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A música conecta

Around the World | Berghain: metonímia da cena, metáfora da vida

“The simple division is that Panorama bar more or less caters to house in all its variety, including minimal,” says Höppner, “and Berghain is really the platform for purist techno. I can’t put my finger on what the exact Berghain sound is because everyone’s playing something different. But as Marcel and Ben are always playing down there, they know what kind of music works best there. I think the Berghain is a bit more serious and more focused, and deeper in a way– though not in a deep-house sense– whereas upstairs it can be a lot lighter and happier, more diverse. More hedonistic, in a way.”

Nick Hopper, ex-diretor do selo OstGut em entrevista a Phillip Sherburne, Pitchfork, 2007

União na pista de uma cidade cindida.

Muitas são as lendas que circundam o mítico club berlinense e ajudam a tecer a narrativa mitológica que o coloca como um templo, musical, comportamental, sexual e até mesmo visual, mesmo porque não podemos esquecer que, entre tantos artistas hoje notórios que participaram de sua concepção e evolução, contam-se cânones das artes plásticas contemporânea como Wolfgang Tillmanns ou mesmo um de seus maiores símbolos, o gatekeeper e fotógrafo de vanguarda, Sven Marquardt.

Ele é uma celebridade hoje em dia e este fato denota muito das transformações que o club sofreu no decorrer de duas décadas, mas cuja solidez na identidade mesmo face a tanta notoriedade aponta para uma autenticidade e seriedade propositiva que não possui paralelos nessa já longa aventura que teve suas origens em Detroit, mas encontrou seu lar verdadeiro em Berlim. 

A cidade também passou por inúmeras mudanças no decorrer desses anos todos, agora contando exatos 30 anos desde que se reunificou, marcando um período de intensas transformações no cenário urbano como a gentrificação maciça de bairros como Mitte e Kreuzberg, profundas transições no panorama político que a viram retornar ao papel de capital do país e inúmeras outras, culturais, econômicas e geopolíticas que ficaram impressas no tecido urbano berlinense.

Nada é mais significativo do lugar do club nesses processos que seu próprio nome, uma junção dos dois bairros em cuja vizinhança compartilhada ele se situa: Kreuzberg e Friedrichshain, pertencendo cada um deles, respectivamente, ao lado ocidental e oriental do Muro que partia a cidade ao meio e cuja cicatriz é hoje parte intrínseca a sua paisagem. Ele nasceu como OstGut, o nome que posteriormente batizaria sua gravadora, a plataforma que ajudou a lançar ao mundo inúmeros talentos que foram forjados naquela fornalha de música e desejo que a pista de Techno mais célebre do mundo.

‘Gayshichte’ und Musik

Essa fase inicial, que durou de 1998 a 2003, por sua vez foi germinada por uma festa de fetiche exclusivamente para meninos chamada Snax, que havia encontrado seu lar permanente no club. Todo esse ambiente de permissividade sexual e seriedade musical tendo as sonoridades mais pesadas do gênero como matriz estética vem de outra casa lendária da história da vida noturna da cidade, o Bunker, fundado pelo mesmo grupo de aficionados por essas delícias sensoriais e cujo edifício hoje abriga a Boros Collection, um acervo fenomenal de arte contemporânea global.

O componente comportamental é algo fundamental para se entender o que faz dele um club tão especial e um espaço tão único tanto para os amantes da  música eletrônica como para militantes das liberdades identitárias. O ambiente é cuidadosamente cuidado e curado para que uma variedade populacional seja mantida e um respeito recíproco entre todos ali dentro para que cada pessoa possa se sentir livre para testar limites com outrem e seguro para testá-los consigo mesma. 

Então, uma parte essencial dessa atmosfera é o que o próprio Sven Marquardt chama de “fricção”, fruto da diversidade de origens, destinos, desejos e ideias que se encontram ali. Um elemento que é minuciosamente controlado no acesso ao club através de uma misteriosa e errática política de entrada que se tornou um dos traços mais famosos, junto ao próprio Sven, da identidade pública do club pelo mundo afora. Isto não se deu sem uma bela dose de polêmica, já que muitas expectativas estão em jogo quando o objetivo é entrar num lugar tão especial, especialmente após enfrentar uma (também já famosa) fila que pode durar horas, isso quando não em temperaturas gélidas.

O que rola ali fica ali, dentro daquelas grossas paredes de concreto que um dia já catalisaram um outro tipo de energia.

Rompendo barreiras e cobrindo distâncias

O Berghain da forma como é conhecido hoje começou a ganhar forma em 2007, quando o prédio era usado em sua metade para abrigar a ele e o Panorama Bar, o espaço superior cujas janelas dão uma bela vista sobre o rio da antiga parte leste da cidade. O tão celebrado sistema Funktion One bespoke, que é um aspecto dos mais estimados da casa entre os frequentadores, foi instalado do modo atual em 2008, quando ocorreu a última atualização do som que ocupa a sala principal onde se ele se situa.

