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A música conecta

A música em estado de alerta com as mudanças climáticas

Por Alan Medeiros em Artigos 11.11.2025

Com a COP30 acontecendo esta semana e colocando Belém no centro do debate climático global, o Brasil se vê diante de uma urgência que atravessa fronteiras e setores. Este artigo especial do Alataj se insere nesse contexto, examinando como a crise climática impacta diretamente o ecossistema dos grandes eventos — especialmente na música eletrônica — e por que adaptar-se deixou de ser uma escolha para se tornar uma condição de sobrevivência no futuro.

A crise climática, impulsionada pela ação humana, já ultrapassou os limites da variabilidade natural e impõe efeitos adversos com alcance global. Para a indústria de grandes eventos e concentrações de massa, o risco passou a ser constante. Entre os setores mais atingidos, está o setor de Artes, Cultura e Entretenimento, que engloba festivais, shows e concertos. Um estudo que mapeou 2.091 eventos interrompidos entre 2004 e 2024 revelou que tempestades, com seus efeitos diretos como inundações, ventos e granizo, são a principal causa dessas interrupções, respondendo por cerca de 82% dos casos registrados.

A intensificação dos eventos climáticos extremos tornou a vulnerabilidade dos eventos um ponto crítico para sua continuidade e viabilidade econômica. Apenas entre 2023 e 2024, o número de interrupções causadas por condições climáticas adversas aumentou em 86,5%. E não se trata apenas de tempestades: o calor, os incêndios florestais e a poluição do ar emergem como ameaças cada vez mais recorrentes. Em 2024, o calor ocupou o quarto lugar entre as causas mais comuns de interrupção, subindo duas posições em relação ao ano anterior, com um aumento de 175,9% nos incidentes relacionados à temperatura.

Esse cenário não se limita a danos logísticos. Os efeitos dos extremos climáticos sobre a saúde e segurança das pessoas têm se traduzido em tragédias. O calor extremo, por exemplo, foi responsável pela morte de mais de 1.300 peregrinos durante o Hajj em 2024. No Brasil, em 2023, a morte de uma frequentadora de um show da Taylor Swift também foi atribuída ao clima severo no ambiente. Casos como a hospitalização de 17 pessoas durante uma apresentação de Ed Sheeran em Pittsburgh ilustram a dimensão do risco. Ainda que muitas vezes subestimado por organizadores, o impacto do calor pode ser letal, especialmente quando os protocolos existentes não acompanham a nova realidade climática.

Além das perdas humanas, os danos econômicos decorrentes desses episódios colocam em xeque a sustentabilidade financeira de eventos culturais. Interrupções podem gerar prejuízos diretos para produtores e fornecedores, inviabilizar captações de recursos e comprometer cadeias produtivas inteiras. Um exemplo emblemático é o das inundações em Valência, Espanha, em outubro de 2024, que causaram perdas estimadas em 5,25 milhões de dólares para 30 empresas do setor, com um impacto total de 37 milhões em vendas não realizadas. Em outros casos, a exposição crônica a riscos tornou eventos financeiramente inviáveis. Foi o que aconteceu com o evento de ciclismo British Columbia Cancer Foundation Tour de Cure, cancelado definitivamente em 2024 após sofrer impactos recorrentes de calor extremo, fumaça e chuvas em quatro de seus últimos seis anos.

Nesse contexto, a música eletrônica ocupa uma posição singular. Historicamente conectada à paisagem, à sensorialidade e ao uso simbólico do espaço, ela tem contribuído para formas de resposta estética à crise ambiental. O campo da ecomusicologia, que estuda as relações entre música, cultura e meio ambiente, destaca como a música pode atuar como ferramenta crítica e cultural de conscientização. Exemplos recentes incluem o trabalho de Alok junto aos povos originários, que também possui forte apelo de conscientização ambiental, e o single Melt, de Kelly Lee Owens, que utiliza sons de gelo estalando e derretendo. A estética sonora transforma-se, assim, em expressão política da urgência climática.

Diante do avanço dessa realidade, torna-se urgente que os eventos migrem de uma posição vulnerável para uma condição “fortificada” — ou seja, reconheçam sua alta exposição, mas respondam com alta capacidade adaptativa. Isso passa por medidas estruturais, sociais e institucionais. Do ponto de vista físico, é possível investir tanto em ações pontuais (como políticas de calor extremo) quanto em infraestrutura, adaptando às áreas que serão ocupadas pensando em segurança mesmo com possíveis cenários extremos. No campo dos super eventos, o Miami Dolphins, franquia da NFL, é um bom exemplo: construiu um estádio resistente a furacões e treinou sua equipe de trabalho para operar sob condições climáticas extremas.

No universo dos eventos culturais, especialmente da música eletrônica, a dimensão social do planejamento é decisiva. Tecnologias avançadas de previsão do tempo, novos protocolos de gestão e ferramentas de monitoramento climático — como sensores de qualidade do ar e temperatura — são recursos relativamente acessíveis que aumentam a segurança e permitem respostas mais rápidas. Além disso, é fundamental revisar as expectativas do público e conscientizar a possibilidade de adiamentos, atrasos ou cancelamentos causados por condições extremas.

O caso brasileiro merece atenção especial. Diante de sua elevada exposição a tempestades e calor intenso, o país aparece como um território prioritário para o avanço de pesquisas e implementação de estratégias de resiliência climática em eventos. O episódio de 2023 que fora citado, deveria acelerar a adoção de protocolos como fornecimento de água e sombra, estruturas de resfriamento e campanhas de hidratação. No aspecto estrutural, é essencial que as principais venues do país invistam em sistemas que suportem inundações e tenham infraestrutura adequada para prover hidratação e resfriamento, quando necessário. Também é necessário mapear os “hot spots” — locais e épocas do ano com maior risco climático — para orientar o calendário e o planejamento geográfico do setor.

Apesar dos riscos, há também oportunidades. O público está cada vez mais consciente dos impactos da crise climática e da responsabilidade dos organizadores. Isso abre caminho para que artistas e produtores assumam um papel de liderança. Muitas vezes, a música pode transformar mentalidades de forma mais potente que a ciência, e os eventos podem se tornar plataformas para conscientização de práticas mais sustentáveis. Artistas que se posicionam inspiram mudanças reais. No caso dos big names, escolher locais com compromisso ambiental, reduzir a pegada de carbono e engajar o público em ações coletivas pode reforçar o papel cultural da música como agente de transformação.

O que se coloca, portanto, é um imperativo: adaptar-se deixou de ser uma escolha e passou a ser um requisito básico para a sobrevivência de festivais e shows. Isso exige ultrapassar os padrões históricos de clima e incorporar, desde já, as projeções das mudanças em curso. Com planejamento logístico flexível, protocolos de segurança para calor e tempestades e investimentos em tecnologia de monitoramento, a indústria da música pode não apenas proteger seus ativos, mas contribuir ativamente para uma nova consciência de coexistência. Garantir que o show continue — de forma segura e sustentável — é também uma forma de preservar o papel transformador da cultura no mundo que queremos habitar.

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