Este é o último episódio da segunda temporada da série Diggin Essence. De setembro a dezembro, a coluna se propôs a investigar artistas cuja relação com a discotecagem ultrapassa a execução técnica e se entrelaça com curadoria, vivência e sensibilidade para a construção da cena. Sol Ortega abriu a temporada; Trajano e Laurine & Cecilio vieram na sequência; agora, encerramos com Vermelho, figura fundamental para entender a formação e a expansão da música eletrônica nacional ao longo das últimas duas décadas.
A conexão de Vermelho com o som começou ainda na infância, em Araraquara, interior de São Paulo, onde cresceu rodeado de uma vasta coleção de fitas K7 do pai, além de vinis de MPB e coletâneas de Disco Music que circulavam pela casa por influência de sua mãe. Esse contato precoce moldou uma curiosidade ampla, orientada pela sensação que cada música provocava. Antes mesmo da pista, a música já ocupava um espaço importante na forma como ele observava o mundo.
No início dos 2000, já vivendo em São Paulo, Vermelho se aproximou da cena noturna em um momento de efervescência cultural da cidade. Era um período em que festas, clubs e coletivos ajudavam a desenhar o que viria a ser a identidade paulistana da música eletrônica — eclética e experimental. Espaços como o Lov.E e festas como Rebolado não apenas ampliaram seu repertório como também apresentaram uma ideia de pista onde gêneros distintos como House, Techno, Electro, Drum’n’Bass e outras vertentes podiam coexistir sem hierarquia.
A partir desse conjunto de vivências, Vermelho começou a investir profissionalmente na carreira de DJ, investindo boa parte do seu salário — na época como fotógrafo — em discos e praticando a arte da discotecagem nos toca-discos dos colegas com quem dividia apartamento. Desde o início, seu interesse não estava apenas em fazer a pista reagir, mas em entender por que determinadas músicas funcionavam juntas e como o encadeamento entre elas podia alterar a percepção de tempo, corpo e espaço. O primeiro marco de sua discotecagem profissional ocorreu em 2001, quando Vermelho dividiu a cabine com nomes como Luiz Pareto e Marcos Morcerf, que o influenciaram profundamente.
Esse período inicial de formação encontrou um primeiro desdobramento concreto em 2002, com a criação da festa Nectar, em Santa Cecília. A proposta da Nectar era criar um espaço onde fosse possível experimentar repertórios, testar sequências longas e observar a reação do público sem a pressão de formatos pré-definidos. A festa funcionou como um campo de testes importante, permitindo que Vermelho desenvolvesse, na prática, uma relação mais consciente com a construção de sets, com o tempo de pista e com a resposta coletiva, colaborando diretamente com seu amadurecimento enquanto artista.
Com o passar dos anos, a discotecagem deixou de ser uma atividade paralela e passou a ocupar o centro da sua rotina. Vermelho gradualmente migrou para uma atuação integral como DJ, ampliando sua presença na noite paulistana e consolidando uma reputação ligada à pesquisa consistente e à versatilidade de repertório. Esse movimento coincidiu com a expansão de seus interesses sonoros, que passaram a circular entre House, Techno, Electro, Italo, Acid e vertentes similares.
Paralelamente à consolidação como DJ, surgiram projetos que ampliaram seu campo de atuação. Em 2011, Vermelho participou da criação da LAÇO, um projeto que aproximava música eletrônica, artes visuais, performances e cinema, com ocupações em espaços como o Paço das Artes. A LAÇO reforçou seu interesse em pensar o som em conexão com outras ramificações da arte e em propor experiências que escapassem da lógica tradicional de club. Essa vontade também se manifestou em projetos como Vermelho Wonder, ao lado de Ivana Wonder, Video-Sistema, voltado à relação entre som e imagem ao vivo, e Sphynx, duo que criou com Zopelar, onde explora recortes mais específicos entre Electro, Italo e Acid.
Outro ponto central de sua trajetória é a co-fundação da festa ODD, que se tornou uma referência na noite paulistana pela curadoria cuidadosa e pela atenção à experiência do público. A ODD sintetiza muito do que Vermelho construiu ao longo dos anos: pesquisa consistente, atenção ao contexto da pista e compromisso com a cena local. Sua presença constante em clubs, festas e festivais — incluindo o Time Warp, DGTL Dekmantel em suas edições de São Paulo — reforça esse papel de alguém que acompanha, provoca e ajuda a movimentar a cultura eletrônica da cidade.
Há ainda um dado curioso em sua trajetória: Vermelho é químico de formação. Embora não atue profissionalmente na área, o pensamento científico ajuda a explicar, mesmo que de forma metafórica, sua habilidade em combinar elementos distintos, testar proporções e criar boas “alquimias” sonoras em pista. É a partir dessa soma — formação na noite de São Paulo, criação de espaços próprios, pesquisa contínua e atuação direta na pista — que surge a pergunta que encerra esta temporada da Diggin Essence: o que define a essência de Vermelho como DJ?
1. Fluxo contínuo e mixagem gradual
Um dos traços mais reconhecíveis da discotecagem de Vermelho é a forma como ele constrói transições longas e quase imperceptíveis. As mixagens acontecem de maneira gradual, sem cortes bruscos ou viradas abruptas, criando a sensação de que uma faixa se transforma na outra. Esse cuidado com o encaixe faz com que o set seja percebido como um fluxo contínuo, onde o tempo parece se diluir, deixando que a narrativa se desenvolva com naturalidade e consistência.
2. Basslines em destaque e herança do Synthpop
Um elemento recorrente em seus sets é a presença marcante das basslines. Vermelho constrói a pista a partir do grave, usando linhas de baixo como eixo de sustentação da narrativa. Essa abordagem revela uma conexão clara com referências vindas do Synthpop, do Electro e do Techno mais melódico, onde bandas como Depeche Mode aparecem como influência de atmosfera e condução emocional.
3. Curadoria moldada pela noite paulistana dos anos 90 e 2000
A versatilidade do Vermelho não nasce apenas de uma intenção de “transitar entre estilos”, mas por ter sido formado em um momento específico da noite paulistana, quando a pista era menos compartimentada por gêneros. Esse contexto moldou um DJ que pensa o set como sequência de estados, não como defesa de um estilo. Em vez de alternar gêneros por contraste, Vermelho conecta faixas pela função que elas exercem na pista — groove, tensão, suspensão ou descarga — mantendo uma história clara mesmo quando muda o estilo musical. Embora transite por House, Techno, Electro, Italo, Acid e vertentes próximas, Vermelho mantém uma coerência perceptível ao longo de suas apresentações e sua identidade é consolidada. Quem está na sua pista já sabe o que pode esperar e sabe que sempre será surpreendido positivamente.
4. Uso do tempo como elemento central do set
Além de uma boa leitura de pista, Vermelho sabe trabalhar com tempo. Seus sets se desenvolvem pela progressão, pela repetição bem dosada e pela confiança de deixar a música agir. Há espaço para faixas longas, para passagens que se estendem além do óbvio e para momentos em que o groove se mantém estável por vários minutos antes de qualquer mudança significativa. Essa abordagem vem tanto da vivência em pistas que permitiam longas narrativas quanto da experiência como criador de festas, onde compreender o ritmo da noite como um todo — e não apenas de um horário específico — se torna parte do trabalho do DJ.