O sound system foi mensurado e instalado sob medida e levando cada detalhe da estrutura em sua concepção e execução, acabando por se tornar uma das características mais estimadas entre os artistas e, claro, entre os dançarinos que têm todo o seu corpo invadido pela gigantesca energia cinética gerada por cada peça dele. Desde as noites devotadas ao techno até as mais experimentais; passando por um projeto criado e mantido por Scuba chamado Sub:Stance, voltado para as sonoridades mais centradas nas baixas frequências, indo do drum and bass ao dubstep, passando pelo electro; até celebrações das mais diversas recobrindo selos e festas que recobrem praticamente todo o espectro da música eletrônica.

+++ Confira a entrevista que fizemos com Scuba, artista que toca frequentemente no Berghain

Ademais, uma relação íntima e profícua com formas artísticas mais canônicas – plásticas e performativas – sempre pautou as iniciativas curatoriais que incluem desde apresentações de dança contemporânea, inclusive uma delas com uma trilha criada especialmente para a ocasião e lançada pelo Ostgut Ton, realizadas no interior do club até uma vasta coleção de obras, das pinturas de Tillmanns que fazem parte da ambiência do PBar até as pungentes fotos do temido Sven, cujo olhar sensível criou um vasto acervo fotográfico que documentou muito do submundo berlinense à época da Cortina de Ferro e também forneceu a identidade visual do selo que constantemente impulsionou os residentes e contribuiu centralmente para sua projeção mundial.

Concertos de música experimental e erudita, exposições e mais tudo que usualmente é assinalado à “alta cultura” e formas artísticas tidas como mais elevadas teve lugar dentro desse espaço de celebração mundana e ajudou a marcar ainda mais profundamente sua posição como um ponto de conexão entre essas esferas criativas que apenas estão desconexas no senso comum.

Montag Nicht Auf

Mais que um ditado, esta frase denota uma regra subentendida, daquelas que estruturam acordos tácitos e revelam muito da população de um lugar ou de um determinado zeitgeist (no sentido germânico) de certas épocas. Neste caso, é uma profissão, mas não de fé, mas sim de vocação. E Berlim já possui uma reputação boêmia mundialmente estabelecida, reforçada por gerações de espíritos livres, sensíveis e criativos que mantiveram o movimento e o sentimento de suas iniciativas numa intensidade invejável. A segunda-feira não existe porque tudo e todos se consumiram nos fluxos de ideias e volições no decorrer do final de semana e é exatamente isso que as diversas pistas materializam a cada um deles.

As tão alardeadas maratonas de hedonismo e música são as reiterações desse compromisso tão caro à cidade com seu próprio bem-estar, com sua constante renovação dentro de um ciclo que restabelece aquela mesma eficiência e produtividade tão estereotipicamente alemãs. É assim que temos 72h ininterruptas de dança, nas quais tanto a elite do techno e da house music globais quanto aspirantes a essas posições se revezam na construção de sequências memoráveis de momentos que se entrelaçam a cada momento em que esse imenso tear sonoro e corporal é acionado.

Cada vez mais colossal e hoje contando outros espaços adicionais para diversos tipos de apreciação musical e exploração interpessoal além dos dois principais: Säule, Kantine Am Berghain, Garten… o Berghain/PanoramaBar é um microcosmo espetacular de tudo de melhor que nossa cultura pode ser, mesmo não sendo perfeito, porque ela mesma está longe de ser. Muitas são suas deficiências, como por exemplo, enquanto a população gay tem nele um refúgio e recanto (recreio, diriam alguns), o mesmo dificilmente pode ser dito da representatividade de outros grupos identitários minoritários no interior daquele ecossistema. Não obstante, ele é o que é e por isso mesmo se tornou talvez o espaço de comunhão dançante mais conhecido de nossos tempos, pois assim que a agulha percorre os sulcos do vinil, sequências de zeros e uns são decodificadas e as ondas sonoras rebatem pelos corpos suados e paredes que definem esse Lebensraum que é a pista de dança, tudo faz sentido assim que ressoam pelo seu Innenraum. 

Ao fim e ao cabo, ao prestarmos atenção nessa narrativa que acabamos de desfiar, o que se nota é que o prédio, o club, o selo, a sala de concertos, a política de entrada, a lenda e a fama não são o que fazem do Berghain o que ele é de fato. Ele é feito de pessoas e tudo que elas têm e fazem de melhor, um espaço para Ben Klock, Marcel Dettmann (que, por mais incrível que pareça, a Photon do final de semana vai figurá-los na mesma escalação pela primeira vez no Brasil), para você, para mim, para todos nós sermos felizes juntos. Um lugar onde até os espelhos estão ausentes e, portanto, no qual há espaço para tudo, menos vaidade. Então, se for e não conseguir entrar, não leve para o pessoal, porque ele é para todos, mas não para qualquer um. E isso não quer dizer necessariamente que seja você, ao menos não naquela noite específica.

A música conecta.

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