiências coletivas de dança, circulação de som importado e construção de identidades ligadas à música. Esses bailes criaram uma base cultural que mais tarde seria reinterpretada por DJs e festas de DnB, House e Techno, estabelecendo continuidades muitas vezes ignoradas entre culturas urbanas negras e o circuito eletrônico nacional.

Outro aspecto fundamental desse período foi a abertura para incorporação de sonoridades brasileiras dentro da música eletrônica. Mesmo dialogando com gêneros globais como Techno, House e Drum’n’Bass, muitos desses artistas começaram a incorporar grooves, timbres e samples ligados ao contexto local, a exemplo da MPB, do Samba, do Funk e do Jazz nacional, ainda que de forma sutil. Esse movimento ajudou a afastar a cena nacional de uma reprodução automática de modelos estrangeiros e a construir uma identidade mais situada.

O impacto desse trabalho se reflete diretamente em gerações posteriores. Artistas que hoje alcançam projeção internacional — como ANNA, Victor Ruiz, Eli Iwasa, Ratier, Alok, Vintage Culture, Clementaum, Joyce Muniz, Aline Rocha, entre outros — encontraram um ambiente já mais consistente, com público, clubs, festivais, profissionalização e uma abertura maior. Mesmo que suas trajetórias sigam outros caminhos e também encontrem diversos esforços, elas só se tornaram possíveis porque houve uma geração anterior que construiu espaços de legitimidade para que isso fosse viabilizado.

Apesar disso, a música eletrônica brasileira ainda sofre com a falta de memória institucional. Muitos dos nomes que ajudaram a estruturar essa cultura seguem ativos, produzindo, tocando e formando pessoas, mas raramente são tratados como um pilar de sustentação da história da cena. A ausência de reconhecimento desses percursos contribui para uma leitura fragmentada do próprio presente. Reforçar esse legado não significa olhar para trás com saudosismo, mas entender que a cena nacional tem uma longa jornada por trás daquilo que estamos consumindo atualmente. Ela foi construída com esforço coletivo, resiliência e poucos holofotes, exigindo insistência, convicção e trabalho contínuo.

Enaltecer essa geração é, portanto, um passo fundamental para compreender o presente e projetar o futuro. Documentar essas trajetórias, valorizar seus protagonistas e manter vivos os princípios que ajudaram a sustentar a cena é assumir que o pioneirismo é uma base que segue influenciando a forma como a música eletrônica brasileira se constrói, se organiza e se reconhece até hoje.

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